16/01/2006

Assistam "Impulsividade" (The Thumbsucker) - um filme independente americano estranhíssimo, em que até Keanu Reeves está bem.

Voltando ao JT LeRoy, estava pensando em quais deveriam ser os próximos passos da autora. Parece que é inviável continuar com a história do garoto abusado. Um próximo livro terá de revelar algo mais, ou as pessoas não darão crédito. O que eu acho que ela deveria fazer:

- Lançar um livro de "A Verdadeira História de JT LeRoy", contando os detalhes todos de como conseguiram enganar tanta gente, as celebridades envolvidas, uma crítica ao culto da imagem, etc, etc. Venderia mais do que os livros do JT.

- Lançar um livro se assumindo como Sarah. Ou seja, a verdadeira autora dos livros é a mãe de JT LeRoy, que fez essa homenagem ao filho morto, desparecido, engolido por um tigre.

- Organizar uma antologia de contos com diversos autores escrevendo em primeira pessoa como JT LeRoy, cada um contando uma lembrança escabrosa da adolescência. Assim o personagem se tornaria uma figura mítica e criação coletiva.

Eles já estão fazendo mais ou menos isso. O site do JT começou a vender camisetas com a frase "I'm the real JT LeRoy". Aliás, segundo o próprio, eu também sou el. Num dos emails que trocamos sobre a tadução ele me disse "obrigado por ser eu, pois é isso que um tradutor deve tentar fazer." Hum, quero minha peruca!

Aproveitando o tema gender/bender, mando um conto bem antigo meu, que vem bem a calhar, especialmente por faltar mar neste meu verão.


Verão nos Pulmões.

Numa noite de verão, o mar reservava seu ouvido esquerdo. Música e gritos reservavam ouvido direito. Murilo seguia em frente, apesar de um pouco torto de álcool. Nas noites de verão, mar e festas sempre reservam os ouvidos, e Murilo tinha certeza de que já tinha passado por isso milhões de vezes, mesmo que não se lembrasse quando. Todos os verões eram iguais, ou deveriam ser, como aquele. Ele aproveitava ao máximo, queimando de dia, fervendo de noite, deixando sol e areia moldarem seu corpo, sua barriga, suas pernas, seus cabelos caindo sobre a testa. Porque sob o sol não era preciso mais nada, o resto se encarregava do resto. Sendo jovem, verão e efervescente, não precisava de nada.

De qualquer forma, mesmo assim, talvez por isso, naquela noite, ele precisava de mais. Tudo o que sempre fora tão jovem agora estava velho e gasto, quase duas dezenas de verões enxaguados. Sentia-se melancólico e preferia andar pela praia, imaginando outras coisas, imaginando novas vidas, imaginando que talvez não tivesse sempre o mar ao lado, ou não precisasse passar todos os verões como sempre. Pés na areia, camisa florida, calção de banho, corrente no pescoço, como tudo deveria ser, até o quiosque.

Na luz, se viu tentado a pedir mais uma ceveja, água de coco, cerveja, água de coco, alguma coisa para matar a sede. Acabou pedindo mais uma cerveja, uma cerveja que estava bebendo num quiosque na praia, de noite, com violão tocando numa mesa próxima, pessoas cantando, a vida acontecendo e ele esperando a sua começar pra valer. Ou entornar.

Havia um moço ao seu lado no balcão, demorou só alguns segundos para Murilo perceber, olhando em seus olhos. Um jovem não tão jovem, com calção de banho, camisa em mangas curtas, sandália nos pés, mas preto, tudo preto sobre a pela branca. Sorria para Murilo em branco também. Perto demais, branco demais, branco demais para o verão. Preto demais também. Murilo pegou sua cerveja, sentou-se reto no banco, virou-se para o jovem não tão jovem, que se estendeu para ele.

"Meu nome é Serafim. E você?"

Serafim estendia dedos finos e longos. Um longo cabelo negro caindo sobre os ombros, sobrancelhas finas, dentes brancos, um sorriso de quem morde e de quem cospe, de quem cospe antes de engolir. Tragou em seu cigarro.

"Murilo.", apenas.

Serafim riu botando para fora toda a violência de seus pulmões. O que um jovem daqueles fazia na praia? Fumava. Sorria. Bebia Malibu. Estendia dedos finos e fazia sombra. Violência.

"Você parece ser diferente dos meninos daqui." Aquele era Serafim, com dedos, cabelos e cigarro, chamando Murilo de diferente. Murilo era jovem, queimado, moldado pelo sol e pela areia. E se chamava Murilo. O que um Serafim poderia notar de diferente?

"Você também.", respondeu apenas. "Por que está só?"

Estava sozinho porque era branco, e preto, e tinha violência nos pulmões. Era óbvio. Por que Murilo estava sozinho com ele, era a pergunta. Queimado, moldado, integrado, Murilo tinha festas e mar em seus ouvidos, mas não podia evitar de ler os lábios de Serafim.

"Me sinto melhor assim, sinto melhor a noite. A praia também foi feita pra nós, sabia? Por que acha que as ondas ainda batem de noite? Por que o clima é quente mas a brisa é fresca? Por que a lua ilumina pouco mas o suficiente? E agora estou com você. Não estamos sós."

Serafim dizia tudo com voz doce e poética, mas seus olhos insistiam em cinismo, ironia e perversão. Ou talvez fossem os olhos de Murilo, envergonhados, tendendo a baixar. Fixaram-se nos pés de Serafim, brancos, firmes, mas macios e alongados, como seus dedos. Murilo achou que sua franja já estava indo longe de mais e inflou o peito com o verão.

"Você devia tomar sol, curtir o dia, a praia...." e suas reticências denunciaram desistência.

"Não estamos falando sobre isso, Murilo." Serafim sorriu, colocou a mão sobre a coxa de Murilo e se aproximou. Apesar do medo, Murilo não recuou, manteve-se firme e rígido... talvez rígido demais.

"Eu não queria que isso acontecesse..."

"Por que não?" O hálito de Serafim próximo demais para Murilo recuar. Sentiu todo o verão em seus pulmões tirar-lhe a respiração. Fechou os olhos, já não se continha, tremia e lamentava todos os invernos dos quais não pode escapar.

Inevitavelmente, lágrimas em seus olhos, e ele percebeu que nem sob a luz da lua poderia enganar. Teria de ser frágil, entregue, submisso e esperar que Serafim recolhesse todos os cacos caídos na areia.

"Desculpe...desculpe... não posso....nunca fiz isso..."

Eu – Santiago - Murilo e Serafim tentamos ao máximo evitar isso, mas nada mais poderia ser feito. Murilo baixou os olhos, respirou fundo e tentou dar mais dignidade à minha narrativa. Apenas Serafim, Serafim entregava-se ao escárnio.

"Eu não acredito... Murilo, você é uma criança." Esta última palavra foi suave, foi sim, recuperou a doçura no tom de Serafim, mesmo que ele não quisesse. E com os dedos enxugou as lágrimas do rosto do verão.

"Não se preocupe, : ). Eu cuido de você."

"Eu gostaria que isto nunca tivesse acontecido...me desculpe..."

"Mas não aconteceu nada."

"Você sabe, cara, você sabe tudo o que eu sempre preferi não saber."

"Eu não sei de nada."

"Você sabe sim. Mas... preste atenção, você tem que ter paciência..."

"Eu tenho paciência, meu anjo."

"Você tem que entender..."

"Eu entendo..."

"Ninguém pode saber."

"Eu entendo."

"Eu nunca tive nada com homens..."

"..."

"Eu nunca quis que isso acontecesse, Serafim..."

Serafim rompeu numa gargalhada que acordou todos do quiosque. Suas mãos decolaram da coxa de Murilo e seu corpo reclinou-se na cadeira. Deu o último gole de Malibu, esforçou-se para não engasgar e levantou da cadeira.

"Desculpe, Murilo. Achei que eu é que tinha bebido demais. Preciso trabalhar."

E quando Serafim levantou-se, quando pagou sua bebida ao garçom, quando beijou Murilo no rosto ele percebeu. Serafim era uma menina.

"O nome dela é Mariana. Escolheu Serafim porque é nome de anjo", disse o garçom. E anjo não tem sexo.
Murilo pagou a cerveja e seguiu em direção oposta, sentindo uma brisa do outono entrar em seus pulmões. Esforçou-se para ouvir mar e festas, mas, em seus ouvidos, só havia uma pergunta.

"Será que vai chover amanhã?"

(01/2000)

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(Publicado na Ilustríssima da Folha deste domingo) Do que devemos proteger nossas crianças? Como não ofender quem acredita no pecado? Que ga...