01/12/2017

UM ANO TREVOSO

Saindo do poço...

Não foi fácil para ninguém, não se engane. Não foi fácil para mim. Estava revendo há pouco minhas retrospectivas de anos anteriores, e se a do ano passado também foi negativa, já fui feliz em 2015, 2014, 2010, 2007...

Este ano não foi dos piores. Mas foi pesado.  Se 2017 me trouxe conquistas importantes, os quatro primeiros meses, primeiro terço, em que NÃO RECEBI UM TOSTÃO, me deixaram um gosto amargo na boca que ainda não passou. Eu, prestes a fazer 40 anos, questionando minhas escolhas, desconfiando de que meu tempo já havia passado; foi um começo do ano do cão, dos piores da vida, em que não pude contar com quase ninguém, os amigos pareciam mergulhados em crises pessoais, nem meu namorado estava por perto, uma solidão intangível. Foi horrível-horrível...

Ok, acho que foi dos piores.

Primeira mesa do ano foi em abril, com André Fischer e os queridos do Põe na Roda. 

Mas, como resultado do meu desespero, ou pura sorte-acaso, a partir de abril comecei uma série de viagens e debates que mantiveram a cabeça em movimento e as contas sob controle. Foram 25 mesas, talvez um recorde em minha carreira, que trouxeram não só os cachês, mas aprendizados e experiência.
Na estrada com Namaia e Marcelo Reis de Mello. 

Começou com a turnê de debates do Sesc pelo interior do Rio, com Ana Paula Maia - uma forma de me aprofundar num estado vizinho, que me era tão estranho. 'Namaia é das autoras de que mais gosto, e temos visões bem conflitantes de mundo; então deu para ter debates densos, sem perder o respeito, não só nos palcos, como nas vans, nos aeroportos, nos jantares em que ela me arrastava por Copacabana quase de madrugada...

Adamantina. 

No segundo semestre tive a turnê pelo interior de SP, com o Viagem Literária, que também me levou a novos públicos e novos cenários. Encontrei desde adolescentes a idosos que estavam sendo alfabetizados, uma aula para mim mesmo. E ainda tive uma turnezinha de duas cidades do Paraná, com a Caravana Literária, onde encontrei leitores lindinhos-lindinhos.

Em Apucarana. 

No meio de tudo isso, tive mesas pontuais em BH, Salvador, Votuporanga, Iguape, Garopaba, São Paulo e a Bienal do Rio. Também fiz minha terceira passagem pela Colômbia, desta vez em Medellin, para um festival literário. Foi bacana reencontrar colegas queridos de lá e do Brasil, como o Julián Fuks e o Juan Cárdenas, mas a viagem em si não foi grande coisa, e não deu mesmo para vôos maiores.

Setembro em Medellin. 

A viagem mais exótica do ano foi até uma aldeia guarani.

Além das viagens de trabalho, fiquei com um pé em Maresias, onde Murilo comanda o restaurante Guató. Foi inesperado e bacana arranjar uma casa na praia nessa fase da vida, mas a distância não é tão fácil de administrar - eu não posso estar sempre lá e ele raramente consegue vir para São Paulo. Ao menos pude usar as casas (porque ele se mudou três vezes desde o fim do ano passado) para receber amigos e a família. Minha sobrinha de cinco anos já tem Maresias como destino certo de férias e feriados.

Gaia e Valentina.

A casa alugada atual é do lado da praia, tem um belo jardim e uma suíte para hóspedes (para os amigos próximos, bem próximos, que não sou uma people´s person, e Murilo menos ainda), mas minha favorita foi a casa do primeiro semestre, que ficava afastada, no meio da mata, cheia de pragas e umidade e uma piscina incrível - meu cunhado a chamava de "Solar Lars Von Trier."


Foto tosca de um dia raro.. ou foto rara de um dia qualquer: Eu e Murilo fomos até Ilhabela, almoçamos por lá e encontramos um raro arcade, ou "fliperama", um lugar para "jogos eletrônicos", algo tâo presente na minha infância, presente lá mesmo em Ilhabela, onde eu ia na pré-adolescência... Nesse só passamos para as fotos, mas estava funcionando. Me deu uma nostalgia terrível...

Com essa nova vida de praia, na meia idade, se não posso pagar de gatchenho surfista, ao menos desenvolvi talentos de mestre churrasqueiro. Já passei muito do básico e agora faço carvão com os gravetos do jardim. (Rodrigo Hilbert, se eu cozinho, você faz doce?)


Com Xerxenesky e Tati Bernardi no lançamento da neve. 

Voltando ao trabalho, o marco do meu ano foi o lançamento de Neve Negra, é claro, meu primeiro romance pela Companhia das Letras. Foi bem recebido, gerou muitas entrevistas e boas resenhas - nenhuma negativa até agora - com destaque para o texto do Cristóvão Tezza na Folha. Talvez por ter sido fruto de uma encomenda, encaixou-se perfeitamente nesse novo momento do "pós-terror", que foi o mote da maioria das matérias.

"O pós-terror."

Aliás, essa foi uma discussão interessante... e interessante que tenha gerado discussão. Lembro logo que meu livro e do Xerxenesky estavam saindo, que nos encontramos na Companhia das Letras e ele disse como nossos livros saíam totalmente alienados às discussões do momento - para mim isso era o padrão. Então praticamente no dia seguinte os livros estavam inseridos na discussão, não só do pós terror, como, no meu caso, em toda a questão da função da arte e da relação com a pedofilia. Ao meu ver, isso é o resultado de um bom olhar da encomenda, quando a RT Features nos pediu os livros, já intuindo as discussões sendo gestadas, porque eu mesmo sempre passo longe de tendências, e se não tivessem me pedido esse livro eu teria feito algo bem diferente.

Discutindo literatura de horror com uma grande turma, em novembro.


Bom que pude debater sobre isso como autor, porque não exercitei muito o lado resenhista e jornalista... que não sou de fato. Publiquei um punhado de contos em revistas e jornais - que coloquei no post anterior aqui do blog. Na Folha de S. Paulo, onde escrevo esporadicamente desde 2005, só publiquei uma matéria no começo do ano, um perfil de leitores de literatura brasileira contemporânea, na Ilustríssima (aqui). Como estava lançando livro, preferi me concentrar na divulgação.

Bahia com Mário Rodrigues e Milena Britto. 

Não tive outros grandes projetos e promessas no ano, nem para o próximo. Talvez eu devesse ser mais pró-ativo, mas minha experiência com cinema-TV-teatro é sempre tão frustrante... Perdi a conta de quantos argumentos, roteiros, projetos fiz, que não deram em nada. Em livro, bem ou mal, eu sei que depende só de mim. Eu sento para escrever e o livro sai. Não é à toa que já tenho nove.


Colômbia. 

Então me concentrarei nisso neste final/começo do ano. Estou em Maresias com uma pilha de livros para pesquisa, o computador, e escrevo no jardim com a coelha cavando trincheiras. Natal e reveillon serão por aqui... provavelmente até o carnaval. Volto assim que o trabalho chamar.

No fim de ano passado, em Maresias. 

23/11/2017

PRÓXIMOS, PÓS E PARALELOS


Já à venda.

Saiu esta semana o Perdidas - Histórias para Crianças que Não Têm Vez - uma antologia de contos e poemas de grandes autores, sobre crianças vítimas da violência no Rio de Janeiro, com os direitos autorais revertidos em ações beneficentes na cidade.

Aceitei participar não só pela boa ação - porque boas ações raramente geram boa literatura - mas pelo que o tema me instigava. Gostei bem do resultado. Meu conto "Domingo Maior" é praticamente uma história de fantasma, um conto de pós-terror, como uma prova de que esse novo subgênero está aí de fato para tratar de questões mais densas.

A mãe tirou o prato do forno, levou até ele. “Cuidado que está quente”, mas não estava muito. O dia havia acabado, já estava escuro, mas ela não se preocupou mais em acender a luz; sentou-se ao lado dele e ficou observando o filho comer com apetite. Lembrava um pouco o marido, lembrava um pouco ela mesma, era um menino que ela havia amado por toda a vida, que quase lamentava amar para sempre, porque para sempre ela iria sofrer...

Escrever contos sempre é um bom exercício, uma maneira de testar novos formatos, temas, tratar de questões mais imediatas (como essa), e fico feliz que este ano tenham me encomendado um punhado deles.

Ilustração de Marcos Garuti para meu conto na revista do Sesc.

A morte de João Gilberto Noll, por exemplo, também me inspirou um pós-terror: "A Coelha Vampira", que publiquei na revista do Sesc (e depois em versão estendida aqui no blog).

Um bicho de estimação é um exercício de síndrome de Estocolmo. Ela não precisava de mim, eu não gerava empatia, e sentia que fracassava miseravelmente como sequestrador. Perguntava-me se para a síndrome se estabelecer era preciso um mínimo de charme por parte do perpetrador, um mínimo de ameaça, transgressão, juventude, coisas que eu não tinha, e a coelha sentia. A coelha sentia falta.


Mês passado também publiquei um conto no jornal Cândido, da Biblioteca Pública do Paraná, uma resposta aos neo-consevadores que querem limitar os temas da arte e da literatura, uma visão de violência pelos olhos do agressor: "Maldita Primavera", aqui.

Marcelo levanta-se e olha para baixo. Fecha o zíper. A menina como um personagem de desenho animado, esmagado por um rolo compressor. Não, seu pulmão ainda infla. Palpita. Marcelo pega o tijolo ao lado e é um golpe rápido na lateral esquerda da cabeça. Pronto, nada mais a palpitar. Geleia orgânica. Ele sente o ombro. Um gosto azedo na boca. O cheiro pungente de seus próprios líquidos e os mosquitos o devorando vivo.
Pré-Trevoso ilustrado por Wagner William.
E no começo do ano publiquei na Superinteressante uma "prequel" do meu Trevoso - "Galhos Frescos"- também com uma cutucada nos evangélicos:

Então o velho o viu, com pés leves, pernas longas, passos largos, como Jesus caminhando como um lagarto sobre as águas. O menino. Ocre como a lama. Vasta cabeleira desgrenhada. Com um balde em mãos. Saltava catando os caranguejos.

O texto integral só saiu na revista impressa. Quero reunir esses e outros para um novo volume de contos, contos de "pós-terror" ou apenas um pós-Pornofantasma. Sei que livro de contos é visto como algo menor no mercado, então estou me concentrando em publicar antes um novo romance (que ainda levará um bom tempo para eu terminar - vai numa direção totalmente diferente dos meus romances mais recentes), mas ano que vem devo experimentar uma pequena publicação para outro público... E antes disso tenho de fazer o conto para a antologia de terror com os novos autores que encontramos no fim de semana. Felizmente, a criatividade continua pululando por aqui.


20/11/2017

FIM DE SEMANA DO TERROR

A turma. 

Passei os últimos dias trancado com uma dúzia de malucos, num sítio afastado, sem sinal de celular e internet.

O “Fim de Semana do Terror” foi organizado pela Cássia Carrenho (ex-Carlos Carrenho) para reunir novos autores de terror, thriller e policial, com grandes nomes do gênero como a Ilana Casoy (o maior nome da literatura criminal no Brasil), Mariana Rolier (editora da Harper Collins, com passagens pela Rocco, Leya e Ediouro), Raphael Montes (garoto prodígio da literatura policial) e eu. Os inscritos traziam ideias sobre o que estavam escrevendo para debatermos todos, e nós dávamos direcionamentos possíveis e workshops sobre a escrita.


A sala onde os inscritos apresentavam suas ideias. 

Nunca me considero apto a ensinar ninguém a escrever. Não dou oficinas, não tenho fórmulas, não tenho metodologia e cada livro meu é conduzido de uma forma, de maneiras muito instintivas. Então dividi com eles minha experiência no mercado, apontei caminhos da escrita de horror (e pós-terror) e passei depoimentos de outros conhecedores do gênero por aqui (Antônio Xerxenesky, Carlos Primati, Hugo Guimarães e Fernando de Abreu Barreto).  Já Raphael apresentou estruturas do romance policial, com bastante embasamento, Ilana dividiu algumas de suas histórias e entrevistas em vídeo com “assassinos célebres” e Mariana deu o “outro lado”, das editoras.

Eu nunca tive crise criativa, nunca fiquei travado para escrever e, bem ou mal, sempre consegui viabilizar meus projetos literários em nove livros publicados por grandes editoras. Então foi nas conversas individuais que tivemos no domingo que me senti mais no meu território. Os novos autores sentavam-se comigo e traziam o que estavam trabalhando e eu conseguia ver claramente caminhos possíveis, desenvolvimentos para a história, tinha de me conter para não dar a eles uma trama completa.

Os meninos (que iam de 21 até 71 anos) tinham ótimas ideias. Mas achei curioso como todas as propostas eram baseadas em enredo, e enredos bastantes complexos, fossem no romance ou no conto. Talvez pela maioria ser fã do Raphael e da Ilana, traziam macro-histórias de investigação policial, que remetiam a traumas da infância e se desdobravam em épicos. Eu, como grande partidário do minimalismo, tentava conduzi-los ao simples, à essência. Ontem, conversando no café da manhã, em cinco minutos eu e Ilana desenvolvemos uma ideia de conto para exemplificar a eles:

“Imagine eu e Ilana tomando café aqui na varanda, vendo os esquilos passarem, conversando sobre as manchetes criminais do momento. Esperamos pela Mariana, que demora a acordar. Ilana conta sobre um serial killler que age pela região, matando mulheres. Raphael chega e perguntamos se ele viu a Mariana, que costuma acordar cedo. Ninguém sabe dela. Então vemos um esquilo carregando um dedo de mulher na boca...”

Temos aí um conto completo, uma única cena (que obviamente precisa ser desenvolvida em clima e diálogos). Era a uma simplicidade assim que eu tentava direcioná-los.

Também repeti incansavelmente a pergunta básica que faço a todos novos autores: “mas o que você quer dizer?” Acho curioso que os aspirantes a autor de gênero sejam tão conduzidos por histórias, mas menos por conceitos e pulsões internas, que é o que garante a densidade do texto. Uma coisa é a história que você criou, outra coisa é uma verdade que você precisa comunicar. 

Um romance como “Neve Negra” nasce da minha necessidade de tratar das questões da paternidade. O que eu quero dizer é isso, como a paternidade pode ser uma utopia cruel. Com esse tema martelando na minha mente, vou atrás de um personagem que possa personificá-lo – poderia ser um novo pai adolescente, um pai solteiro, um pai adotivo; escolhi um pai tardio, meio ausente. Com o conceito e o personagem, a história vai se desenvolvendo meio que naturalmente para mim.

Ilana debatendo na varanda. 

O fim de semana também teve churrasco, não faltaram bebidas, e jogamos uma partida de “Perfil” temático de terror, onde criei fichas sobre filmes, livros, crimes reais e métodos de assassinato. O pessoal todo foi muito querido e, apesar de backgrounds tão diferentes, tudo fluiu muito suave, com a paixão de todos pelo gênero. Valeu bem.

O encontro também gerará uma antologia, com contos de todos nós, a ser lançada por plataformas digitais e, quem sabe, em formato físico.

Não sei quando acontecerá outro encontro desses, com outra turma. Mas a Cássia já está organizando outras viagens de imersão, com outros gêneros e outros autores. Fique ligado no site dela:


Para coroar o fim de semana, Raphael se redimiu de sua distância e hoje escreveu na sua coluna no Globo não só sobre nossa experiência, como sobre meu livro: 

“Neve negra” é uma grande história de terror psicológico que faltava na literatura brasileira, com tensão discreta e permanente."

Para ler inteiro, aqui: 

10/11/2017

O MACACO E A CAFEÍNA

Na Biblioteca Parque Villa-Lobos
Sábado agora tenho a última mesa do ano, um debate com Manuel da Costa Pinto no Parque Villa-Lobos, com entrada gratuita. Já fiz um debate desses com ele, recentemente gravei entrevista para o programa dele no Arte 1, em 2014 gravamos o Metrópolis com BIOFOBIA, é sempre ótimo. Manuel é um cara que entende profundamente de literatura e trata minha obra com respeito e consistência. Acho que poderemos aprofundar questões de Neve Negra que ficaram em segundo plano...

O livro está indo bem. Consegui muita mídia regional pelo país, devido às minhas viagens e aos leitores fiéis que vão ganhando poder. Tive página inteira no Paraná, Pernambuco, Bahia, Ceará, Minas, Santa Catarina (nada no RJ). Na grande maioria das vezes sou eu mesmo falando do livro, em entrevistas, o que é um pouco frustrante. Toda divulgação é preciosa, mas a falta de opinião, das resenhas, deixa a gente sem termômetro. Pelo menos não surgiu nenhuma crítica negativa - bem, talvez hoje em dia isso seja substituído pelo silêncio...

Muitos colegas escritores têm postado sobre o livro, redescobrindo minha obra - acho que é algo do tipo: "Hum, ele foi para a Companhia, de repente o livro presta..." Alguns apontaram como uma boa volta ao que eu fazia no começo de carreira (com Feriado de Mim Mesmo), sendo que BIOFOBIA é um livro irmão. Dos colegas-amigos mais próximos, silêncio total. De repente acham que não preciso mais da força, de repente é uma questão de competição, ou descaso, de repente tudo junto... Só sei que para mim seria impensável não divulgar o lançamento de um amigo. Sei bem a batalha que é, na editora que for.

Agora é deixar o livro caminhar com as próprias pernas, se arrastar com as próprias patas, e focar no próximo, que estou rascunhando há um tempo, ainda não encontrei a estrutura ideal, e está exigindo muita pesquisa, leitura. Não ajuda a fila interminável dos contemporâneos, dos colegas, que não posso deixar de ler...

Passei as últimas semanas literalmente trancado neste apartamento, terminando uma tradução, trabalhando num pequeno projeto para o ano que vem, deixando minha barba crescer, meu cabelo crescer emaranhado, sem precisar de xampu e desodorante, sendo visitado ocasionalmente por pedreiros que estão quebrando o prédio a procura de vazamentos, que estão deixando meu banheiro pior do que o impossível... De tempos em tempos, a geladeira vazia ("só a luz, e o ar...") me obriga a ir ao mercado em frente; só então me olho no espelho do elevador, confirmo que envelheci 40 anos, e penso se não deveria ao menos ter passado uma escovinha na minha camiseta cheia de pelos de coelho. Dia desses serei barrado no mercado como mendigo (marcado no bairro como banido).

Gaia sempre comigo. 

A coelha é minha grande companheira, sempre. É um objeto inanimado, claro, fruto da minha imaginação - animal de estimação só faz sentido para quem tem. Mas responde ao que falo, me obriga a verbalizar, é a única que esquenta minhas cordas vocais. Trancados os dois aqui, ela se torna extremamente carente, quer carinho o tempo todo, é o que me obriga a levantar todas as manhãs para dar comida, está sempre desperta-saltitante nos filmes de insônia da madrugada.

A insônia é fruto dessa absoluta falta de horário, efeito da cafeína que me deixa mais acordado do que produtivo. Será que não posso mais nem isso? Não sei se é sintoma residual dos excessos da juventude, de uma genética fodida; há anos que não uso nenhuma droga ilícita, nunca tomei psicoativos, o álcool sempre acalma, mas estou dando um tempo; agora é a cafeína que me ferra. Li esses dias de um macaco que sofreu overdose de cafeína na índia. Não é preciso ir tão longe, sinto o macaco dentro de mim. Nessa vida-água-parada-aquário-sem-bolhas o café tem efeito absurdo. Começo a tretar nas redes sociais, escrevo emails destruidores ao meu pai-fascista, volto a postar neste blog... Como o bêbado arrependido do que disse, ou Mr. Hyde dos baristas, não me reconheço sob efeito de cafeína; sem café sou mais silencioso, consciente e depressivo.

Mas sou feliz porque ainda tenho marido... acho; acho que ele está na cozinha. Temos nos visto pouco, última vez há quinze dias, falado pouco. Exilado em Maresias, vive para o restaurante, mesmo quando estou lá ele não está comigo. Devo voltar para lá no final do mês e passar o verão - a casa é grande e será bem vinda a companhia de amigos.



Antes disso, tenho a viagem de "imersão" na literatura de horror, organizada pela Cássia Carrenho. Parece que restam ainda 2 das 15 vagas, porque teve gente que desistiu. Tenho lido o formulário de inscrição dos participantes e tem muita gente interessante, de diferentes backgrounds. Acho que serão dias de conversas muito enriquecedoras. Sou fã da Ilana Casoy e vai ser lindo ver tudo o que ela tem a dizer; a Mariana Rolier é grande editora e vou aprender muito com o "outro lado" trazido por ela; Raphael é eficientíssimo e traz conquistas impressionantes na literatura comercial. Eu nunca me considero um modelo nem tenho fórmulas para ensinar ninguém a escrever, não dou oficinas. Mas acho que tenho alguma experiência para dividir - bem ou mal, são quinze anos de carreira, nove livros publicados pelas maiores editoras do país e... SESSENTA livros traduzidos.

(Prometo lavar os cabelos, passar desodorante e maneirar na cafeína para o encontro).

Informações aqui:

https://www.cassiacarrenho.com/fim-de-semana-do-terror




31/10/2017

OS MELHORES FILMES DE TERROR DE 2017

"Get Out"

Cedo demais para listas de melhores do ano? AH! Mas é Halloween e não tenho nada melhor a postar. Resolvi adiantar um mês e já dar meu veredito, até porque 2017 foi um ano fértil para o terror (e para o pós-terror). Tanto que geralmente minha lista é recheada de filmes obscuros, amadores e alternativos, porque são os que trazem algo de novo para o gênero. Mas este ano está surpreendentemente mainstream – ótimo sinal desse novo fôlego.

As maiores decepções foram as novas sequências de “Leatherface” e “O Chamado”, mas tem ótimas sequências na lista. Vai aí, em ordem mais ou menos aleatória:

A AUTOPSIA DE JANE DOE


Num necrotério, pai e filho fazem a autópsia do corpo de uma mulher encontrada numa cena do crime. Aos poucos vão percebendo que ela pode ser mais assassina do que vítima. Ótimos atores e bom clima de terror, com um “monstro” que passa o filme inteiro morto.

THE EYES OF MY MOTHER


Dos mais alternativos da lista, é um filme minimalista em preto e branco, que acompanha uma mulher portuguesa que vive sozinha numa casa no campo e tem estranhas formas de socializar... É terror, pós-terror e filme de arte com pitadas de torture porn. 

BETTER WATCH OUT


Às vésperas do Natal, uma babysitter cuida de um garoto de doze anos, quando percebe que a casa foi invadida. Começa como um filme padrão de invasão e se desdobra em muitas surpresas. Divertidíssimo. 

GET OUT


Um dos grandes responsáveis por toda essa onda de “pós-terror.” Um rapaz negro vai passar o fim de semana com a família da namorada branca. Inicialmente desconfortável com um racismo velado, ele descobre que há ameaças bem mais explícitas. Dos melhores do ano, apesar do terceiro ato meio bagaceiro.

CREEP 2


É found footage, e sequência do filme que entrou na minha lista ano passado. É basicamente uma entrevista com um serial killer, uma pessoa tão demente que fica entre o cômico e o... creepy. Novamente, um dos melhores do ano - talvez melhor do que o primeiro -, e tudo sustentado por diálogos e atuações foda. (Tá em 100% no Rotten Tomatoes)

A MORTE TE DÁ PARABÉNS


Um slasher adolescente, mistura improvável de “Pânico” com “Feitiço do Tempo”. Uma garota é assassinada no dia do seu aniversário, apenas para acordar no mesmo dia e ser assassinada de novo e de novo, até conseguir quebrar a maldição. Divertidíssimo.

RAW


Ao entrar na faculdade de veterinária, uma menina vegetariana é obrigada a comer carne. A partir daí, desenvolve um apetite macabro por sangue. Foi promovido como sendo um filme mais pesado do que é – na verdade é um terror bem adolescente, com algumas cenas nojentas e uma interessante alegoria do despertar da sexualidade.

 GERALD´S GAME


Outra adaptação de Stephen King, direto para a Netflix. Durante um jogo sexual, o marido morre de infarto e deixa a esposa acorrentada na cama. Enquanto ela pensa em maneiras de escapar, relembra um passado de abusos pelos homens de sua vida. Podia ter sido melhor executado, mas vale a pena pelo argumento e o minimalismo.

CULT OF CHUCKY


Já esperava algo bagaceiro – e não deixa de ser. Mas também me surpreendi muito com o novo filme do Chucky, que tem uma pegada meio surrealista no primeiro ato, e uma nova direção fantástica para o Brinquedo Assassino.

MOTHER!


Melhor terror do ano?  Provavelmente. Tá certo que Aronofsky pesa a mão no terceiro ato, e fica um pouco mais tosco-cômico do que eu esperava. Mas não dá para negar a força do filme mais discutido do ano. Eu prefiro esquecer o final cafona e ver como um filme de invasão à lá Funny Games.


E as “menções honrosas”... ou melhor, os que entrariam para o TOP20 (porque tem umas belas podreiras aí):

PREVENGE: Uma grávida assassina.
VIDA: Um genérico de Alien, melhor do que Covenant.
THE DEVIL´S CANDY: Filme de invasão com satanismo no meio.
HOUNDS OF LOVE: Soft Torture porn.
PITCHFORK: Slasher bagaceiro, com um bom psicopata.
DON´T KNOCK TWICE: Genérico de “O Chamado”, melhor do que a sequência deste ano.
THE LURE: Músical de terror com sereias assassinas.
SUPER DARK TIMES: Um roteiro meio padrão de "adolescentes fazem uma cagada e tem de esconder um corpo", mas muito bem executado. 
IT STAINS THE SAND RED: Uma vagaba caminha pelo deserto com um zumbi sempre a poucos passos atrás.
 IT: Gosto mais da parte “Conta Comigo”, das crianças, do que do terror em si. Tem cenas demais com o palhaço e uma CG pavorosa. Mas é uma boa sessão da tarde.


(E não, nem “Ao Cair da Noite”, nem “Anabelle”, nem “Fragmentado” entrariam no meu TOP 20.)


27/10/2017

TRÊS GAYS

Trevisan
Meu pai me proporcionou a primeira experiência de exílio. A de ser um homossexual e, por isso, alijado no âmbito paterno. (...) Como não tem a compreensão do que se passa consigo nem do que significa para a cultura do entorno, a criança “diferente” não tem elementos mínimos para se defender emocional e fisicamente da desaprovação e desconforto que a bombardeiam.

João Silvério Trevisan acaba de voltar em grande estilo com “Pai, Pai”, livro de memórias e romance de formação em que analisa sua formação como homem, homossexual e autor a partir de sua relação com o pai (ou a falta dela). O Trevisan-senior era um alcoólatra, marido violento e péssimo padeiro, que foi pouco a pouco se tornando o patético bêbado da cidade. Talvez por eu ser filho de um pai verdadeiramente ausente – meus pais se separaram quando eu era bem pequeno e ele nunca participou da minha educação, nunca convivemos; passei anos sem vê-lo – questiono muito da visão pessoal do livro (a começar pela noção do autor de “pai ausente”). Talvez eu mesmo tenha uma visão equivocada sobre o peso do pai na minha vida – mas desde a adolescência que aceitei o conforto dessa ausência. De meu pai aproveitei apenas a arte, o resto não me faz falta desde a infância; nunca busquei substitutos, nunca procurei “figuras paternas” – aliás, nunca suportei figuras paternas. Mas veja só, já comecei a auto-análise...

Um grande texto tem esse poder, de nos fazer refletir sobre nós mesmos, e “Pai, Pai” é dos maiores do ano. Para além da experiência pessoal do autor, é um rico panorama do Brasil pré-pós-ditadura e da militância dos movimentos LGBT. A parte central do romance – os anos de adolescência passados no seminário – é minha favorita, onde há o lirismo do descobrimento, da inocência, fundamentados (e não contraditos) pelos estudos bíblicos.

Em diferentes circunstâncias, tenho sido desautorizado como escritor de literatura brasileira e relegado a um nicho: o de “escritor de viados”. Causa espanto que se dê à minha sexualidade tão extraordinária relevância ao ponto de suplantar o interesse por minha literatura. Em outras palavras, faça eu o que fizer, serei antes e acima de tudo “o viado”.

Talvez por eu ser homossexual, talvez por ser de outra geração e nunca ter sofrido desse estigma, sempre vi, sim, João Silvério Trevisan como o “escritor de viados”, e por isso mesmo um exemplo e um herói. Sabemos bem como nos faltam modelos que assumam esse papel sem meias palavras e comprem essa briga (e por isso mesmo me pareça tão pau mole quando Ney Matogrosso renegue o rótulo de gay e se declare ser-humana). O que talvez incomode especialmente em Trevisan seja o discurso não apenas de aceitação, mas de elevar à relação homo a algo além do sexual, além do transgressor, ao sagrado do amor, com o qual até a sexualidade hétero tem conflitos. O aspecto sagrado no amor tem muito de assexuado – e colocar a homossexualidade na equação é bugar de vez.  
 Eu luto com a consciência de que está em jogo algo para mim sagrado: o direito de amar.

Mas também não dá para levar tão a sério a perseguição a um autor que já ganhou três vezes o Prêmio Jabuti. No Brasil, não há muito mais a conquistar como autor, infelizmente. 

“Pai, Pai” já está nas livrarias, publicado pela Alfaguara. E quem está em São Paulo (e ler isso a tempo), tem lançamento e debate amanhã (sábado 28/10), 11h, na Mário de Andrade.




Se Trevisan é nosso “Pai” (mesmo que não queira assumir o papel) é lindo ver novas gerações de autores homossexuais levando o tema para outros universos.

Deve ser por isso que proíbem que se fale sobre nós. Para que, a cada nova geração, não fiquemos sabendo de todos aqueles que vieram antes.

Samir Machado de Machado é um gaúcho pouco mais novo do que eu que publica há mais de uma década, mas que ganhou mais repercussão a partir do ano passado com seu (ótimo) Homens Elegantes, romanção histórico gay passado no século XVIII, lançado pela Rocco, que mistura espionagem, capa-espada e manifesto gay, com muita elegância. Se eu tinha qualquer pretensão de ser o príncipe dândi da literatura brasileira, perdi o posto para Samir, não só por seus cachecóis, mas principalmente por seu texto:

Aos olhos do amante neófito, o corpo do outro é um mapa inexplorado com seus picos, vales e tensos caminhos óculos esperando para serem desbravados, esperando por quem os clame para si. Gonçalo transborda de uma vivacidade instintiva, preocupado em agradar sem saber bem como, aguardando que lhe indiquem o próximo passo com ansiedade. Desajeitado, não sabe bem o que fazer com as mãos – ora as tem soltas ao longo do corpo, agarrando os lençóis, ora as usa para segurar a cabeça de Érico entre suas coxas. Enfim se decide: as põe por baixo da almofada sob a nuca, como um São Sebastião, quando flexiona os braços e arqueia o abdome num longo suspiro, enquanto recebe aquela demonstração de bom uso da língua portuguesa. Ao fim de uma sequência de longas e nostálgicas sugadas, Érico troça ao redor do bálano e aplica um leve mordisco na ponta. A noite chega ao seu ápice. Gonçalo estremece, o êxtase o faz contrair a barriga e estufar o peito uma última vez, sua seiva flui aluvial e sobeja.

Samir

Dando uma guinada radical na elegância, cuspindo no amor e chutando as convenções, temos ainda o Hugo Guimarães, que está com novo romance no forno (ainda não vendido). Outrora meu “protegido” - já assinei a orelha de um (ótimo) livro de contos dele -, mas me afastei correndo quando constatei que para alguém escrever aquele tipo de coisa não dava para ser bom da cabeça. Hugo tem uma escrita violenta, visceral e espontânea. Se Trevisan é um intelectual com formação de seminarista e repertório dos clássicos (da literatura ao cinema à música), Hugo é um autor punk, fã de horror e praticante de atletismo.

Hugo

Está no atletismo, aliás, o diferencial mais interessante de “Igor na Chuva”, esse seu romance inédito que li há pouco e que ganhou menção honrosa no Programa Nascente na USP. É uma auto-ficção de um jovem já não tão jovem, alimentando sonhos platônicos numa São Paulo inundada. Menos violento do que seus anteriores, tem um sarcasmo delicioso e devaneios geniais.


Quando vou a um encontro sexual, eu normalmente não me banho, apenas lavo o pênis em uma pia. Assim como um homem. Assim como um hétero? Não, mas apenas como um homem. Qualquer homem. Eu não sou um homem? Imagine uma mulher negra, filha de escravos, na América dos anos de 1900, tentando participar de um movimento feminista argumentando “Eu não sou uma mulher?” com aquelas senhoras brancas de longas saias. Claro que ela é. É o mesmo que digo aqui. Eu não sou um homem? Um homem feio, mas ainda um homem. (...) Sobre o processo de antropoformização, processo esse em que um animal tende a sentir-se e agir como se fosse um ser humano. Os veterinários dizem que é muito comum acontecer em animais domésticos que não tem contato com outros animais. Faz sentido ao que determinado animal desse tipo deve pensar “se só há seres humanos à minha volta, então eu também sou um ser humano!”. Eu não me comporto como um animal e não sofri o processo de zoomorfização, perdão lhe desapontar se você pensou que era isso que eu ia dizer na sequência. O que eu ia dizer é que sofri um processo similar quando fui aceito na melhor universidade do país, quando comecei a treinar atletismo por lá e por consequência conviver com garotos tão bonitos todos os dias: acho que passei a achar que eu também era um garoto bonito e, logo, ter “acesso” a eles. Apenas não, apenas não sei explicar, desde que sou um ser como o macaco e sim, eu vejo o meu próprio reflexo no espelho. 

Já eu, quando farei meu "romance gay", você pergunta? Bem, não gosto de me limitar a rótulos, sou antes de tudo um "autor", não um "autor gay", assim como não me interesso por homens, me interesso por pessoas... (pessoas com pinto), estou apenas confuso... sou um ser-humano, uma cera-humana... Ah, tudo bobagem. Se ainda não fiz um romance sobre o sagrado do amor gay é só porque no meu mundo não existe sagrado e não exite amor. Mas os viados estão sempre lá. 





23/10/2017

VOTUPORANGA, SÃO PAULO, SÃO ROQUE E FIM!

Quinta agora, com Reynaldo Damázio.

Se há algo de que não posso me queixar este ano é dos eventos. Antes mesmo de lançar o livro novo o povo lembrou que eu existo e fui convidado para vinte e quatro (hummm) mesas, que movimentaram meus dias, minha carreira e minha conta bancária... de leve.

Outubro e novembro geralmente são os meses mais concorridos - nos anos mais gordos era também quando eu conseguia viajar para fora - mas estranhamente houve uma puxada de freio por aqui - espero que não seja prenúncio de um 2018 funesto. Felizmente as traduções também voltaram, então tá dando para ir levando.

Mas tenho UMA mesa este mês, na próxima quinta, em Votuporanga, 19h, mediada pelo querido Reynaldo Damazio, dentro da programação do FLIV. A programação completa pode ser vista aqui:

http://www.flivotuporanga.com.br/2017/home/

Mês que vem por enquanto tem duas. Dia 11/11, às 11h, faço o Segundas Intenções, com o Manuel da Costa Pinto, na Biblioteca Parque Villa-Lobos, aqui em São Paulo.


E no final de semana de 17 a 19 de novembro participarei de uma insanidade idealizada pela Cássia Carrenho: o "Fim de Semana do Terror". Serão três dias de imersão sobre literatura de gênero (terror, suspense, thriller e policial), num sítio em São Roque, interior de SP, com conversas, mesas e exercícios com especialistas do gênero. Além de mim, participam a Ilana Casoy, pesquisadora foda de crimes reais, que também tem se aventurado na ficção; a Mariana Rolier, editora atualmente da Harper Collins, que já passou pelas maiores do Brasil (e para quem já fiz mais de uma dúzia de traduções); e o Raphael Montes, que dispensa apresentações. O que não falta a todos é experiência. Deve ser um fim de semana intenso - e divertido. O encontro ainda renderá uma publicação de contos de terror, nossos e dos participantes.

Cássia, eu e Ilana, numa noite normal. 

Da última vez que falei com a Cássia restavam 5 vagas (do total de 15), então quem quiser ir é melhor correr. (Não é baratinho, mas afinal o valor inclui as diárias e a alimentação, além das nossas mesas).

Mais detalhes aqui: https://www.cassiacarrenho.com/fim-de-semana-do-terror



E quem tiver mais um convite por aí é só dizer que a gente se encaixa ;)


14/10/2017

DIA DA CRIANÇA



Feriado de Dia das Crianças - embora alguns insistam que é dia da Nossa Senhora Aparecida, como se o Brasil não fosse um país laico... Vim no começo da semana para Maresias com irmã, cunhado, coelha, sobrinha. Bom que o trabalho do Murilo possa proporcionar isso. Bom que minha sobrinha possa aproveitar. Sorte dela ter um tio que vive em pecado, num relacionamento homossexual. Se eu fosse hétero, casado com uma mulher, minha mulher receberia ainda menos do que eu, pois as mulheres recebem menos do que os homens, e teríamos de usar o dinheiro para constituir família, não daria para manter duas casas, na praia e em São Paulo, não teria quarto extra para receber visitas, não daria para comprar filé para minha sobrinha...

"Você é o tio provedor com casa na praia", já me disse uma vez minha irmã. Questionei também o quanto eu seria "o tio gay", mas isso ainda não parece fazer sentido. Filha de pais artistas, estudando num colégio (particular) com enfoque alternativo, Valentina já nasceu acostumada que existem casais de meninos, de meninas, de homem com mulher, para ela ainda não é estranho. Os relacionamentos simplesmente são assim.


Valentina na praia. 
É curioso ver minha sobrinha, as novas configurações da minha família, o quanto se repete, o quanto tentamos reproduzir aquele modelo de infância.

Também tive tios provedores (no caso, tios mais "ricos" do que gays) e me lembro de tantas férias, feriados, que viajávamos para a praia. Eu odiava. Odiava tanto a ponto de lembrar como negativo, embora a visão que tenha me ficado hoje seja positiva: uma casa em Ilhabela com uma praia particular em que conseguíamos pegar lagostas, passeios de barco, uma piscina com borda infinita...

Quando a mãe tinha mais ou menos a idade dele atual, já separada do marido, cercada de amigos boêmios e namorados de ocasião, levando os filhos a tiracolo para viagens nos feriados, no Réveillon. Os adultos ficavam a beber, a fumar e a rir numa mesa pós-jantar, parecendo sempre ter tanto a conversar, em conversas que pareciam tão desinteressantes. As crianças todas eram deixadas umas às outras, com a expectativa de que espelhassem a amizade dos adultos, sem aditivo algum para ajudar. Ele aos sete, tendo de se tornar amigo instantâneo de um menino de treze, de uma menina de oito, se aproximava mais de um de seis...

É essa lembrança que tenho principalmente da infância: minha incapacidade de ser feliz. Meu medo de tudo, minha inadequação, minha impossibilidade de ser quem eu era porque tinha de cumprir algum papel que esperavam de mim, como menino: jogar bola, transgredir, ficar amigo de desconhecidos. Viagens nas férias e feriados eram sentidas por mim como um grande desperdício de momentos preciosos em que eu poderia ficar sozinho - porque mais do que tudo eu odiava a escola. Tudo o que eu mais queria era ficar no meu quarto jogando videogame ou brincando com meus bonecos. Mas os adultos insistiam que eu deveria ser feliz!


Mini-me. 

A insistência deve ter servido para algo. Se hoje lembro da infância como uma época bem sofrida, estou longe de ser o menino assustado que fui. E não há melhor definição de felicidade para mim do que viagens, praias, lagostas, piscinas com borda infinita... 

Felizmente Valentina já parece ter nascido com mais vocação para ser feliz. Deve ter puxado minha irmã, que, ao contrário de mim, sempre foi a integrada e popular, onde quer que estivesse. Ela adora viajar para praia - mas também não tem de passar por esse confronto de dividir; é fruto de uma geração que tem poucos filhos, poucos primos, uma atenção integral dos adultos. 

Eu mesmo tenho cada vez menos vontade de ter filhos. Já me satisfaço com literatura, coelha, sobrinha. Inclusive estou longe de ser o melhor tio, não tenho muita paciência, empatia e didática. Tento manter uma relação de igual para igual, mas o que seria isso entre uma menina de cinco anos e eu? Esses dias ela escondeu o diário dela e me desafiou a encontrar. Encontrei o diário dentro da casa, quando ela estava do lado de fora. Tranquei a porta e fiquei mostrando pra ela através do vidro. Nunca ela chorou tanto. Eu só estava brincando. Será que seria mais fácil com um menino? Não aprendi ainda essas regras de ser adulto. 

Mas esse feriado não foi só sofrimento, não foi só choro. É bom ter a companhia de minha irmã Rhena - tenho quatro irmãos, mas ela foi a única que foi criada comigo e tem um histórico em comum. Tivemos passeios, praia, churrasco e estrogonofe... Pensei o quanto estrogonofe era um prato fetiche das crianças dos anos 80, queria saber se funcionaria na minha sobrinha "Geração Dez". Comprei o melhor filé, cogumelos orgânicos, molhos flambados para fazer um estrogonofe autêntico... E ela gostou. Mas acho que não causou grande sensação. 

Presente de Dia das Crianças mesmo eu não comprei... Meio que esqueci, meio que achei que minha irmã iria considerar a data capitalística demais... Mas vi que a Valentina apareceu com um novo bichinho de pelúcia dado por minha mãe. 

Eu: Olha o [bichinho do] Treta News!
Ela: Não é o Tetonildo, é um guaxinim.
Eu [que sempre fui geek de zoologia]: Isso aí não é um guaxinim....
Ela: É sim, a moça da Ri Happy disse...
Eu [dando um google]: Isso é um panda vermelho.
Ela: Não, a moça da Ri Happy disse...
Eu: Você confia no seu tio ou na moça da Ri Happy? Se ela entendesse de bicho estaria trabalhando num zoológico.
Ela: Mas... mas...
Eu: E vou chamar de Tetonildo.
A menina começou o dia das crianças chorando.
A pelúcia, o "Tetonildo" do Treta News, o panda vermelho real. Tudo panda vermelho. 

Por sinal, minha irmã dirige esse belo espetáculo de improviso com DOZE mulheres empoderadas no palco, até o final do mês, no Sérgio Cardoso.)


25/09/2017

PRÉ-PÓS-URBANO

Igreja de Satã

A natureza é madrasta. A verdade da mata é impenetrável, intransponível, inabitável, não se pode pôr os pés lá. Não há trilhas, não há frutos, não há para onde avançar nem para onde fugir. Tudo se torna um emaranhado de ramos, picões, cipós. O mato impede o avanço. A mata impede o recuo. Sementes duelam com sementes que duelam com o solo que duelam com formigas que querem levar as sementes para longe. Mamíferos subindo pelas árvores. Pássaros de galho em galho. Frutas mordidas, madeira corroída, nada é harmônico e nada ornamental. Para se ter um belo bosque em seu terreno é preciso uma equipe de paisagistas para vencer a guerra. Ou muito esforço, suor e sangue derramado.


Minha relação pessoal com a natureza sempre foi das mais suaves. Como ser ultra-urbano, nascido e criado em São Paulo (aprendi a andar de bicicleta – aos doze anos – no Ibirapuera, que tristeza), nutro uma visão bucólica do campo, da vida interiorana, como algo que perdi desde o berço. A visão perversa da natureza em BIOFOBIA não é a minha (assim como não é exatamente minha a visão de paternidade – e dos coelhos, por sinal – em Neve Negra); a literatura me serve para explorar o outro lado, entender outros lados. (Se fosse para escrever um romance gay, por exemplo, a mim me interessaria muito mais o ponto de vista do homofóbico.) 

Cachoeira. 

E agora, com marido morando em Maresias, tenho o contato com a natureza renovado. Ainda que não seja fácil administrar essa distância, a mudança dele no final do ano passado deu uma nova configuração não-planejada para a minha vida. E se tem algo que prezo e busco é novas configurações, porque a vida de um escritor (ou de qualquer um) pode ser um poço fundo de tédio, e se me afastei da vida acadêmica, dos mestrados e doutorados foi para VIVER!



Assim, aqui em Maresias, sábado Murilo me acordou seis da manhã para fazermos uma trilha por uma reserva indígena em Boraceia, aqui do lado. Iniciativa do Secretário de Meio Ambiente do município, que queria fazer algumas fotos, e chamou figuras bacanas da região – incluindo o Murilo, como chef do Guató.

Murilo e o "Príncipe-Cacique"

Não nos avisaram que era trilha nível hard. Mais de cinco horas, ida e volta, com muitas subidas, mata fechada. Eu tenho uma resistência excepcional, mas minha forma física nos últimos anos está longe do auge. Fiquei orgulhoso de conseguir – os mais velhos e despreparados pararam no começo. A cachoeira destino final foi de certa forma decepcionante – gostosa, mas longe de ser paradisíaca; já estive em melhores – valeu mais por todo o percurso e contato com a natureza...


...ainda que o contato com a natureza tenha sido de certa forma decepcionante. Estávamos de fato em mata fechada, trilha pouco percorrida, aberta muitas vezes a facão, com subidas difíceis, descidas íngremes, cruzando riachos. Mas, num registro BIOFOBIA, não vimos fauna NENHUMA. Sério. Não havia pássaros cantando. Nenhum macaco. Pisávamos em folhas secas sem nenhuma cobra. Mesmo as formigas e insetos só eram sentidos pelas picadas – voltei com a perna carcomida. Só me lembro mesmo de ter visto uma ou outra aranha (e girinos, a cachoeira tinha girinos).


Mais interessante foi o contato com os Guaranis. Para penetrar na reserva deles, conversamos com o Cacique, ouvimos palestras sobre a luta indígena. Ele nos guiou até o começo da trilha, então nos deixou com “os príncipes”, seu filho e seu sobrinho, meninos pré-pós-púberes que podiam ter qualquer idade entre 13 e 18 (mas ao que parece tinham 18 e 22) que nos guiaram até o final. (Fiquei imaginando uma versão shakespeareana na linha de sucessão do cacicado, com os meninos se matando...).
Reserva.

Os “homens brancos” se comportaram. Eram na maior parte esportistas, gente que respeita a natureza, ainda que nem todos tenham a melhor inteligência social. Uma das meninas seguiu pela trilha fazendo perguntas ao sobrinho do cacique (o “príncipe ilegítimo que assassina o herdeiro”, pensava eu), de certa forma infantilizando-o como bom selvagem – “ah, ele é tão bonzinho!” Pós-trilha, também ouvi os discursos padrões de ataque aos índios como “eles se aproveitam para explorar a terra; eles só se vestem de índios para os turistas.” Isso não deixa de ser verdade. Os índios têm antenas Sky nas suas ocas, a área de convivência da reserva está cheia de lixo, e o discurso do Cacique tem muito de político. Mas não podemos esquecer que é de fato o povo nativo, nenhuma cultura é estática, e eles podem sim escolher o que absorvem da cultura de massa, da sociedade urbana. Quanto mais forem marginalizados, mais vão absorver o lixo que o capitalismo produz. 


Para mim foi uma expedição muito proveitosa, que uniu atividade física intensa com reflexão social; eu nunca tinha parado para pensar profundamente na questão indígena. Gerará um romance épico? Acho que não, deixo isso para você. Mas ampliou meu universo e delineou minhas coxas. 

TIREM AS CRIANÇAS DA SALA

(Publicado na Ilustríssima da Folha deste domingo) Do que devemos proteger nossas crianças? Como não ofender quem acredita no pecado? Que ga...