20/07/2013

MEMÓRIAS BUCÓLICAS DE UM JUNKIE URBANO


Com os restos do lombo esfriando no prato, ele se levantou e contemplou o vazio. Levantou-se e contemplou os excessos. Um capoeirão, que descia pelo terreno algumas centenas de metros. O que ele herdara, meu deus? Um bom lugar para se enterrar. Podia ouvir o canto de pássaros, insetos, mas não via nada além do verde. A vida camuflava-se, se escondia. Ele queria fazer parte? Enterrar-se naquele solo e deixar seus nutrientes alimentarem a natureza? Nutrientes? Muita química armazenada. Anfetaminas que nunca bateram. Ácidos que iam e voltavam. Pó ao pó. Cinzas de cigarro. As árvores provavelmente murchariam. Sua carcaça podre, plastificada, serviria como herbicida, formicida, veneno contra cupins."

                                                                *


A irmã ia para a varanda e postava-se de frente para o mato. “Era aqui que ela queria ficar, não é? Vamos dispersar as cinzas.”

Ele olhou para o mato, para a irmã. “São só cinzas. Se ela quisesse mesmo ficar aqui, teria pedido para ser enterrada no terreno.”

A irmã fez uma careta. “Isso é ilegal. Você não pode enterrar um corpo no quintal de casa, só jogar as cinzas.”

“Mas... Eca, a gente está vendendo o terreno!”

A irmã franziu a testa. “E daí? A gente não está enterrando um corpo no terreno, é o que você mesmo disse, são só cinzas.”

“Exato, a gente vai dispersar as cinzas dela para uma casa... que nem vai ser mais dela... Ela vai ficar com os novos moradores. Você não viu Beetlejuice?!”

A irmã riu. “Não viaja.” Por mais diferentes que fossem, eles eram irmãos, tinham um repertório em comum. 

                                                                 *

Achou ter encontrado a hortelã. Arrancou alguns ramos. Seguiu para a árvore de lima, logo em frente. Começou a colher as frutas. Ficou atento aos insetos, taturanas, algo a lhe picar. Tinha trauma de infância, das taturanas. Fora um moleque tão urbano, tão indoor, tão preso ao videogame, aos brinquedos, nunca desses que brincara na rua, no campo, subindo em árvores. Das únicas vezes em que subiu numa árvore, num verão primário, sentiu um estranho ardor no braço e se virou para ver o que era. Três taturanas verdes grudavam-se em seu braço. Ele gritou, paralisado, sem conseguir descer da árvore nem espanar as lagartas para longe. Seu primo, um galho mais alto, desceu da árvore e as arrancou com um pedaço de pau. “Para de gritar feito retardado,” caçoou, e continuou a subir. Ele desceu meio caindo da árvore, se esfolou todo, e nunca mais subiu. Talvez, depois disso, tenha tomado alguns choques elétricos nos equipamentos de som. Certamente depois disso tivera choques anafiláticos da má cocaína que boas almas lhe serviram. Mas disso não ficara trauma. Disso, ele nem se lembrava.


(Do meu próximo romance. É, minha mãe vai me matar.)

TIREM AS CRIANÇAS DA SALA

(Publicado na Ilustríssima da Folha deste domingo) Do que devemos proteger nossas crianças? Como não ofender quem acredita no pecado? Que ga...