18/11/2015

GUERRA SANTA



“A vida dos ateus poderá ser dura num Brasil cada vez mais evangélico [...]. O catolicismo – no mundo contemporâneo, bem sublinhado – mantém uma relação de tolerância com o ateísmo. Por várias razões. Entre elas, a de que é possível ser católico – e não praticante. O fato de você não frequentar a igreja nem pagar o dízimo não chama maior atenção no Brasil católico nem condena ninguém ao inferno [...]. Já com os evangélicos neopentecostais [...], o caso é diferente [...]. Por que os ateus são uma ameaça às novas denominações evangélicas? Porque as neopentecostais são constituídas no modo capitalista. Regidas, portanto, pelas leis de mercado. Por isso, nessas novas igrejas, não há como ser um evangélico não praticante. É preciso que os fiéis estejam dentro das igrejas – e elas estão sempre de portas abertas – para consumir um dos muitos produtos milagrosos ou para serem consumidos por doações em dinheiro ou em espécie.” – de Eliane Brum, Revista Época:

Aqui: http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/noticia/2011/11/dura-vida-dos-ateus-em-um-brasil-cada-vez-mais-evangelico.html

Relia esse texto da Eliane Brum, de novembro de 2011, postado por alguém no FB diante da atual Guerra Santa Mundial (da França, do Brasil...). Recortei os trechos acima, poderia ter reproduzido tantos outros, e pensava em como a visão (e a previsão) dela permanece atual 4 anos depois. Concordo com quase tudo o que ela coloca, mas os pontos de discordância é que me fizeram discorrer um pouco aqui.

“Sabe o que eu acho curioso?” – coloca ela no diálogo do artigo. “Que eu não queira tirar a sua fé, mas você queira tirar a minha não fé. Eu não acho que você seja pior do que eu por ser evangélico, mas você parece achar que é melhor do que eu porque é evangélico.”

Não acho curioso e não acho totalmente sincero. A fé (nas igrejas evangélicas) pressupõe não apenas a crença na salvação individual, mas (na visão mais positiva possível) a salvação do próximo. Quem acredita que a salvação pela fé é o melhor para a humanidade, quer salvar também o outro, como em qualquer ideologia e militância. Quem acredita que reciclar o lixo pode ajudar a salvar o planeta, vai tentar convencer o vizinho, o condomínio, o bairro, as subprefeituras...

Historicamente o ateu não quis “tirar a fé” do cristão porque isso sempre lhe conveio, o “ópio do povo”, blábláblá. A religião é que manteve o povo manso, o povo servil. Agora que os costumes civilizados, da elite educada, avançam num ritmo impossível para o tradicionalismo religioso, o atrito se forma. É um conflito típico de uma sociedade dividida entre os que lêem, estudam e estão conectados com as mudanças do mundo (elite brasileira, elite ocidental) e os que permanecem à margem com a (falta de) cultura ditada pelos únicos livros a que têm acesso (“os sagrados”).

A minha visão já denota, é claro, uma outra discordância e até um preconceito em relação à visão exposta no artigo. “Eu não acho que você seja pior do que eu por ser evangélico.” Conheço pouco a Eliane (viajamos juntos por alguns dias numa turnê pelo Paraná, em 2012) e posso estar errado, mas não acredito que ela pense exatamente isso. Há a visão comum do ateu em pressupor o crente como inferior. Eu pressuponho. Há um componente racional – de entender que a religião têm mais força nas classes menos favorecidas - já escrevi aqui no blog: "
se o cara acredita em Jesus-Deus-Bíblia, eu já fico com pé atrás. Já acho que é um coitadinho suburbano que cresceu sem uma boa escola, que teve a educação e o lazer centralizados na igrejinha da rua". Há uma incapacidade de ver como intelectualmente capaz um adulto que “acredita em contos de fada”. É um preconceito que eu próprio admito possuir. Como preconceito procuro mudar minha visão – nunca consegui totalmente.

Sei que há grandes pensad... bem, talvez pensadores medianos que tenham fé. Ou talvez a fé presente nos grandes seja uma fraqueza desculpável – sim, talvez isso esteja mais próximo do meu pensamento -, algo como um “guilty pleasure”.

Crentes costumam dizer que “na hora do desespero, todos recorrem a Deus”. Eu não vejo nenhuma incoerência nisso. Sou ateu não por certeza, mas por ser aberto às dúvidas. Não tenho como acreditar que Deus é como pregam os cristãos, ou os muçulmanos, os polinésios... Pode ser uma mistura de tudo, pode ser algo totalmente diferente, pode ser apenas o vazio. Ao meu ver o reconhecimento da dúvida é o que torna alguém ateu.

Então na hora do desespero, na turbulência do avião, não é contraditório que ateus busquem todas as possibilidades de salvação. Mais contraditório talvez seja que CRISTÃOS, prestes a entrar na terra prometida, rever seus entes queridos, entrem em desespero...


No fundo, acredito que a imensa maioria (dos grandes, dos ínfimos) tenha dúvidas, seja racionalmente ateia, tenha a fé como wishful thinking (oooh, perdoe meus anglicismos - pensamento mágico, quis dizer). Por isso todos dão suas escapadinhas, cometem seus pecadilhos, ninguém leva a coisa totalmente a sério, não é, minha gente?

E não é contraditório que quem acredite PIAMENTE em seu Deus tente converter o próximo, salvar o próximo, seja pela cruz, seja pela espada. Isso, meu irmão, é ser religioso de verdade.



Obs: A única coisa a mais que discordo da Eliane é o uso da analogia "como vender gelo para um esquimó" - metáfora gaaaaasta que não faz jus a escritora FODA que ela é. Desculpável, enfim, para uma grande ateia ;)

Saudades, Eliane. Beijos. 

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