21/02/2010

CRUZANDO A ÚLTIMA FRONTEIRA...

Outro dia... (foto de Andréa Del Fuego).


Moro sozinho. Saio sozinho. Tenho voltado sozinho por preguiça dos outros e medo de que eles não vão embora no exato momento que eu deseje ficar sozinho. Não gosto de receber visitas. Não chamo os amigos. Prefiro ir ao cinema sozinho, para não ter de prolongar o programa além do tempo da sessão. Mas, até hoje, nunca gostei de me sentar sozinho num restaurante.

Eu acordo tarde. Perto do meio dia. Me sento para trabalhar tomando café, coca-cola, café, não estou pronto para almoço na mesma hora que você. 14h é cedo. 15h é cedo. 16h já dá pra pensar, mas nesse horário você já comeu – tem meu desprezo, é um ser humano fraco, cedeu cedo à fome, não merece meu respeito.

Todo final de semana é a mesma coisa, não tenho com quem almoçar. Quero escrever, quero caminhar, aproveitar o sol – te desprezo; você que cedeu à fome tão cedo não merece o meu respeito.

E quero almoçar fora. Quero bolinho de arroz. Hoje não quero cozinhar para mim mesmo ou comer num fast food – quero ser servido e posso pagar. Penso em chamar um michê de confeitaria, uma companhia ornamental, para eu não ser flagrado abandonado, sem ninguém para ser feliz comigo, mastigando em companhia. Penso que é exatamente o contrário daquele antigo conto popular português: da mulher que se casa, mas nunca se deixa ver mastigando pelo marido – existe alguma denominação clínica para isso? Como Egogastrofobia?

Não me importo em ser visto mastigando sozinho.

O medo é a espera, essa é a fobia. Ficar lendo e relendo o cardápio, enquanto a comida não chega. Nada para ocupar as mãos, e os lábios. Aquela felicidade intensa, todo mundo acompanhado. Não quero ler os outros fregueses. Não quero ser observado. (Não olhe pra mim!) Mas penso que basta um livro, algo para ler, eu consigo. Posso levar algo para ler comigo, e nunca levantar os olhos das páginas, nunca levantar os olhos do prato. Posso levar um livro comigo até o restaurante e ficar o tempo todo de cabeça baixa. Eu consigo.

Preciso aprender a comer fora sozinho. Se quero ser independente, preciso aprender a comer fora sozinho. Se quero fazer meus próprios horários, se quero continuar no meu ritmo, se gosto de viajar sozinho e, principalmente, se estou planejando morar numa cidade onde não conheço ninguém, preciso aprender a comer fora sozinho.

Só preciso de um livro...

Então hoje vou almoçar fora. Hoje eu não preciso de você. Mas preciso escolher bem o livro – tenho medo de ser visto em público, exposto em meus desejos. Essas bizarrices de queer horror podem me provocar uma ereção em público. Podem melar meus guardanapos, entornar meu ketchup. Nenhuma capa muito reveladora, nenhum título flagrante ou previsível. Penso que talvez fosse melhor levar o notebook para escrever. Mas acho pretensioso. E não quero engordurar minhas teclas com bolinho de arroz. Preciso escolher bem.

A leitura perfeita é um original em papel almaço. Leitura para parecer. Adianto um trabalho e ainda não exponho meus desejos, não me exponho no lazer. Não fui eu que escolhi. Estou aqui trabalhando. Estou realizando uma tarefa muito importante. Folhas soltas de sulfite e uma caneta na mão. Não preciso de você. Não levanto os olhos. Não me preocupo em engordurar as pontas das páginas com tabasco e fritura. E não bebo. Beber sozinho seria um pouco decadente. Não preciso, estou trabalhando. Viro de uma vez um suco de melancia. Viro uma água. Viro um suco de laranja. Ainda bem que os garçons não me apetecem – não se pagam mais os salários de antigamente...

A comida chega mais rápido do que eu esperava. Não consigo terminar nem um capítulo antes de o prato começar a esfriar. Fácil e indolor. Pedi a carne enfaticamente mal passada – deve ser por isso; pensava que podia me sublinhar uma certa aura vampírica; alguém percebeu? Levanto os olhos rapidamente enquanto mastigo.

“I could eat my dinner in a fancy restaurant...” Sinéad O’Connor está cantando. Mentira. Toca Madonna. Que pena. Já estou formulando as frases de registro para colocar neste post. Queria tirar uma foto. Não vou tirar uma foto. Lembro daquela foto que a Andréa tirou, acho que pode ilustrar bem este post. Viver para escrever. A música que toca não me diz nada.

Termino o almoço. Rápido e fácil. Razoavelmente barato e indolor. Queria prolongar a minha dor. Queria ter mais o que escrever. Mas foi só um almoço...

Isso só me assegura de que não devo desistir de fazer pareceres. Não posso perder a segurança desse escudo de papel almaço. Gostaria também de usar óculos, óculos de leitura, só nessas horas.... E seria bom fones de ouvido – mesmo desligados – da próxima vez, não posso esquecer.

Mas haverá uma próxima vez, cruzei esta fronteira. Adoro comer fora sozinho. Não preciso de você.

...

TIREM AS CRIANÇAS DA SALA

(Publicado na Ilustríssima da Folha deste domingo) Do que devemos proteger nossas crianças? Como não ofender quem acredita no pecado? Que ga...