29/01/2005

É O CÂNCER QUE ME FAZ SORRIR

Saiu neste domingo, no caderno de ECONOMIA da Folha ("Seu Dinheiro") continho inédito meu. Eles fizeram uma matéria sobre "A Felicidade do Brasileiro" e queriam a versão de escritores sobre o tema. Eu não sei muito bem se era para fazer um conto, mas como eu não entendo nada de felicidade - e sou moço das ficções -caprichei na doença (e eles me puniram trocando uma das letras do meu nome). Chico Mattoso, meu ex-colega de Parati, também está lá, com uma crônica.

Hoje gravei também uma entrevista com o Paulo César Peréio para o programa dele (Canal Brasil). Foi ótimo. Falamos sobre Incubus, Sucubus e cemitérios verticais, além dos meus livros, claro. E eu fui de camisa de oncinha. Deve ir ao ar só em abril ou maio, com meu livro novo já lançado.

Então vamos ao conto da Folha:

"É o câncer que me faz sorrir." Respondi para surpresa do Dr. Robert Robson. O médico esboçou um sorriso, recolheu meus exames, degustou minhas enzimas e declarou: "Não há motivo para alegria."

Por que não, se eu crescera na praia? Pulsava de sol, vivia de brisa, e afundava os pés na lama e na areia. Era o sol, que me fazia franzir. E o sal, para não arder. Virava o rosto, fechava os olhos, escondia o êxtase, mas expunha pele, a pele. A pele que me faz penar.

Com o tempo, vaidade; mais vício do que latinidade. Exercitar os músculos faciais, criar um coringa, proteger minha tela. Sorrindo para não despencar. Marcando o rosto para não me esquecer. "Vaidade, doutor, vaidade. É a vaidade que me faz franzir."

Esticando as rugas para trás das orelhas. Mantendo o sorriso, apesar das olheiras. O câncer foi avançando, sob minha pele cansada. Parecia mais refinado, soando em nasais. Tudo parecia, quando eu provava mais. De Portugal para a Colômbia, minha língua, latina, morta. "Foi o sol, foram as drogas, foi essa vida toda que me entorta."

O doutor escondeu sua alegria. "Enfim, alguém fez por merecer." Se não podia tirar o câncer da minha pele, se não podia tirar o sol do meu sangue, se não podia tirar uma vida de mim, ao menos do meu rosto poderia. Poderia arrancar toda a minha alegria. "É melhor internarmos você aqui em Chicago."
"Não ria, doutor, não ria. Mas a desgraça foi a minha alegria."

"A alegria foi a minha desgraça", ele corrigiu, como se eu não dominasse sua língua. Beijei sua mão e reafirmei, "foi só para rimar, doutor."

Ele então se aproveitou da minha saliva. E umideceu-se com ironia. "Não ria, Sebastian, não ria. Mas não há mais tempo para cirurgia."

Nessa vida de excessos, não há mais tempo para nada. Nessa vida de excessos, não há nem mais tempo pra vida. Mas se ele não podia tirar o câncer da minha pele, se não podia arrancar o sol do meu sangue, se não podia tirar uma vida de mim, ao menos no Brasil eu poderia. Poderia me queimar numa ilha.

"Escute aqui, não há graça nenhuma. Sua doença é grave, séria, não é prosa nem poesia." Ele estava acostumado com lágrimas, enzimas, saliva. Mas meu sorriso automático ia muito além dos exames clínicos. Cínico. Tomava meu rosto como zombaria.

Então pedi desculpas pela minha doença. Pedi desculpas pelas minhas rimas. Pedi desculpas por uma vida de excessos, mas não me arrependo, se a recebi sem filtros ou bloqueios.

"Foi apenas força de expressão, doutor. Foi só a expressão no meu rosto. Não ria, doutor, não ria. Meu erro foi confundir dor com felicidade."


MESA

Neste sábado, 15h, na Martins Fontes da Consolação, tenho uma mesa com o querido Ricardo Lisias . Debateremos (e relançaremos) os livros la...