A Morte Sem Nome

Aqui serão colocados capítulos revistos, rescritos e renovados de A Morte Sem Nome, meu romance escrito aos 22 anos, publicado em 2004 e atualmente fora de catálogo.

Atualizações todas as sextas (sempre rolando para baixo). 

*

PRÓLOGO 

Só com o sangue derramado foi que percebi o quanto o chão estava sujo. Restos de insetos boiando nos coágulos, coágulos penetrando entre os tacos, tacos encardidos de poeira. Deixaria sequelas para sempre, no meu apartamento, coitado, tão humilde e desprezado. Por anos e anos, ratos mendigos e mosquitos preguiçosos viriam se alimentar dos meus restos. Entre as frestas, se eu esfregasse com vontade, abriria um buraco negro no meio do nada, meu apartamento. Coitado, tão humilde e desprezado. Talvez pudesse pentear meus cabelos então, no chão, penetrando entre os tacos. Ou talvez fossem apenas antenas das baratas...
           
Talvez sim, fosse hora de começar uma faxina. No meu apartamento, coitado, só sobrara eu. Sozinha, mas inteira, ainda. Que derramada pelo chão era apenas mais uma tentativa a ser esfregada. Ajoelhada, eu pensava o quanto valia a pena continuar. Esfregando, eu pensava o quanto valia a pena continuar. Vivendo ainda, eu sofria as conseqüências da minha última tentativa. De não ter conseguido, eu não reclamava, estava acostumada. A esfregar não. Por isso o chão.
           
Tão encardido estava meu apartamento. Faltava-me força para devolver-lhe o branco. Faltava-me sangue para pintá-lo de vermelho. Como fui viver assim? Nunca fui realmente, apenas me deixei levar. Não fui eu que escolhi a decoração, para combinar com o branco. Talvez tenha sido, que acumulei a sujeira. Para combinar com o vermelho, funciona. Mas não fiz coisa alguma. Minha decoração é um excesso de ausências. 
           
Ajoelhada, esfreguei o sangue e comecei a pensar no livro. Meu último romance terminava quando eu começava este. Meu primeiro, um verso escrito assim. Com a ponta da unha, movimentando os leucócitos, eu fiz o título. Me esqueci do nome. Um dia morro de amor. No outro esfrego o chão.
           
Pobre das mulheres que só têm suco de laranja a derramar. No meu chão há mais poesia do que vitamina C, para alimentar um batalhão. Que mal pode me fazer um resfriado? Meu sangue é o vírus da gripe derramado. Cura-se com detergente e desinfetante, lâminas descartáveis ou aquecidas em brasa. Cortando fundo, leve-o para longe, para fora de mim. Afinal, a vida é só. É só mais uma doença longa, paciente e terminal. 
           
Não quero mesmo viver para sempre, apenas experimentar mais uma forma de morrer. Apaixonada, é impossível sobreviver. Ao meu amor, devo esta pena. Aos que me amaram, dedico a espada. Em meu coração, corre esta intenção. Que se derrama é sangue, como paixão. Que se esfrega é poesia. Ainda que sem forma e despenteada. Ainda que fraca e encardida. Eu ainda carrego uma certa beleza dentro de mim. Eu acho que sim.

Cada vez que esfrego o chão, penso se não preciso mesmo de vitamina C. Umas boas laranjas para espremer são um santo remédio. Movimenta meus músculos, antes de escorrer ácidas pela minha garganta. Se eu espremo, não sobra nem uma gota, pode ter certeza. Mas não tenho fome, nem sede, nem intenção. Nem intenção alguma de matar os vírus que ainda circulam em mim, entre os tacos, como os insetos.

Sou só mais uma. Sou só, mas uma, suficiente para esfregar. Como no ritmo deste prédio inteiro numa manhã. As donas de casa em suas vassouras, rodos, detergentes. Com minha enchente, passo de um apartamento para outro. Uma única gota, vermelha, direto no tapete branco, faz tocar o alarme. Demoro a perceber que é a campainha. Tenho de abrir a porta, espere por mim, espere por mim. Espere um pouquinho, já estou indo, tudo vai secar com o tempo.
           
"Seu sangue manchou meu tapete angorá", infiltrou-se pelas frestas e passou de um apartamento para o outro. Como uma goteira, a vizinha pinga de leve no meu apartamento. Pisando em meus tacos, um corpo estranho em meu sangue. Eu sinto muito, mas sou só. Sou só uma e tenho tanto a esfregar. Com tapetes, manchas e vizinhas, fica difícil eu me concentrar. Sinto muito.

"Mas você tem de dar um jeito nessa hemorragia, ou eu chamo o síndico!" Um vazamento. Pinte de vermelho. Onde será que isso vai parar?
           
Meu sangue é denso. Mas eu posso lidar com ele. Basta esfregar e estará novo. Seu tapete angorá pode ficar comigo? Mando para a lavanderia. Nem precisa deixar de molho, nem precisa passar álcool. Há bastante nesta gota, talvez mais do que o Ministério advertiria, toque o alarme, muito mais paixão. Se você deixar cair uma brasa, pode pegar fogo. No prédio todo, vai ser uma gritaria. E eu vou ter de correr tanto que os cães no meu tornozelo vão perder o fôlego. Uma desgraça, meu amor. Pegando fogo, destrói tudo. Daí vai ser muito mais incômodo do que uma manchinha vermelha, tão linda. Sobre o branco do seu angorá, eu nem discuto. Uma beleza. Muito bom gosto, cara vizinha. Eu sinto muito. Deixe que eu cuido disso.
           
Alcoólatra-psicótica-piromaníaca, concluí da minha fama de bêbada, maluca e incendiária. Não ameacei ninguém, senhor policial, apenas me ofereci para cuidar de uma mancha. Se eu morasse no térreo, ninguém tocaria minha campainha. Se morasse na cobertura, seria assassina em série. Aqui no terceiro, estou salva.
           
Deixei que se fosse com suas reclamações. Quando ela voltasse, eu já teria mesmo muito mais a esfregar. Quisera eu ter um pouco mais de tempo para pensar. Mas são meus músculos agora que devem trabalhar. Esfregar. Não me deixe dispersar entre as frestas. Não me deixe cair num buraco negro. Salve minhas antenas, vitaminas, faça essa história funcionar.
           


Tanto demorei a cuidar da goteira, que precisei de um balde. Com muita água, sabão, esfreguei o sangue coagulado. Eu boiava como os insetos! No fundo do poço. Será que o sangue ainda escorre? Por minhas pernas, esfrego. Por que estou há tanto tempo? Mal posso respirar. Cansada, deitei sobre a poça. Perdi a consciência, tudo bem. Foi daí que comecei a lembrar...


OS SUICÍDIOS     
                                             

O que uma criança pode entender de amor? O que meu pai não podia entender? Uma menina de sete anos meu pai não entendia, muito jovem. Quando eu tinha sete anos, o amava mais do que qualquer um de nós dois poderia.
         
Ele não tinha estrutura para isso. Para ser pai, é preciso um pouco mais, aos vinte e quatro. Aos dezessete anos, ele me teve, nove meses em sua barriga. Ou assim pensava eu, sete anos depois, até minha mãe me puxar para dentro, me trancar no quarto e me privar da sobremesa. Eu era doce até demais para meu pai.

Mas isso não importa, ninguém dava importância. Porque eu era criança, ninguém percebia que meu fôlego rareava de vez em quando. Entusiasmo não, asma, não. Com a respiração me faltando, os adultos jantavam achando que era normal. Minha mãe partia o pudim tentando sublimar. Aquele sofrimento todo, aquele mal-estar que a gente chama de infância. Não pude evitar. Em meus sete anos, eu também achava que perder o fôlego fosse normal. Coma de boca-fechada, durma cedo, tira o dedo do nariz e feche os olhos. Se eu soubesse o que significava, teria poupado meu fôlego.
           
Engoli uma moeda, para que batessem nas minhas costas. Ninguém se importou. O valor era baixo. Esperavam que não entupisse o vaso. Me arrependeria de ter quebrado o cofrinho. Minha mãe não me daria mais um tostão. Nunca me fez perder a respiração o dinheiro que eu engolia. Como se fosse remédio, eu me sentava e fechava a boca, trancava a respiração. Até embaçar a vista, levava alguns minutos, e minha mãe reclamaria do meu silêncio, como reclamaria do meu entusiasmo. Eu tentava apenas não fazer diferença, não pensar, não falar, não olhar. Nem respirar eu podia. Ser louca em movimento ou ser louca contemplativa. Era uma questão de escolha. Que eu não tinha para onde correr era certeza. Absolutamente imóvel, até ser sacudida. Por minha mãe, eu seria internada. "Faça o favor de respirar, menina!", até eu cair.
           
Aos pés do meu pai, eu me atirava. Não precisava fazer mais nada, a não ser derreter. Em lágrimas e soluços, eu era sua filha preferida. Sua filha favorita. Sua filha, única, em seus braços. Ele se sentia homem ao me fazer mais criança. Chorando, eu o fazia mais pai. E ele contente por conseguir me fazer parar. Deitar. Dormir.
          
O que mais poderia um jovem vendedor de colchões?
           
Como minha mãe não conseguia, nunca conseguiu entender o que nem eu podia. Descobrir era sua obrigação, como mãe, me fazer parar, ainda cedo. Antes que fosse tarde, ela me mandou morar com meus tios. Respirar o ar do campo. Respirar ar puro. Contrair a febre do feno. Conter pensamentos viciados. Respirar. E eu mal pude soluçar aos pés do meu pai.

Lá as cigarras esperavam por mim.
           
Num sítio, morava com meu tio, minha tia e três primos, meninos. Eu era apenas mais uma. Boca na mesa, cabeça no travesseiro, pés para a escola. Tentei me concentrar apenas nessas coisas. Existir segundo as programações da família: comer, dormir, estudar. Brincar se tornava mais difícil. Representar toda a alegria, eu não conseguia. Embora meus primos comentassem que eu deveria. Ser louca não era mal de família. Meus tios diziam que eu deveria me esforçar mais um pouco. Para me integrar àquela vida era um esforço terrível. Longe do meu pai.
           
Alguns anos, sete, que eu arruinei. Sem escolha, meu pai nem podia me amar. Longe de mim, ele não fazia questão. De cumprir seu papel, só mesmo nos feriados. Santos dias para mim. Daí era diferente, longe de meus primos. Eu era filha única. Filhinha do papai. Entusiasmada, com as cigarras cantando sem mim. Eu perdia o fôlego.
           
Asma não, carência. Tentando inspirar todo o ar em volta de mim. Trancando no meu peito tudo o que estava à minha volta. E no fundo, naquele tempo, desde então, até hoje, para sempre, não sei se isso não é felicidade. Ou não é verdade que todas as crianças se sentem infelizes? - nenhuma criança chora de felicidade. Tudo é tão pouco e não preciso muito para tudo vir abaixo. Frágil, os ossos crescem e nos partem em pedaços. Era a morte. Hoje acho que faz parte da vida. Ser sacudida, ressuscitada, acordar todos os dias.
           
Até cair no chão. Aos pés do meu pai, eu chorava. E começava tudo de novo. De volta a casa do meu tio, me mandavam enfim. Fim do final.  De semana em semana, a paternidade do meu pai sobrava cada vez menos, pobre rapaz. Tão jovem a copular. Não sabia nada sobre isso, eu achava que ele estava pronto. Pobre criança, aquele homem. Minha mãe não, não tinha a menor pena de mim. Tinha culpa, de ter nascido. De um amor tão passageiro, transformou-se em berço de uma vida inteira. Fechando as portas para mim, abrindo as pernas para meu pai, sem contar os cadeados. Sem contar os meses para eu nascer. Sem contar as outras possibilidades. De me pôr pra fora, até me tirar de casa, foram sete anos. Sete anos da juventude de meu pai, que suguei para virar criança.
           
Até sufocar, foram sete anos também. No oitavo, descansei. Meu aniversário de oito anos foi uma tragédia. Embora todos tivessem a maior boa-vontade, não me diverti nem um pouco. Caiu num domingo de Páscoa. Meu aniversário foi desperdício de um feriado que eu poderia ter tido com meu pai. Tinha de dividir. Bexigas a estourar. Só ao meu lado havia doze crianças, e não me lembro o nome de nenhuma delas. Só me lembro do número, doze. Porque eu contei os pedaços de bolo, conforme ia cortando, nem ouvi o parabéns a você. Me preocupei com a contagem, para tentar esquecer o resto. Da minha mãe, eu nem me lembro. Só lembro do meu pai, vagamente. Por trás da chama da vela, ele cantava entusiasmado. Conforme a faca subia e descia no bolo, eu ia perdendo o foco. Da chama, do meu pai, pouco restava. Eu cortava o bolo e me esquecia de respirar. Tentava me concentrar. Apenas em cortar o bolo já fazia um grande esforço. Tentando esquecer todo o resto em doze lições. É hora, é hora, é hora. De tanta gente em volta, eu mal sentia eu mesma. É pique, é pique, é pique. Até perder o fôlego. Rá-tim-bum.
           

Minha vista escureceu, parabéns acabou, calaboca já morreu. Quem mandava no meu corpo já não era eu. Mergulhei. Já nem sei, o resto nem posso contar. Eu tinha oito anos de idade. E sufoquei.

                                                  *

           
Quando me olhei no espelho, já tinha envelhecido trinta e cinco. No canto do olho, atrás de um sorriso, na frente do espelho, uma tristeza a ser escondida. Entre os dentes, as marcas das minhas mordidas. Em meus cabelos, a vida se esvaindo. Penteei fio por fio. Escovei dente por dente. Maquiei olho por olho e me olhei novamente, no espelho.
            
Ainda estava lá, por trás de mim, entre os azulejos, jogado no ralo, tudo o que eu não pude esconder. Mofo nas frestas, cabelos na pia, sangue no vaso, sorrindo pra mim. Continuei a esfregar, pensando em branco. E quanto mais esfregava, mais sangue se espalhava. E de gotas fiz uma poça. E da poça fiz um lago. Do lago fiz um mar, para me afogar.
            
Me sentei na sala para fumar. Cigarro. Entre os dedos. Entre os dentes. Manchados de nicotina. Queimando com minha insegurança. Sumindo como fumaça. Cinzas ao chão, entre as frestas. Peguei a vassoura e a ordem, a ordem continuava a fugir de mim.
           
Minhas pegadas me seguiam por onde quer que eu fosse. Eu não podia escapar. E minhas impressões digitais manchavam o que quer que eu tocasse. Se tornavam cinzas, pó e mofo. Minhas mãos, meus lábios, meu pescoço e meu coração. A ser esfregada, a ser varrida, a ser escovada, nenhum banho daria conta. Minhas pegadas me seguiam onde quer que eu fosse e minhas impressões digitais estavam sempre em meus dedos.
           
Nos pratos sujos. No garfo e na faca. Na cozinha, meu sangue fresco escorrendo pela pia. Detergente, sabão em pó. Lavei a louça e os talheres. Espalhei milhares de cacos pelo chão. Pela cozinha. Minhas impressões em cada um deles. Minhas impressões no ralo. Minhas impressões na faca. Minhas impressões cortando a linha, envolta do meu pescoço.
          
No lixo. Jogada em pedacinhos. Virei os olhos para longe de tudo o que eu não podia mais. Suco de laranja. Ossos de frango. Um coração palpitando. Que pelo menos não vaze pela casa. Que o saco plástico resista ao meu peso.
          
No quarto, arrumei a cama. Troquei os lençóis e sacudi meus orgasmos, pela janela. Pelos ao vento. Sangue no colchão. Fronha amassada. Cada coberta trocada era um vinco a mais em meu rosto. No travesseiro. Me olhei no espelho e já não estava mais lá. Desarrumada. Troquei de roupa. Guardei o sorriso. Fechei botão por botão, cada qual na sua casa. Eu na minha, tentando fechar. Um quilo a mais, um quilo a menos. Pastéis de queijo para rechear. Vaso sanitário para vomitar. Seios pequenos para amamentar.
         
Quem pergunta? Quem procura? Entre as pernas, entre os dentes. Mordidas nos seios. Pelos na virilha. Sangue preso. Fecho solto. Barriga para dentro. Pernas de fora. Unha quebrada. Falta de cuidado. Olhei para o espelho para ver se ainda havia salvação. 
         
Você se tornou uma bela mulher, hein? O orgulho estapeava meu rosto e deixava marcas. Olhei atrás das orelhas, embaixo do armário. Procurei minhas meias e calcei os sapatos. Um de cada vez. Passo a passo eu consigo. Minhas pegadas ainda me seguiam, mas pelo menos eu estava de salto alto.
        
Olhei para o relógio. Era tarde. Mas ainda havia todo o tempo do mundo. A vida não esperava por mim. Lá fora, que o tempo passasse. Lá fora, que o o sol se pusesse. Lá fora, que o mundo acabasse. Eu tinha tempo de acabar com o meu. Fechava as janelas e trancava as portas. Desligava o rádio e o gás. A geladeira. Bebia as últimas gotas de água. Dava a última olhada no espelho. Me sentava na cadeira e esperava. Me sentava na cadeira a esperava. Me sentava na cadeira e esperava. Esperaria o tempo que fosse, o tempo que fosse para a minha morte chegar. 



                                                                      *

           
Acordo com o telefone tocando. Pigarreio, oscilo, vacilo, não consigo fazer sentido. Não consigo parecer desperta. Nem estava. Viva, mas inconsciente. Sonhando que me matava. A colisão do carro coincidiu exatamente com o toque do telefone. O ronco do caminhão. Uma buzina estridente. Não é essa a prova de que o tempo corre em paralelo, de que o tempo não corre? Que o tempo se arrasta e acontece tudo ao mesmo tempo. Meu sonho programado para acabar exatamente no ápice, no auge, na morte, exatamente quando o telefone tocava.

"Lorena, você está bem?" Estava dormindo, não queira colocar sintomas no meu sono. São duas e meia da manhã, normal. Natural que estivesse dormindo, naquela hora, oras. "Sua voz está estranha." É sono. Pigarro. Os fluxos internos estacionados.
           
Noite em claro, com luzes apagadas. Por ter dormido com um adolescente, me faziam perder o sono. A virgindade do meu pequeno davi escorria por entre minhas pernas. Agora é tarde, vamos conversar amanhã, outro dia. "Amanhã será tarde demais. Me deixe ir praí. Me deixe ficar com você. Não posso mais com meus pais. " Me deixe ir, davi.
 
Eu quero dormir. Quero me matar. Não consigo pensar. Não consigo pensar em nada bom o suficiente para manter meus olhos abertos. No meio da madrugada, eu prefiro desistir. Quero saber o que há além. Além do ronco do caminhão e o telefone tocando. Roncando. Amanhã a gente conversa melhor. Não adianta chorar pelo leite derramado. "Eu preciso de você. Precisa de mim, Lorena, eu sei. Que longe de mim você não se aguenta." Longe de mim, tentar magoá-lo. Mas não posso mais passar uma noite com você. Longe de você, eu durmo, só assim.
           
Consigo dormir até o telefone tocar novamente. Dessa vez não me desperta de nada. Dessa vez estou bem viva e acordada. Ancorada na realidade. Sonho estar deitada na cama ao lado do telefone, com o telefone prestes a tocar. Sonho que a qualquer momento vou acordar. Sonho que nunca mais vou conseguir dormir. Sonho com insônia. Sonho acordada.

"Lorena, você não está bem..." Bem cansada. "Eu não vivo sem você." E tem medo que eu me mate. Davi, agora é tarde. Preciso dormir. "Não vá se matar", foi você quem sugeriu. Não vou resistir. Quero apenas dormir. Com o telefone no travesseiro, que sua voz cante para eu ninar. "Lorena, Lorena, não vá se matar." Longe de mim. Só quero dormir. Ao seu lado, eu não posso mais. Aguentar seu amor é muito para mim. Sei que é assim, também já fui virgem. Também já fui virgem, ouviu? Mas dormi em seguida. "Lorena, Lorena, você não pode dormir" Com você, eu não posso.
           
"Ainda estaí? Ainda estaí?" Me deixe dormir! "Lorena, você precisa de ajuda" De um menino de quatorze anos, tenho de ouvir isso. É você quem me liga de madrugada. "É pra manter você ligada. Lorena, você precisa de mim." E eu preciso de você? Davi, me deixe dormir.
           
Fora do gancho, os lençóis são mais macios. A noite é mais azul. A cigarra canta mais alto do que o telefone tocando. Agora estou no campo. Para me chamar, o vento faz uma curva, entre as folhas das árvores. Há corujas, morcegos, morcegos cantam, penso de onde vai brotar minha morte. Seria mais poética, sem telefone, nem campainha, dormiria melhor. Sem tantas tentações, seria mais feliz? Dormiria até não poder mais, sem o telefone para me despertar.

 "Não me deixe fora do gancho, Lorena. Eu te amo, por longos catorze anos." (Catorze centímetros nem tão longos, eu diria.) “Eu te amo por catorze anos de fome.”
           
Até meu apartamento, conduziu sua adolescência. Eu dormia inconsciente dos perigos que ele temia. Tocar a campainha era tudo o que precisava. Para me acordar, foi um pulo. Da cama, queria morrer. "Me deixe dormir!"
           
"Lorena, Lorena, abra a porta para mim. Não me deixe esperando nesse vão." Em vão, ele esperava. Por mim, poderia ficar por lá. E pelos vizinhos? Nem vou me importar. Que seus hormônios desafinem na minha porta, em vão. Eu tenho uma boa dose, uma hiperdose, uma overdose correndo no meu sangue. Nada me fará levantar. "Lorena, eu te amo. Não deixe meu amor acabar assim." Assim, seria difícil. Fiz um esforço, reuni minhas juntas e escavei um túnel por entre os lençóis. Estou indo, meu amor. "Abra a porta para mim." Qual delas? Primeiro, preciso achar o interruptor. Preso aos meus pés, o lençol. No teto, as moscas, ao meu lado. O labirinto da madrugada, na hiperdosagem do meu sono. Não gosto da inclinação do meu apartamento, me enjoa. A inclinação da minha vida também tento mudar. "Lorena, Lorena, não deixe meu amor morrer assim."
           
Pela última vez, abriria a porta, para ele. Me deixe achar a chave, que essas coisas são burocráticas. Não basta a gente querer, sabe? Não basta a intenção. Para eu abrir a porta para você é preciso encontrar dentes de metal, que se encaixarão perfeitamente com dentes de metal, ranhuras com ranhuras, chave na fechadura – oh! Que burocracia. Antes de o sol nascer, eu consigo.

"Não, abra a porta, ou eu chamo a polícia!" Quando encontrarem meu corpo será tarde. Já é tarde, davi, vá embora. "Me deixe dormir com você, Lorena. Dormiremos juntos. Morreremos para sempre." Com você, eu não consigo. Achar a chave, só preciso achar a chave. Antes que seja tarde, a polícia não virá. Já é tarde. Então, espere só um minuto, davi. "Não me faça esperar em vão."
           
Não. Consegui apenas me deitar no sofá. Do outro lado, a porta, do meu lado, a chave. Um oceano entre nós, davi, uma noite a mergulhar. "Não desista. Abra a porta, Lorena. Faça isso por mim." Ah, você pode entrar, mas abra você mesmo. Consegue um chaveiro? Um mandato judicial? Vá, é só vencer a burocracia das engrenagens. Estou muito cansada. Não quero me levantar. Vou jogar a chave pra você. Por debaixo da porta, você consegue pegar? Mas nem vou me levantar, hein? Espero que eu tenha boa pontaria. Não posso deixar pra outro dia? "Abra a porta Lorena, ou eu chamo a polícia." Já é tarde, menino, demais. Mas jogo a chave para você. Tenho péssima pontaria. Para jogar por debaixo da porta, precisaria estar mais sóbria. Nunca estive com tanto sono assim. Nem consigo me levantar. Para esses males, existe remédio. São miligramas e miligramas correndo no meu sangue e uma dose a mais ao lado da chave. Será mais fácil acertar a pontaria. "Nem pense nisso. Me jogue a chave, me jogue a chave." Tenho de esticar o braço. Ai, tantas juntas dormentes. Davi, deixe para outro dia, o seu amor. Pode morrer ao meu lado, mas viva por outra mulher. Já não tenho pontaria, nem vontade de acertar.
           
A pílula na garganta, foi fácil, mais que a chave na fechadura. Agora não há nada ao lado da chave, estamos todos contra ela. Davi, me deixe dormir, agora é tarde. Para ouvir meia dúzia de nãos, para fechar olhos e ouvidos, não levou nem mais trinta segundos. De um amor adolescente, eu não quero viver culpada. Sinto muito, davi, você me encontrou cedo demais.


                                                          *

           
"Você ainda não comeu nada. Não deixe a comida esfriando, Letícia." Meu nome era Lorena. Há dezenove anos, ele ainda não percebera. Sempre me chamou de Letícia, meu pai, porque Lorena era nome escolhido por minha mãe. Nem sei se eu mesma concordava ou não, talvez não, mas continuava com o mesmo cartão de visita. Lorena é meu nome, eu não tenho escolha. "Tem várias. Peixe? Você sempre foi louca por peixe." Está louco? Louca por peixe? Tenho alergia, será que nunca soube? Uma espinha presa na minha garganta. Não estou com fome.
           
Entre travessas, pápricas e facas, havia um assunto para ser resolvido, ou dois, ou nenhum. Há tempos não nos víamos, hein? Eu cresci, não muito, virei uma mocinha. Criei espinhas. Espinhas de peixe. Travando em minha garganta. Entediada, sem assunto, depois de dez anos longe de meu pai. Antes da sobremesa, teríamos de limpar o molho com o guardanapo. Ali, perto do queixo, não, do outro lado, mais pra cima, havia um veneno que escorria e eu odiava.  Odiava escorrer. Melhor ficar de boca fechada, então. Não havia nada para contar. Este jantar não faz sentido. Tenho de ir. Estou atrasada. Mas ele estava determinado a me manter. Na mesa, talvez fizesse aviãozinho. Para eu comer, música, velas e opções. Abra a boca e feche os olhos. Faça vista grossa e engula. Este lugar não é para nós, pai. Lugar para casais...
           
Um prato de comida bem fundo, depois outro, antepastos, guarnições, couverts, buffets, rechauds... "Não vai se servir?" Um jantar como esse, não me serve. "Então estenda o pulso, me dê sua mão, tenho um presente pra você."

Pulseira de contas, bem feminina. Não me serve, escorrega por meu pulso fino e minha mão pequena. Meu pai sente muito. Meus ossos à mostra, sobre a toalha. "Letícia, você está muito magra..." Sim, anoréxica, mas quem se impressiona hoje em dia? Comigo está tudo bem, um vazio gostoso, inebriante. Nunca se pode ser magra demais.
Já tive de engolir tanta coisa nesta vida...     

Ou naquela. Naquela mesa me senti bem maior, quanto menor. Fosse vingança ou falta de apetite, resolvi também deixar a garrafa d'água pela metade. Me dá gases, água mineral. Sem gás. Uma fatia de limão. Que fizesse o bigode de meu pai um pouco mais branco. Devia ter se barbeado. Meu pai adolescente, agora um homem maduro e emergente. E decadente; eu era, tão pálida e magra, servida à mesa. Ah, ainda tenho de estudar hoje à noite... Antes das onze, meu pai me pegaria pelos ombros e diria que me ama. Eu riria em voz alta e não haveria nenhum fiapo de comida em meus dentes. Que vingança! Contra quem? Contra mim, o garçom insistindo, perguntando, questionando. “Já fez sua escolha?” Acenda o meu cigarro, câncer em meus pulmões, poxa. Assim sou mais feliz. "Este é o terceiro que fuma." É o quinto, pai, não reparou direito. Fumaça também tem calorias, sabia? Filtro mentolado. Mas eu não engulo, eu cuspo tudo fora. "Você está muito agressiva, Letícia."
           
Não era nada, mas ainda sentia um certo peso no estômago. Vamos ao banheiro tentar colocar pra fora. Tudo o que eu sinto, eu digo. Não guardo mais nada dentro de mim, pai, senão me sufoca. Sabe-se lá quantos bolos de aniversário eu comi, fora os meus, dezenove ou menos. Ou mais. E mais. Brigadeiros, beijinhos, balas de coco, balas de goma, balas perdidas, todas aquelas crianças meladas. Galinhas, vacas, bois, porcos e os vermes, embaixo da terra, trabalhando para nos engordar. Que exploração! Já sei bem o gosto que tem, não preciso de mais. Nada nessa mão, nada no meu estômago. Assim me sinto vitoriosa. Pelo menos perante meu pai, não iria abrir a boca.
           
"Então, me conte, como andam seu... trabalho? Seus estudos? O que anda fazendo?"
 
Sabe se há uma farmácia aberta por aqui?
           
"Lembrei de você dia desses..."
           
Estou meio enjoada...
           
"Há tempos não ia ao cinema..."
           
Não vá derramar na toalha...

“Até consegui ler as legendas.”
           
Talvez esteja grávida.
           
Faltavam pronomes para definir quem disse o quê, mas pelo menos chegamos num ponto final. Tive uma bela inspiração em forma de filé. Com molho madeira, escrevia minha sentença, como num chão ensangüentado. Você é o que você come. Fecho a boca. Quem sou eu para comer desse rebanho? "Letícia, pare de brincar com a comida. Parece criança." É o que parece. Novilho precoce, bezerro rebelde. Não tenho forças para uma discussão. Vou digerir suas opiniões e responder por escrito. O vinho subiu à minha cabeça. Ou talvez tenha sido o gás da água. Não, água sem gás. Que diferença faz? Forno a 280 ou 250 graus. O cozinheiro pode errar a temperatura e alcançar o sucesso no prato final. Por que não posso eu então errar na minha? Colocarei mais quatro afirmações antes do próximo parágrafo, sim, sim, sim, sim.
           
"Letícia, vamos embora." Agora é tarde. Sou velha demais para você se preocupar comigo. Até para pagar um psicólogo, não valeria a pena. Você sabe que já não tem responsabilidade alguma. Por mim, não precisa pagar nada, eu não comi mesmo. "Assim a gente nunca vai chegar a uma solução." Mas quem quer? Mal começamos. Eu chego numa solução sozinha, pode deixar. Não preciso de você. Tenho ainda milhares de capítulos para escrever. Milhares de capítulos para me perder. E você não aparece em nenhum deles.
           
Levantou-se e foi embora. Pena de mim. Ainda tinha muito a escrever naquele molho. Não queria lavar os pratos. E meu pai não deixou nenhuma nota sobre a mesa. Não tenho nada, pode me revistar. Não posso pagar. Eu nem comi.
           

Salvação seria colocar um clichê surrealista no meu jantar. Uma barata a digerir. Saí perdendo, os pais sempre ganham. Como a gente pode comer sem eles? Talvez eu quisesse uma clínica de reeducação alimentar, só não soube pedir. Para o maitre, eu estava bêbada. E pior, eu estava morrendo de fome. Mas o garçom me salvou. Tous les garçons et les filles de mon âge se promènent dans la rue deux par deux


                                                                      *
           
Acordei olhando para cima. Mosca no teto. Não precisava olhar ao redor para saber que não estava em casa. O ar rarefeito me fazia ter certeza. Não havia nada de um lugar em outro. Meu apartamento no dele. Eu no apartamento dele. Nem o branco da parede, em meus olhos. Nem o branco dos lençóis, na minha pele. E só sobrava o branco, nem uma gota a mais. Onde foi que eu derramei?

Faltava uma mosca. Um quadro. Um vidro quebrado. Faltava tanta coisa que eu mal entendia como eu podia me encaixar. E acordar assim, sem roupa, sem nada. Eu nem havia me depilado, para combinar com a decoração. Tinha estampas e cicatrizes, sobre o branco da minha pele. E, secretamente, manchava os lençóis.
           
Ventilador de teto. Janela fechada. Sombras na parede. De um homem, tudo isso. Ele catou os pedaços, agarrou meu tornozelo e acariciou meu cachorro tatuado. Muito bonito, meio argentino, assim, com os cabelos compridos, que argentino, meio latino, de cueca branca. Sorriso. Branco. Um homem. Quem é você, garçom?
           
Miguel, que me chamava de Lorena. Como descobriu meu nome? Presenciava minhas olheiras. Conhecia meu orgasmo. Me invadia sem cerimônia. Que vergonha. Não deixei nenhum pedaço com você. Não sorria assim. Não me apaixonei. Eu sou mulher, eu sei. Você é um homem. Mas eu não me apaixonei. Se ontem pareceu diferente, acordei no dia seguinte. E na minha cabeça sobrou apenas ressaca. Foi apenas uma noite. Uma noite mal dormida. Foi apenas sexo. Lençóis manchados. Por que então esse sorriso tão branco? Pra que essa boca tão grande? A gente finge, talvez você melhor. Suores e hormônios fazendo o trabalho sujo. De mentir. Meu garçom, de mentir. Eu me abro, você me cobre. Um esconde as mentiras do outro. Ora, se o sexo não é a grande mentira da mãe natureza. 
           
Ele falava entre lábios dois quais eu não lembrava o gosto. Ele estapeava meu rosto com cada palavra gentil que eu não podia receber. Que vergonha. O que faço aqui? Não me olhe assim. Não me olhe assim. 

Viro para o lado, caio da cama. Me seguro na cama, viro para o lado. Busco minha calcinha, minha bolsa, meus documentos. Quero dizer que é tarde e tenho pressa, mas não tenho ânimo, quero fechar os olhos. Quero dormir novamente e acordar em outro cenário. Quero dormir novamente ou não acordar nunca mais.
            
“Sabia que a sua noite não iria terminar bem. Você bebeu demais...” Sorriu e saiu. Me deixou sem roupas, erolada nos lençóis, forca, teresa. O que quer dizer com isso? Minhas noites ainda não terminaram, apesar de você. Foi apenas mais uma. Muitas outras vieram e virão. Talvez não. Mas não foi a primeira. E não foi o único. Nem será o último. Não será para sempre. Você não entendeu nada. Mesmo porque eu nem cheguei a dizer. Nem cheguei a escrever, com os dedos embaixo dos lençóis, tentando esconder. Tanta coisa, ah, tanta coisa. Por que nunca vou ser capaz de amar você? Não?
           
Rasgava minha manhã, tentando recompor. Tentando voltar à noite anterior. Juntava minhas roupas espalhadas pelo quarto. Faltava um pedaço. Ele colava um no outro, com esperma. Eu usava sangue, e ainda não conseguia completar. Onde foi que eu recortei?

Precisava sair de lá o mais rápido possível. Precisava pensar no que fazer. Enfrentar outro sorriso. Desviar de um novo olhar. Me armei com o cigarro e esperei. Se ele sorrir novamente, queimo seus olhos.
         
Voltou com um copo de café. Não tenho sede. Voltou com o café da manhã. Não tenho fome. Desejei jogar tudo sobre a cama. Branca. Desejei manchar. “Beba, vai fazer bem pra você” e todas essas gentilezas que eles dizem quando acham que a gente precisa. De cigarro, preciso de cigarro. Eu preciso sair daqui. “Não quer tomar um banho?” Oh, meu garçom, me traga a conta.
          
Cafézinho, gorjeta, bala de hortelã. Não preciso de tanto. Cafézinho, sorriso, cortesia. O jantar foi ótimo. Não insista para um café da manhã. Ocupo minha boca com cigarro.
            
Ele pergunta. Eu não respondo. “O que você faz da vida?” Sou assistente do atirador de facas. Esperava que acertasse. Me traga outra, garçom, que a última errou o alvo, a última caiu no chão. Não, eu sou atriz, eu finjo. Finjo mal.
           
Talvez eu não tenha acordado muito bem. Mas nem esperava acordar novamente. Ainda mais em branco. Cada vez que a gente faz silêncio, o perfume tenta me dizer alguma coisa. Cada vez que me você me deixa sozinha, as sombras tentam me contar uma história. Então fale comigo. Não aguento tudo o que você traz nesse apartamento. Uma nova vida inteira é muita coisa. Não quero começar um novo romance. O meu me basta. Fecho os olhos para o seu cenário. Me diga palavras que eu já tenha escrito.
           
E se eu saísse daquele quarto, o que encontraria? O banheiro. Uma sala. Um novo cenário. Talvez uma mesa, e um cinzeiro para apagar meu cigarro. Posso acender? Um cinzeiro de souvenir, para quando fosse embora. Um cinzeiro para acertar a sua cabeça, quando virasse as costas. Quando eu fosse embora, me lembraria de você. Cada vez que apagasse o cigarro, na mancha de sangue que você deixou, no meu cinzeiro, eu me lembraria. Não, não posso sair deste quarto. Eu nem devia ter entrado. Nem aberto. Para você. Posso fumar?
           
Quando ele sai para buscar o cinzeiro, sinto o silêncio. E o ar rarefeito. Me faz abrir a janela, respirar o ar puro, com cigarro em meus pulmões. Faz a manhã mais leve. Tentando recompor. Como vou sair dessa? Décimo nono andar. Décimo nono a pular. Antes que ele volte, já terei ido. Sem passar pela sala, nem pelo cinzeiro.
           
Essas ressacas têm sido terríveis. Acordo com a sensação de que deveria ter colocado algo para fora. Vomitado a noite anterior. E algo de que preciso me lembrar. Alguém que eu deveria amar, ao meu lado. E mais manchas na minha pele. Mais cicatrizes no meu corpo. Me obrigando a sorrir. Me obrigando a dizer bom dia. Eu não deveria ter sobrevivido. E ainda tenho de enfrentar a ressaca. A ressaca. 
           

O dia está nublado. Não chove, nem preciso. Olho pela janela e até que gostaria de fazer parte. É, até que gostaria de fazer parte deste dia. Assim. Branco. Nublado. Manchado. Cinzas do cigarro caem pela janela. Eu até que gostaria de estar lá fora. Eu até que gostaria de me espalhar por aí. Sem passar pela porta. Sem passar pelo cinzeiro. Sem esperar um bom dia. Sem ter de passar por você. Se não tivesse de passar entre seus sorrisos. Se não tivesse de me lembrar. Se eu pudesse começar de novo. É apenas um cigarro para subir. E apenas um cigarro para cair. Saindo pela janela. Apenas um cigarro para apagar, antes de ele voltar. Pulei. 




                                                                      *

Quando caí em mim, estava no carro com ele. Miguel, meu garçom, como motorista, condutor, abastecido e habilitado. Com os longos cabelos escuros, mãos no volante, preso por cinto. Me senti em segurança. Reclinei o banco, fechei os olhos e deixei que me levasse. Não podia me segurar. Onde coloco minhas mãos, se as suas mãos estão me levando?
             
“Você que tem de me dizer. Para onde?”
              
Não sabia. Não sei. Longe. Me guie. Rápido. Depressa. Demais. Não podemos voltar atrás. Se não pode levar adiante, me deixe aqui. 
             
“Aqui é perigoso. Vou levar você pra casa.”
             
Impossível. Nem eu me lembro onde fica. Vamos mais longe. Mais rápido. Um amor a 120. Será lindo de morrer. Passando por cima de tudo e de todos. Até a polícia rodoviária nos mandar parar. Não pare. Engate firme. Siga em frente. Manobre, ultrapasse, entre no túnel, saia do outro lado, cruze a serra, desça ao nível do mar, e mais baixo.
             
"Não vou pegar estrada, Lorena. Temos pouca gasolina. E trabalho hoje de noite."

A gente vai além, persegue o horizonte, até nunca anoitecer. No interior, um no outro, no Estado inteiro. Cruzando, avançando, pelo acostamento. Será lindo. Paramos, quando passarem por nós, numa galeteria. Abastecemos. Comemos o frango. Mordemos os ossos. Diga que sim. Seria lindo.

"Vou fazer isso por você, porque estou com fome."
           
Pego meu garçom pelo estômago. Desta você não escapa. Sei que não me ama, mas podemos chegar num meio termo, e estacionar. Falta muito pra chegarmos lá? Mais alguns quilômetros. E Miguel pisa fundo.

É um homem de verdade, argentino até. Manobra, acelera, ultrapassa pelo acostamento. Cabelos longos ao vento, são os dele. Pouco a pouco, me sinto mais bucólica, menos urbana. Com a cidade se dissolvendo pela estrada, aumenta minha excitação, e quase esqueço para onde estamos indo. Os prédios vão diminuindo, um andar a menos a cada 100 metros, uma árvore a mais por quilômetro rodado. Quilômetros quadrados arredondando-se. Uma casa, um casebre, um barraco, um bezerro. A gente deixa milhares de vidas pra trás.

Estamos na estrada. Ele à direita, eu a esquerda. Parados, mas em movimento. Quietos, mas ruidosos. Eu viajava, Miguel queria chegar a uma conclusão. 
           
"Me avise quando estivermos chegando, Lorena. Não conheço essa galeteria."

Tolinho, meus planos não terminam na morte do frango. Meu caro garçom, me leve até lá, que eu o levo mais longe. Na nossa frente, horizontes mais distantes, atrás de morros e montanhas, nuvens e novidades. Famílias plantando milho, frangos comendo, granjas nos esperando. Ah, meu sangue está na cidade. Se eu precisar de uma transfusão, quem me ajuda? Pode ir pegando a direita, o restaurante é lá na frente.
           
Miguel para. Para esvaziar a bexiga, para encher a barriga, o restaurante serve. Mascar chiclete. Costumava parar, na minha infância, nas minhas voltas, para a casa dos meu tios. Era a última mordida, antes de voltar para uma vida que não era a minha. Me lembro muito bem do caminho. E o lugar me lembraria aquele tempo, se não tivesse eu voltado tantas vezes depois.

Jujubas, guloseimas, me fazem entediada. Muito colorido para pouco resultado. A falsa promessa do açúcar. Sou diabética, dietética, estou de dieta, esqueça a sobremesa. Ultrapassamos a infância e sentamos à mesa.

Miguel olha o cardápio. Não estamos só de passagem. Que diferença faz, frango triturado ou boi mastigado? A gente tem de fingir que isto é almoço, mais do que comida. A gente tem de fingir que os talheres valem a pena. 

"Sua língua é sempre afiada assim?" Só depois do sexo oral. Se pareço antipática, não é de propósito. Eu até gosto de você. "Que bom isso, Lorena. Já que dormiu comigo, estamos no meio da estrada e eu vou te levar pra casa."
           
Ah, não fique chateado. Por que vocês sempre têm de esperar que eu amoleça? Me sinto na obrigação de enrijecer ainda mais. Ainda mais quando me sinto tão vulnerável. À beira da morte, tenho de ser forte. Não posso ser derrotada por um amor gentil. "Cortez, é meu sobrenome." O meu é Lorena, Lorena. Fazemos as pazes com as mãos engorduradas. De frango, polenta e coca-cola, nossa refeição.

O almoço não é o melhor lugar. Não falo de boca-cheia. Miguel requer minha atenção e tento apenas me esquecer, com ele. Você é um profissional, me sirva.
           
"Eu também cozinho, sabia? Uma maravilha. Teria cozinhado pra você, se não tivesse saído voando.” (Pulei pela janela, querido; não lembra?) “Tanta pressa, e agora estamos aqui.”

Que diferença faz, frango triturado ou boi mastigado? A gente tem de fingir que isto é almoço, mais do que comida. A gente tem de fingir que os talheres valem a pena. 
           
"Você não pode estar falando sério... Seria uma ofensa para um gourmet." Não. É seu bom humor que abre meu apetite, Miguel. É um ótimo garçom, não nos prive do seu sorriso trancando-se numa cozinha.

"Não me deixam. Por causa do meu sorriso, não levam a sério meu talento para cozinheiro. Mas um dia eu terei meu restaurante." E não sorrirá nunca mais. Pra mim, está bem. Esconderá fiapos de carne entre os dentes. São seus sonhos. 
           
"E quais são os seus?"

Não coma aquela coxa de frango, está envenenada.

"Este é seu sonho?"

Eu estou avisando, é perigoso.

"Quem ia envenenar uma coxa deste frango?!"

Não sei, eu também não trabalho na cozinha. Não entendo nem o que motiva azeite e sal, quanto mais veneno.

"Porra, Lorena, pare com isso. Como você é esquisita. Estou com fome."

Eu sei. Por que então não se levanta e diz que vai ao banheiro? Por que não vai, pega o carro, vai embora, sai daqui, e me deixa aqui sozinha? Por que não esquece que me conheceu, que me levou pra casa e recolheu meus pedacinhos na calçada? Miguel, vá embora enquanto é tempo, não me faça ir longe demais.

Devia ter dito tudo isso a ele, mas eu estava de boca cheia.
 
"Você até que come bastante.."

Eu sei.

"Pffff, não vou falar mais nada."

Faz bem. Não fale de boca cheia, é feio. Coma mais.

Tiramos a sorte no osso do frango. Eu engoli o pedaço menor. Ele pagou a conta. Deve ter doído na sua alma gourmet, ser tão mal servido e comer aquela comida de estrada, ainda mais envenenada. Mas como posso ser cortês com um Miguel que me come depois do expediente?
           
"Ela é doente", ele pensa. E não posso deixar de fasciná-lo. Agora já está apaixonado, morreria por mim. Morreria. Preciso tirar essas idéias mórbidas da cabeça. Vou ao banheiro. Não vai abastecer?

"Não, precisamos voltar. Tenho de trabalhar."

Relaxe, Miga. Não são nem quatro horas ainda - com minha mão por dentro da sua calça.

"Lorena, vamos para o carro."

Tão melhor assim. Abro o zíper, sinto seu tecido quente, 100% algodão. Ver você abriu meu apetite.  

"Nunca conheci ninguém como você."

Nem eu, felizmente.

Três e meia, sol forte, carro na sombra, Miguel de barriga cheia. A gente se beija. Minhas mãos passeiam. E eu penso na noite que está por vir. Penso no fim. Querido, dê a partida. E eu acendo o cigarro, enquanto Miguel se recompõe.
           
"Onde quer ir?"

Não sei. Não conhece nenhum motel de beira de estrada?

"Não, mas tem esse aí."

Qual?

"Esse, aqui do posto."

Ah, nem tinha visto o neon, apagado. Vamos mais longe. Onde se come o frango não se morde a carne.

"Ok, mas não muito, tá?"

Tá.

É o que eu sempre disse. Não me faça ir longe demais...
           
Miguel arranca. A estrada se torna menos romântica, mais tensa, como um redemoinho na pia, nos levando para o ralo. O cigarro me faz ainda mais má, enquanto faz Miguel mais cortês. "Não devia fumar, menina. É uma morte bem sem graça." Não se preocupe, não morro disso. A nicotina não me mata a tempo de entrar neste livro.
         
Só sobramos nós dois. Estrada vazia. Me deixa sem idéias. "Não vamos encontrar nenhum motel por aqui." O que sugere? Que paremos o carro e transemos no acostamento? Prossiga, Miguel, prossiga. Alguma vez na história desta estrada, alguém imaginou que iríamos querer uma cama. Por exemplo, lá.
           
"Aquilo não é um motel."
           
É claro que é. Só sabe ler em neon?
           
Aonde fomos parar...
           
Num motel que nem se deram ao trabalho de dar nome. Perdido na estrada. Alguns chalés de madeira, uma recepção, um cenário árido e deserto. "Não tem nenhum carro, Lorena. Vamos embora." Eu já estava descendo, ansiosa para sentir o cascalho em meus pés. Sentir minha alma farfalhar. Miguel me seguia. Na recepção, só um velho gordo, descansando. Se parece com minha infância selvagem, em algum ponto que eu esqueci.
           
Queremos o melhor quarto que tiverem, já que não teriam nada bom o suficiente.
           
"Não trabalho aqui, só estou de passagem."
           
Vejo a pistola em sua cintura. Ou o nariz aquilino. Poderia ser meu avô. Poderia ser um mocinho. 
           
"Não, sou o bandido, sou o bandido. Acabo de assaltar este lugar." 

Apontava para o outro lado do balcão, onde o recepcionista descansava chupando balas.
           
"Bem, pelo menos este sangue não vou ter de esfregar do chão." Miguel
entrou e achou meu senso de humor uma péssima idéia.
           
"Então, o que faço com vocês? Assalto, mato ou deixo ir embora?"
           
Bem, duvido que a gente tenha mais dinheiro do que o caixa. E já que estamos os três sozinhos num motel, podíamos aproveitar, né?

"Lorena!"

Não grite, Miguel, respeite os mortos. Então, meu velho, o que vai ser?

"Você é das minhas. Vamos para um chalé."

E você, Miguel, não vem com a gente? 
           
Eu não poderia trocar meu garçom por um avô, de forma alguma. Tenho bom gosto, até, apesar das cicatrizes. Mas o que posso fazer com uma pistola daquelas apontada? Tomei-a para mim. Assim, atingiria facilmente o coração de Miguel. O avô apenas entrou na brincadeira, coitado. Miguel veio com a gente. Não poderia me deixar sozinha com um assassino. Pior pra ele. Oh, pobre cavalheiro, o que este faroeste fará de nosso romantismo? Você vai ficar só assistindo? Acho legal convidá-lo para participar, vovô. Veja só que corpo macio e rígido ele tem. Será bom para você também, Miguel. Experimentar novas possibilidades é sempre positivo. Não negue que tem curiosidade. Na nossa idade, a gente tem certeza de tão pouca coisa...
           
Pena dele, sentado, quieto, no canto do quarto, assistindo a tudo. Sem dizer uma palavra, ele ouviu meus gritos e os insultos do meu avô. Eu quase senti prazer, apesar da imensa dor. Eu quase senti vergonha. Apesar de estar orgulhosa, eu quase me arrependi. Apesar de tudo, eu estava me divertindo.
           
E então, Miguel, pra onde iremos agora?

"Vamos pra casa, Lorena. Você já foi longe demais. Não sei por que não a deixei no Motel e fui embora."

Não podemos, Miguel. Passamos o último posto há vários quilômetros. Temos quase nada de gasolina. Para voltar, precisamos antes engatar, avançar, e rezar para encontrarmos um posto à frente.
           
Anoitecia. A estrada era uma longa fileira de olhos de gatos. A espiar nosso entusiasmo, cada metro era uma gota a menos. Da gasolina como hemorragia, fomos perdendo nossas forças. "Estou cansado, precisamos voltar. Não aguento mais dirigir." Só mais 10 quilômetros, Miguel, só mais 120. Não vamos parar agora. Não vamos parar aqui. Você vai ver, encontraremos um shopping de estrada. Encontraremos um hotel 5 estrelas, você vai ver. Encontraremos um safári na selva. Vamos mais longe.
           
Mas o farol baixava, a estrada escurecia, e nos afastávamos cada vez mais de qualquer possibilidade de conforto. Nenhum posto, nenhum hotel, apenas o asfalto e os olhos de gato denunciavam que o ser humano já passara por lá. Se pararmos aqui, estamos perdidos.
           
Há tanto tempo em movimento que parecia que não saíamos do lugar. Velozes porém estáticos. Ruidosos porém quietos. As pestanas de Miguel se fechavam quando eu abria as minhas. Piscávamos em rodízio.
           
Foi quando ele veio nos salvar. Enorme, reluzente, metal e borracha em movimento. Contorcendo fracassos, abraçando nosso desânimo, pressionando intenções sobre o nosso corpo. Do lado inverso, na direção contrária, ele veio. Miguel assustou-se com sua luz. Eu apenas fechei os olhos, reclinei o banco, deixei que ele avançasse sobre mim, me penetrando com violência. Gritando, o ônibus manteve-se firme até o fim. Esfacelamos.




                                                                      *

Toneladas e toneladas sobre meu corpo, me pressionando. Mas não era o fim, era apenas o começo. O ovo ou a galinha. Como tudo começa ou tudo termina. Um homem sobre uma mulher, para gerar vida ou acabar com ela. Apocalipse íntimo.
       
Eu era uma mulher a menos, com um homem inteiro sobre mim. Homem demais. Homem em excesso, a exercer. Roubava minha feminilidade ou impunha o que havia de masculino, não importa. Se é o masculino que cresce sobre o feminino, eu era menos, com ele crescendo sobre mim. Ele por cima, ele por dentro. Masculino sobre o feminino. Masculino por dentro e por fora. Masculino por todos os lados.
          
Não havia nada de bonito naquilo. E ele ainda se orgulhava. Meu avô, com a pistola nas mãos, reafirmava o domínio dos homens sobre a Terra. Dinossauro extinto. Pois que domine, pois que caminhe por cima. Eu crescerei por baixo. Eu contaminarei o solo. Eu sangrarei num lenço freático, frenético, cínico e sinistro. E por baixo da terra ocuparemos o seu espaço, até não sobrar nenhum dos seus.
        
Tem orgulho? Eu não teria tanto. É grande, mas não tanto que eu não possa somar. Não é tão grande quanto todos os que eu já tive. Apenas centímetros, sobre meus quilômetros de mulher. Ah, mas machuca, machuca, mesmo quando microscópio. Carie nas cavidades. Farpa nos dentes. No olho. Nem me lembro. Ocupa tanto espaço dentro de mim que eu tento colocar para fora.
        
Não era vingança contra a masculinidade, apenas contra mim mesma. Tão estúpida de me deitar por livre e espontânea vontade. Mais estúpida por me colocar sem saída, com tamanha masculinidade. E Miguel, oh, meu pobre Miguel, no canto do quarto, assistindo a tudo. Um homem a menos.

Homem demais, eu apenas pensava, enquanto ele agia. Eu apenas pensava o quanto o desprezava, e aproveitava cada centímetro daquele desprezo adiposo, gorduroso, melado, medonho, que me penetrava. Eu pensava o quanto me fazia vítima e o quanto o faria culpado, por ter tomado o que nunca poderia ter para si. Era meu, era minha. A suavidade, a delicadeza. Que ele tentava abrir com mãos calejadas. Que ele tentava provar com lábios secos. Que ele tentava sentir com a pele áspera. Nunca poderia entender. O que era meu ele nunca poderia tomar para si. Nem que eu morresse. Nem que eu morresse. Para ele, não havia salvação. Me abra, me feche, me penetre, mas não me desvendará.
           
Eu pensava em voz baixa para não ofender. Eu pensava em voz baixa para não doer demais. Não deveria pensar. Tanto nele quanto em mim, sob quilos e quilos de gordura animal. Pelos, pele e banha; é disso o que é feito um homem? Vamos abrir o invólucro e desvendar. Eu tinha mais cicatrizes do que ele poderia contar. E mais histórias do que ele poderia imaginar. Eu tinha um segredo entre as pernas e um segredo no ventre. Eu tinha um mistério que beijos e mordidas nunca poderiam desvendar. Eu tinha a suavidade que ele nunca, nunca poderia provar.
          
Assim, minha pele era menos suave. Assim, meu beijo era mais amargo. Com seus calos e seus pelos, não podia sentir os meus. Não podia aproveitar. Isso você não pode roubar. Não poderia dizer o que era realmente uma mulher, com tanta masculinidade em seu corpo. Aprenda. Aprenda. Observe. Observe. E Miguel no canto do quarto. Observe. Observe.
          
Eu pensava em voz baixa, porque em voz alta só poderia chorar. Em voz mais alta poderia gritar. Poderia fazer silêncio apenas para não morrer. O que me importa. Me entreguei. Me entreguei. Deixei que as lágrimas, o suor e o esperma me inundassem. Não me importa. Na hora do desprezo, até medo eu tive. Sim, medo também eu tive. Pois se até temos medo de barata...
          
Ele virava minhas páginas. Ele me abria em camadas. Ele me descascava, mas não desvendava, tentando descobrir. Ele me rasgava. Ele me despedaçava. Cada vez menos, cada vez mais longe. Uma mulher a menos, com tanto homem tentando descobrir. E quando terminasse, não sobraria nem um pedaço para contar história.
      
                                                          *

Fumava para conter as lágrimas. Não é sempre assim quando fazemos amor? Ou quando transamos, trepamos, despencamos; o que devemos fazer para segurar o choro? Não cortar cebola, não andar descalça, não contrair gripes, nem morrer de amor. Tudo para não derramar. Ai, que eu não posso. Sou mulher para isso. Não fiz nada disso. E ainda tinha de segurar o choro. Soltar fumaça, baforar, como o dragão tatuado nas costas dele. Meu amante oriental, num motel barato, à beira do precipício. Eu e ele, dançando à margem. Eu o amaria, se ele deixasse, se meu coração batesse, se meu coração deixasse, eu me apaixonaria. Não me deixe cair. Que tragédia! Penso como seria bom sofrer assim e quase sorrio. Ainda é cedo. Daqui a uma hora, trocam os lençóis e nada sobra. Nem cinzas, nem isqueiro, não vou procurar um cinzeiro. Ele sai do banheiro e rouba o cigarro de minhas mãos. Eu o amaria, se não estivesse no último capítulo. Tarde demais para começa um novo amor. Sou uma aeronave cruzando o Atlântico sem combustível. Sem forças para chegar ao destino. Tarde demais para voltar atrás.

           
Suas cicatrizes contam uma história, mais bonita quando estamos em meia nove. De baixo para cima, de trás para frente, o que tenta me dizer? Calo, recebo, acaricio. Pele escura e pouco macia, de qualquer forma, é sempre mais bonita do que em papel. Eu ainda gasto meus dedos tentando decifrá-la, e descrevê-la. Ah, sim, temos um acordo. Ah, sim, contamos histórias. E como eu te amaria, dez páginas atrás...
           
E dez minutos depois, tenho de me segurar de novo, para não ser mulher em demasia. Ele vende peixes, eu conto histórias. Com uma longa faca afiada, tira a escama e atinge a espinha de mulheres como eu, dispostas a pagar o preço. Quando a faca escapa das mãos dele, eu é que sou atingida. Meu amante oriental, me leve para um motel. Que o diabo me carregue, porque é o que um homem deveria fazer. Junte os trocados da feira, eu troco por uma nota alta e amassada.
           
"Já passou a hora. Temos de sair do quarto, Letícia." Deixo ele me chamar assim, para ir embora. Uma hora passou e não tenho mais cigarros. Não tenho mais entusiasmo, nem pernas para caminhar. Dos lençóis, nada vai sobrar. E minha roupa, quem vai lavar? Como vou sair daqui, com a roupa toda manchada? "Ninguém vai perceber." Um tecido de cicatrizes, mais bonitas quando estão em meia nove. Posso tentar levar, mas nunca mais rápido do que ele. Me segura com força e me empurra de volta para cama. Depois de uma hora, ele ainda cheira a peixe. E eu, que nunca corto cebola, sinto a faca em meus dedos, em minha garganta, entre minhas pernas. Conta uma história mais bonita quando está com ele. Não quero morrer assim, não quero morrer assim. Ele pergunta pra mim. "Você é louca? Era só o que faltava, mais uma louca na minha vida."  
           
Agarro ele por trás, o dragão em meu coração. Eu não sou louca, eu te amo, não me trate assim. Pelas costas, ele não pode ver o meu sorriso, e eu não seguro as lágrimas, que escorrem sobre nós dois. "O que você está falando? Você nem me conhece. Foi só uma trepada. Vamos embora."
           
Todos os dias, voltando da escola, eu passava em frente à sua barraca. Via você vendendo o peixe e diminuía o passo. Você não notava? Você não se lembra? Eu economizei um mês inteiro para poder falar com você. Um robalo grande e gelado, peguei das suas mãos, levei para casa, guardei no freezer e nunca deixei ninguém comer. Falei que tinha pescado, ninguém acreditou. Falei que tinha ganho num sorteio, ninguém acreditou. Falei tudo o que gostaria que tivesse acontecido, para o meu pescador oriental. Ele não acreditou. Eu já fazia mais de 30 anos, ele nem 25. Como eu poderia tê-lo visto depois da escola? "Você é louca."
          
Saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou. Não me deixe morrer assim! Volto atrás em meu texto e me atiro aos seus pés, antes que ele vá comprar cigarros para sempre sempre. Me dê mais uma chance. Eu conto toda a verdade a você. Não me deixe assim, não vivo sem você em mim. "Olhe aqui. Eu não quero que você apareça mais na minha barraca. Você é louca. Se aparecer de novo eu atiro peixe podre." Não, meu amor, não entale sua espinha na minha garganta. Não deixe que meu coração apodreça.
           
Meu atirador de facas se vai. Eu fico. Antes de descer a escada, você me ouvirá chamando a polícia. Não pode me deixar aqui sozinha. Você me violentou! Você nunca me amou! E quero ver você arrancar este cigarro da minha mão.
           
Ele bem que tentou. Queimei meus dedos, agora sim, não posso mais segurar. O choro veio em seguida. Logo eu estava no chão, sem cigarros. Como posso continuar minha história assim? Eu rastejaria até o telefone e ele estaria longe. Nem a polícia acreditaria em mim. Tarde demais. Como posso viver com ele sem mim? Não me deixe. Ainda posso rastejar aos seus pés. Agarro suas pernas, abro sua braguilha, e engulo. Ele me puxa pra cima. "Cuspa!" eu me recuso. Ele tenta abrir minha boca e pegar de volta. A espinha, a concha, a ostra, a pérola. Eu seguro. "Abra a boca!" Eu fecho. Ele me estrangula. Eu grito. Não me deixe morrer assim, não me deixe morrer assim! Paciência.
           
"...olha eu sei que o seu nome não é Letícia. Mas quem é você? O que quer de mim?" Eu te amo. Sempre amei. Eu via você todos os dias, quando eu saia da escola... "Você é louca! Eu trabalho naquela rua há apenas 2 semanas!" Não faz mal, eu não me importo, podemos passar o resto da vida juntos, abrindo os peixes, tirando as espinhas...
           
Faca em segurança, dentro de suas calças. E eu sei que ele nunca a colocaria para fora novamente. Tenho de pegá-la, colocá-la em suas mãos, guiá-lo, ensinar o que fazer. Não me mate assim, não me mate assim. Falta um nome para eu chamá-lo, assim, meu amor. Não me mate assim, Mako!

“Mako é nome de menina.”
          
Ele passa pela porta. Eu me fecho e me visto. E fumo. E olho pela janela. Escolho mal minhas companhias. Nem grandes amores nem grandes tragédias. Assim, não tenho histórias para contar. No máximo, um bom ensaio fotográfico. Mas não quero acordar amanhã novamente. Não quero acordar amanhã sem flores à minha volta. Flores ao meu redor. Sobre mim. Eu faço 32 anos. Acordarei germinando um grande jardim florido. Me levanto, caminho. Me fecho. Me visto. E acredito, ainda tenho cigarros. Como a vista é bonita daqui. Da janela, observo o movimento e fumo para fora. Vou esquecer tudo o que ficou para trás, partir para outra. Eu vou amar muito mais e ter muitos mais razões. Você vai ver, vou ter muito mais razões para morrer.

“Mako é nome de tubarão.”
           
Eu nem percebo as roupas no varal. Eu nem vejo o lixo jogado na rua. Eu nem sinto o cheiro de peixe, que apesar de uma hora, ainda está atrás de mim.
           
Por trás, ele me penetra. Com a faca. Tira a minha espinha. Não, não me deixe morrer assim. Tento me virar, vou lhe dar uma segunda chance, Mako. Não, não, Marko, me deixe morrer assim, por trás. Quero ver seus olhos, quero embaçar sua vista. Tento me virar e olhar para o seu rosto, enquanto me penetra. Mas a faca já entrou fundo, o cigarro já caiu pela janela. E embora eu ainda consiga segurar as lágrimas, o sangue escorre pela minha boca. Não me deixe morrer assim, me segure. Não me deixe cair pela janela, de novo.

(Mako é tubarão fêmea?)
           
Ele me segura, acho que me beija, me abraça. Tira a faca das minhas costas e penetra pela frente. Assim está melhor, assim eu te amo mais. Minhas cicatrizes também contam uma história, sabia? E não quero contar de trás pra frente. Estou fazendo tanto esforço para ordenar. De olhos fechados, desperdiço um pouco mais a sua companhia.
           
Por isso se vai. Me deixa com a faca na mão. Sentada no chão. Vou guardar para ele. Enquanto meu sangue escorre pelo carpete, pobre camareira, eu tento esquecer que tinha outras maneiras. Nem vou mais me levantar e olhar pela janela, senão eu caio. Deixo que se vá, sem olhar para trás. Desta vez, tem de ser assim. Eu não vou esfregar este sangue do chão. Ah, não, este não.
 

                                                                     *

           
Acordei com as luzes se apagando. À beira da estrada. Parada. Os carros passavam por mim e nem acenavam. Tinha apenas meia hora para aprender a andar novamente. Vista embaçada, pela janela. O vidro escorrendo. Uma madrugada úmida. A última mordida, antes de voltar para vidas que não eram minhas. Jujubas, galetos, um posto na estrada, para abastecer, esvaziar a bexiga. Desci.
         
A fumaça que saía dos meus pulmões ainda não era cigarro. Eu ainda não sabia o quanto precisava. Me enganava, com sorvetes, chocolates, frango e canudinhos. Então fui à procura.
           
Vidas empacotadas. Pedaços embrulhados. Restos deixados para trás. Carregava pouco comigo, dez anos, uma mochila, leve nas costas. Ainda tinha muito a guardar. Largava a maior parte no meio do caminho. Não sabia o quanto. Aos dez anos, a gente nunca sabe quanto falta para chegar lá.
           
Mais vinte minutos, no banheiro, na frente do espelho, sob luzes que nunca iriam me consolar. E gotas que nunca pingariam por mim. E papéis que nunca anotariam minha história. E colegas dos quais eu nunca escreveria o nome. Mais um banheiro, um pequeno pedaço da minha história, largado no meio do caminho. Quem chegasse naquele ponto, nunca imaginaria o que houve antes, ou depois, só o que derramei no vaso. E nem perdi tempo em apertar a descarga. Uma mulher sorriu para os meus dez anos. Fechei a cara.. Ainda tenho muito tempo. Quinze minutos, talvez, mas aos dez anos a gente nunca sabe quanto falta.
           
Descendo no meio da estrada. Parando no meio de uma história. Largando tudo pelo caminho, nem saberia mais qual era o meu ônibus. Longas fileiras de poltronas, uma delas com o contorno do meu corpo. Nenhuma delas me levaria para casa. Quem guiaria minha infância?
           
Ainda não era tempo de independência, ou morte. Soltei a fumaça dentro de mim. Busquei algum rosto conhecido, entre garfos e facas, que me lembrasse a rodoviária, o ônibus, o contorno do meu corpo. Todos tinham a mesma cara, comendo frango. Nenhum desconhecido. Tudo muito parecido.
           
Eu era a única estranha, de estômago vazio. Sentei com água mineral, de canudinho, olhando a televisão acima de mim, lenta e triste. Imagens em movimento contavam uma história. E eu parada, no meio do caminho. Deixei que a luz fluorescente dilatasse meus poros até me dissolver no salão.
         
Minha solidão atraiu curiosos. Ele se sentou ao meu lado, ofereceu jujubas, puxou conversa, me indicou caminhos, meu avô. Talvez um pouco gordo para o meu estômago. Talvez um pouco velho para a minha infância. Talvez um pouco estranho. Mas era um capítulo novo, que eu já estava disposta a escrever. Eu vou com você, eu vou com você.
           
Ele começou. Palavras em movimento tentando me contar uma história. Era a minha. Não precisava dar ouvidos. Apenas encostei lentamente minha cabeça em seu ombro. E continuei sugando o canudinho. Ele se surpreendeu, com os braços ao meu redor, sorrindo, tentando me fazer confortável. O contorno do meu corpo sobre ele. Me oferecia uma saída, de carro, caminhão, helicóptero, trem bala.
           
E ninguém me esperava do outro lado. Ninguém me esperava do outro lado da estrada. No final, seria apenas mais um. Mais dez quilômetros rodados. Para frente ou para trás, direita ou esquerda, qual é a diferença, quando a gente vai e volta, avança, mas não sai do lugar? Até um ônibus colidir com a gente, ou alguém nos levar mais longe. Os cenários mudam, mas só as companhias fazem diferença. Eu estava sozinha.
           
Então, vou com você. Sem dizer nada, nem acenar com a cabeça. Deixe-o pensar que me carregava. Preencheu minha mochila e minha história. Eu não conhecia os perigos, mas gostaria.


                                                    *

           
É triste me ver deitada, quando ele está sentado. Do outro lado, meu avô segura sua pistola. Eu me coloco à frente, como alvo, mas é meu garçom que é atingido. Não quero proteger ninguém. Pobre coitado. Eu deitada. Tão triste nos ver assim.
           
Mas faltam cebolas, faltam lágrimas para eu lamentar. Seguro o riso, é triste, mas é verdade. Apesar de tudo, eu estava me divertindo. Que tragédia! Penso em como é bom sofrer assim. E quase sinto vergonha por isso. Será que nenhum sofrimento é genuíno? Tanto quanto a felicidade da qual ninguém duvida. Num motel à beira do precipício, nos jogamos e vamos fundo.
           
Eu caio na cama, meu avô cai por cima. Uma mulher a menos. De mim pouco resta. Do que eu era, do que eu sou, pouco resta, pouco restou. Só uma passagem, estreita, da minha vida, me indica como posso morrer. Na cama, sou apenas mais uma. Uma a menos. Mais uma história para ser contada. Sorrio, pensando na acentuação da minha infelicidade. E Miguel, que não pode descrevê-la, Miguel, que não tem palavras, permanece quieto, ao meu lado.
          
Meu avô contra o meu corpo, faz a cama envergar. Aonde pode nos levar a fadiga dos materiais? O quarto é quente, nem podemos chamar o serviço. Cortinas fechadas tentam esconder que ainda são três da tarde. De poliéster, de compensado, nosso quarto com motivos florais, nosso quarto sem motivos. Verde musgo com manchas transparentes, será que amanhã germinarão sobre mim? Amor não. Sobre esses lençóis, apenas coito faz sentido. E eu tento fazer, apesar de tudo. Silêncio. Não é hora de rir. Me concentro. Não há moscas no nosso quarto, meu querido. O chuveiro funciona. Nem encostarei meu rosto no chão, para não ver os vermes saindo do ralo. Quero champagne no final do dia. Será que conseguiria uma cerveja? Um descuido e a pistola muda de mãos.   
           
"Vamos embora", Miguel pede. Que diferença faz. Mesmo empunhada pela mão esquerda, é ainda a mesma pistola. Estou cansada, Miguel, me deixe dormir um pouco. "Lorena, temos de sair daqui. Este homem é perigoso." Eu sei, mas qual não é? Deixe-me dormir.
           
O avô sorri. Um homem sem medos, velho e flácido. Nem treme quando Miguel o desafia. Sento na cama e assisto a disputa dos homens. Um armado e macio. Outro mole e áspero. Ambos sabem ser firmes comigo. Desarmada. Sou muito mais eficiente como alvo. Não tenho escolha. Não tenho pistola. Invejo a masculinidade, como os adultos invejam as crianças no Natal. Na falta, acendo o cigarro.
           
"Crianças, prefiro deixar vocês fora disso. Estou velho e cansado para brincar. Eu só aponto a pistola quando é para disparar. E só disparo quando tenho um alvo. Sei o que eu quero e como conseguir. Deixo os jogos para pessoas como vocês. As mulheres me respeitam e eu as protejo. Não tenho conversa com os rapazes. Simples assim."
           
Então, você tenta por pontos finais nas minhas reticências? Põe pontos finais na minha interrogação? Quero mais conflitos em seu discurso. Que seja meu, quando a pistola estiver em minhas mãos. Eu disparo na frente, tomo a dianteira. E ocupo toda a cama. Oh, eu me esparramo. Não sou firme, não estou armada, e só posso me derramar, para não ser partida ao meio. Homens são sólidos, mulheres são líquidas. Escorro. Meu caro vovozinho, venha viajar com a gente e verá como falta muito para acontecer. Verá como podemos realizar tudo, recombinando nossas identidades. Dois homens e uma mulher. Dois jovens e um senhor. Duas pistolas e um alvo. A gente pode ir muito mais longe. Você também. Não imagina do que essas estradas são capazes. Não imagina do que essas estradas são capazes!

Ele calava minha poesia com a mão. Em minha boca. E em minha cara. Sem poesia em sua vida, ainda mais em voz alta. "Vista-se e vá embora com seu namorado." Você não pode nos expulsar assim! Miguel está com a pistola. Aponte-a para mim. Me diga o que fazer. Aperte o gatilho. Me deixe aqui. Não vou sair agora. Estou cansada. 
             
“Eu estou com a pistola. E digo que vamos embora.”

Eu não vou a lugar algum. Ainda não. Imagine só, me vestir e ir embora, depois de tudo o que aconteceu. Nunca me sentiria limpa, por mais banhos que tomasse. Nunca me sentiria livre, por mais longe que dirigíssemos. Você pode ir, Miguel, eu fico.

"Eu vou mesmo!"
           
Não! Não vá. Eu estou brincando. Fique comigo.
 
A pistola passa para as mãos do meu avô.
 
"Eu digo que vocês vão embora agora. E não estou brincando."
 
Eu não vou. Você vai ter de atirar.
 
"Lorena, que droga, ele não está brincando."
 
Nem eu. Estou com preguiça.
           
Muita ação na minha poesia. Muita história para minha narrativa. Vamos diminuir um pouco o ritmo, hein? Vou voltar para a cama e vocês façam o que quiser. Façam o que quiser, eu ficarei aqui. Deitada, estou cansada. Também não quero voltar para casa. Façam o que quiser, eu ficarei aqui. Ninguém atiraria em ninguém, nem haveria por que. Só eu tentava apertar o gatilho. Prefiro cheiro de pólvora a tempero de frango. Se não sou eu quem esfrega o chão, que mal faz um pouco de sangue derramado? Mais buracos na minha estrada. Depois eu voltaria, eu sei, depois eu voltaria atrás.
           
O avô segurava a pistola como se sua masculinidade dependesse disso. Miguel tentava recuperá-la para si. Os homens sempre se armam quando uma mulher se deita. Queria tê-la para mim. Talvez uma espingarda, sub-metralhadora, ou mesmo uma bazuca, seria legal. Mas do jeito que estou cansada, eles podem baixar a guarda.
            
Na minha apatia, meu avô decide ir embora. Miguel se senta. Eu me levanto. Olho pela janela e nem penso em pular. Podemos dormir aqui. Agora já é tarde. Amanhã de manhã, voltamos. “Lorena, precisamos voltar para casa.” Qual é o drama afinal? Eu é que fui estuprada. Por que esse tom melancólico em sua voz? “Vamos voltar, apenas, ok? Eu não aguento mais ficar aqui.”
            
Sinto que fomos longe demais. Não queria fazer mal para Miguel. Nem tanto para mim mesma. Me aproximo. Nos abraçamos, beijamos e nem podemos pensar em fazer sexo. Triste. Seus olhos vão abaixo de minhas pernas. Cansado, ele está mais do que eu. Coitado, tenho pena do que fiz. Para ele, um abraço não recupera o meu corpo. Beijamos, sorrimos e nem podemos pensar em sexo. Vai ficar tudo bem. Pego a pistola dele em minhas mãos e levo à boca. “Lorena, chega...” Disparo.



                                                   *

          
Ainda tinha fome. O que fazer? Perdi o juízo e o senso de julgamento. Perdi a vergonha e a possibilidade de arrependimento. Algo vazou com minha corrente sanguínea e me fez continuar.
          
Meu coração batia por ninguém. Esparramava-se no chão. Escorria por meu queixo. Manchava minha blusa. Embaçava minha vista. Esvaziava meu estômago. Depois do corte fatal, achei que pararia. Morta e sem coração. Sem palpitações. Mas meu coração ainda batia, por mim mesma. Esparramava-se no chão. Escorria por minhas axilas. Manchava a minha calça. Tapava meu nariz. Esvaziava meu estômago. Me dava fome.
          
Algo perdido com a corrente sanguínea, nutrientes, vitaminas, calorias. Temperatura caindo, 1 grau a cada 36 segundos. Água para ferver. Nada para comer. Vodca e suco de laranja. Vergonha derramada no chão. Chaves na mão. Vamos sair.
         
Não planejei isso. Mas ainda tinha fome. E não tinha mais vergonha. Não tinha mais arrependimentos. Não tinha por que esconder minhas próprias escolhas, nem minhas cores mais bonitas, escorrendo pelo queixo, vazando pelo apartamento. Boa tarde, dona Inês.
         
Desci as escadas. Os degraus ficaram para trás. Minhas pegadas me seguiram, vermelhas, até a rua. Quem me acompanha? Quem me acompanha? Não preciso que me diga o quanto de vermelho há em mim. Deixe que o sol me seque. Deixe que o sol me esquente. Deixe que o sol aumente um grau a cada trinta e seis segundos. Quem chega primeiro?
         
O sangue seca. Sigo seca pelas alamedas verdejantes. Minha vista ainda embaçada. Meu nariz ainda tapado. Minha roupa ainda manchada. “Ei, a senhorita está bem?” Sorrio de lábios fechados, mandíbula travada, sem dentes manchados. Foi apenas uma menstruação mais vigorosa. Foi apenas o molho do almoço. Sonambuleio para longe de opiniões, não me pegue nos seus braços. Não siga meus passos. Não preciso que diga o quanto de vermelho há em mim.
          
Trinta e seis centavos em meu bolso. E algumas gotas a mais. Assim, será apenas um café. Devia ter vindo preparada. Mas deixei a vergonha em casa, com o arrependimento, as vitaminas e o dinheiro. Sacode em minhas mãos. Gota por gota. Moedas no caixa. Não me questione. Eu pago. Você fica quieto. Quero um café. Forte. Não me olhe assim. Não olhe pra mim. Não preciso que me diga nada.
           
Vamos ver as manchetes do dia. Será que estou entre elas? Não, essas coisas não se noticiam. Me sento e espero, com o jornal em mãos. Já não sangro, nem choro. Mas minha vista ainda está embaçada. Talvez devesse chorar para limpar meus olhos. Tem uma faca? Uma cebola? A morte de um grande amor para me emprestar? As manchetes não. Não me fazem chorar. Índices econômicos. Resultados de partidas. Tudo parte do jogo. Tudo brincadeiras em escalas universais. Dão importância demais. Eu não me importo. Deixei os arrependimentos em casa, desci a escada, degraus para trás. Mas minhas pegadas me seguiram, vermelhas, mesmo assim.
           
Café em mãos, trinta e seis segundos depois. Sorrio em lábios quentes, para agradecer. Dentes manchados, de cafeína. Olhe para o outro lado. Olhe para o outro lado, enquanto eu sorrio. Olhem para o outro lado, meus queridos.

O bar olha pra mim. E um senhor se aproxima. Não preciso que diga o quanto há de vermelho em mim. Eu estou bem. Foi apenas uma maquiagem mal-sucedida. Pode afastar a franja do meu rosto? 
            
O café desce queimando, agora que meu corpo é mais frio. Mais açúcar, mais açúcar. Derramei tudo no meu apartamento. Meu estômago está vazio. Minha vista está embaçada. As manchetes são tristes, mas não me fazem chorar. Me traga açúcar, por favor.
            
Assim como perdi a vergonha, assim como perdi a pontuação. Perdi a organização, onde vou terminar assim? O café não enche meu estômago. Vai direito para o pulmão. Embaça a minha vista. Tapa meu nariz. Percorre outras vias e corre na circulação. Oh, eu deixei algum buraco aberto. Eu deixei algum vaso destapado. Esqueci de dar descarga, e escorro. O café corre em minhas veias, trinta e seis graus por segundo. Não vá queimar meu coração. Não vá queimar meu coração, que ainda bate por ninguém.
           
Meu coração ainda bate pelo café. E ao chão, pelo queixo, nas minhas roupas, derrama novamente. Assim não enche meu estômago. Traga croissants. Um grau a menos, a cada trinta e seis segundos. “Me desculpe, a senhorita está sujando a mesa.”
           
Eu já vou me levantar. Tenha paciência comigo. Deixe-me apoiar no balcão. Deixe-me organizar a pontuação. Veja só, que sangrentas as manchetes de hoje. Sorrio em lábios, dentes manchados. Sangro pelo salão. “A senhorita precisa de um médico.”
           
Sim. Já estou indo. Não preciso que me diga quanto de vermelho há em mim. Até logo, meus queridos. Meu coração ofende famílias. Meu amor pesa no estômago. Minha morte interrompe sua refeição. Sinto muito, já estou partindo. Tirem os olhos de mim. Deixe-me apenas organizar os passos, vermelhos. Está um dia quente, hein? Trinta e seis graus a cada segundo, assim vamos derreter. Deixo o sangue escorrer. E, atrás de mim, o rapaz passa um pano no chão. Pelo menos este eu não tenho de esfregar. Ah, não, este não.     



                                                  *                       

Acordei sobre lençóis brancos. Brancos demais para serem meus. Brancos demais para serem dele. De qualquer homem. De qualquer forma. Não havia nada de masculino, nada de feminino, nenhuma mancha, nenhuma marca, nenhum traço do que eu poderia ter sonhado.
        
Paredes brancas. Flores brancas. Branco em meus olhos e em minha pele. Branco em minha mente. Estava num hospital. E onde estava todo o vermelho que derramei?
        
Em minhas veias, uma agulha fina e comprida, injetando um líquido, mais um, branco. Fechei os olhos para ver se escurecia. Nada além vinha à minha mente. Nenhum túnel, só a luz no fim. Luzes brancas, ruídos brancos, minha mão sobre o alarme, chamando a enfermeira.
       
Não me dá respostas, não me traz notícias, não me aborrece, com seu uniforme branco. Apenas folhas de sulfite, sim? Brancas, para eu escrever. Trazer um pouco mais de cor à minha miséria. Vamos logo. Amanhã será o fim. Sabe-se lá as cores que restarão dentro de mim...
       
Assim, me lembro de olhos castanhos. Me lembro de cabelos negros. Penso em peles morenas, sorriso amarelo, sangue azul. Quem será que pensa em mim?
      
Uma visita, davi, trazendo doces. Miguel, meu garçom, trazendo a conta. Meus primos. Meu pai. Ninguém veio. Ninguém me vê. Eu fecho os olhos, tento ver as cores. Mas o branco é a mistura de todas.
      
Então eu vago. Vago. Pois vaga é minha lembrança. Vagos são meus pensamentos. Vaga é minha cama, quando a enfermeira volta para me ver.
      
Eu já estou no corredor, eu já desço as escadas. E sinto dificuldade de caminhar em branco. “Desculpe, você tem de voltar para o seu quarto.” Me consegue um cigarro?
      
Agulha volta às minhas veias. Volto à cama. Reclino. Não gosto da inclinação deste quarto. Mas não faz a menor diferença, num cenário sem sombras. Preciso tentar corar, ao menos as faces. Se empalideço, sou medicada. Se me esqueço, permaneço interna. Se não consigo, me julgam louca. Preciso colocar as cores para fora deste hospital.
      
Sobre lençóis brancos, escrevo sobre lençóis vermelhos. Diante de paredes brancas, vou atrás de manchas verdes. Em minha pele pálida, corre um desejo negro, espesso, quente. E as flores, as flores amarelam sempre que eu sorrio.
      
Branco combina com tudo, quando eu me derramo. Branco é a base sobre a qual eu tinjo. Eu finjo. No branco eu morro e renasço. Eu pouco faço. E ao olhar meus papéis, deixo em branco.
      
O doutor me visita. E de todas as suas recomendações, perguntas e respostas, eu só consigo ver o cabelo grisalho. Branco entre o preto. “O que você está olhando? Está tudo bem?” Meu sorriso corta cabeças, cabelo, barba, bigode.
      
Estou ótima. Só sinto um pouco de dificuldade para passar o tempo. Lembrar o que aconteceu. Imaginar o que acontecerá. Assim é difícil de alguém se recuperar, não? O tempo não passa. Eu estou sempre igual. Preciso de horas, dias, meses para começar de novo.
      
“Você vai ter muito tempo. Agora é bom descansar. Fico feliz que queira recomeçar. Você ainda tem muitas páginas para isso... Para procurar um psiquiatra...”
      
Procuro. Mas preciso ao menos de uma brecha, uma gota, um cigarro. Pode me trazer? Uma janela aberta para eu lembrar que existe algo mais. Este lugar está me enlouquecendo, doutor. Depois não consigo mais.
      
“Não. Você se acostuma. Posso apagar a luz. Não pode fumar aqui. Precisa restabelecer sua saúde.”
      
Ora, ora! Quem vive com saúde? Com saúde não se vive. Me traga vícios e doenças! Me traga riscos e assassinos! Se a vida fosse feita de doutores, vocês não estariam presos aqui. Não há saúde nas ruas. Não há descanso lá fora. Me diga sinceramente, doutor, o que há realmente de branco na vida?
      
Mas os doutores não foram feitos para abstrair. Me coloca nos eixos. Me tira as rodas. Me corta as asas. Cirurgião. Nutricionista. Homeopata. Regra minha história e acentua minhas perversões. Pontua meus parágrafos. Me tire daqui. Não quero ficar presa entre duas sentenças. Não quero ficar presa entre duas sentenças. Meu doutor regula o soro, aumenta a dose, inclina meu quarto e acha que vai ficar tudo bem. Não vai ficar tudo bem! Eu não torço pra isso. Torça meu pescoço. Tenho outros planos. A felicidade passa por muita sujeira. E a gente só encontra no fim. Não quero ser feliz antes disso. Não quero ser feliz antes do fim. Mas quero que acabe logo. Acabe logo com isso, doutor. Vamos acabar com isso. Calma, sossego, paciência são virtudes para doentes. Pacientes! Eu sou uma doente impaciente. Me tire daqui. Desligue as máquinas. Me salve deste parágrafo.
       
Mas tenho de tentar mais um. Sedada. Dedos lentos. Luz fluorescente. Se escrever de um hospital psiquiátrico, ninguém dará crédito. Confiarei às clínicas. Antes eu morro. Durante. Depois. Diante de paredes manchadas, lençóis rasgados, sangue derramado.
       
O que mulheres de uniforme podem fazer contra mim? O que mulheres de uniforme podem fazer a meu favor? Me tragam rosas vermelhas. Me tragam lençóis estampados. Não cubram minhas feridas. Não estanquem minha hemorragia. Desliguem o alarme, abram a janela. Eu quero pular.
       
Paciência. Paciente. Sedativos.
        
Mantenho os olhos abertos, porque se fechar terei de abri-los novamente. E se tiver de abri-los, estarei novamente em branco. Diante de paredes, sobre lençóis. Nem posso imaginar. Não quero lembrar. Mantenho os olhos abertos e as olheiras manchando a pele. Branca.
       
“Lorena, você tem de cooperar. Sua situação é séria. Seu estado é grave.” Tão melhor assim. Minha história não foi escrita para passar em branco.       
       
Passam-se alguns dias, horas, minutos talvez. Doutores trocam turnos e informações e tenho a impressão de que meu pai passa por eles. Já estou ouvindo coisas. Já consigo imaginar. Um fantasma, um espírito, um gato angorá. Um esperma. Um coelho branco correndo na neve. Um tiro, e a neve se mancha. Uma gota, do meu apartamento ao dela. No inverno. Um suspiro. Paciência.
       
O doutor sorri. Diz que eu melhorei. Não acredita mesmo nisso, acredita? Meu estado é grave. Mas precisa de sorriso para completar o espaço entre minhas frases. Vagas. Branco. Entre os dentes, uma farpa. Atinge meus olhos. Brancos. Ah, doutor, só mesmo o senhor. Assim me mata!

         
          
                                     *

Correndo para não perder minha entrevista. Precisava de um trabalho. Ninguém vive de facas e pistolas. Com pouco menos a gente se mata e, naquele dia, achava que poderia jogar outro jogo. Escovei os dentes, prendi o cabelo. Penteada, maquiada, engomada e abotoada, tentava chegar ao centro da cidade. Cidade vibrando, freios e embreagem. Cidade tensa e sob pressão. Ainda não chovia, mas bem que poderia. Com tantas nuvens no céu, alguma acabaria caindo sobre mim. Antes de chegar à coberta, na coberta dos meus sonhos, me molharia. Toque de recolher. Não daria tempo, se não corresse. Mais rápida do que a chuva e as nuvens no céu, eu cruzava a cidade. E as nuvens me seguiam.
             
O trânsito não fluía, também fugia, fugia da chuva. Fugindo das nuvens, carros soltavam fumaça. Poluição, talvez, os carros cobrindo o céu. Carros fugiam da poluição, soltando nuvens. Nesse caso, melhor ir a pé. A chuva não me faria mal, e eu não faria mal ao céu sobre mim. Que ele caía sozinho. Não vou segurar. É apenas poluição. Nenhuma chuva me fará mal. Apenas algumas gotas a mais.

Cidade estupidamente urbana. Asfaltos, cimentos, subidas e descidas. Sempre empurrando a gente para os bueiros, hein danada? Por isso, nos dias de chuva, inunda tudo. Muita gente entupindo. Prometi a mim mesma que eu permaneceria totalmente asfaltada, até o final da entrevista, por mais ridícula que pudesse parecer. Não fumaria. Não amassaria as roupas. Esconderia o barro e a lama sob uma camada espessa de concreto. Cimentaria qualquer semente que quisesse brotar. Muito higiênico, pode parecer, até alguém cuspir no chão. E se chovesse, eu transbordaria. Ah, eu sempre fui urbana demais.
           
E meu currículo ao chão, pela pressa. Abaixo-me, recolho e tenho de ouvir buzinas neuróticas de seres poluidores. Está com pressa, passe por cima. Dos meus pés, calos. Melhor descer do salto. Quem manda eu tentar me encaixar? Não estava pronta. Atrasada alguns minutos, mas ainda dava tempo. Se eu me apressasse, escaparia do que quer que fosse. Cansada, como sempre, de ser tarde demais. Minha vida mal começou e estou morrendo, sempre da mesma maneira. Cansada, seguia, tentando chegar a tempo. Para uma entrevista, me vesti, maquiei, abotoei. Penteei os cabelos para caber num mundo 3 por 4. Por tanto, a pressa borrava minhas melhores intenções, quanta injustiça! Tailleurs e batons escondem cicatrizes. Não me escorra pela sarjeta. Se escapo da chuva, o choro não perdoa. Se me seguro, entupo, sufoco. Não vai ser nem um pouco bonito, ter de contar minhas histórias de assassinatos para um chefe de departamento.
           
A primeira gota passa de raspão, orelha direita. Chega ao chão e derrete o catarro adormecido há 3 dias. Sinal fechado, vamos logo. A segunda está vindo. Poluição abaixo. Pedestres abrem guarda-chuvas, que covardia! Não me espetem o olho com suas armações.  Aí vem mais uma gota. Seguro o choro. Prendo a respiração. O trânsito tranca. Atravesso.
           
Do outro lado, me espera mais uma. Certeira no nariz, faz um buraco rosado no branco do meu cosmético. Mais 2 dessas e adoeço, catapora. Boa desculpa para faltar a uma entrevista. Logo são dezenas. Gotas hidratando todos os catarros desta cidade. Nesta chuva, ninguém mais tenta ser decente. Mães largam seus filhos. Homens passam por cima das mulheres. Eu permaneço desarmada e derretendo. Meu jogo hoje é manter a dignidade.
           
O perfume já se foi. O mesmo com meu penteado. Suor escorre por minhas axilas e acaba com a beleza que nunca foi minha. Tive de me esforçar muito para me tornar ao menos apresentável. Agora não importa. O cheiro de cigarro na minha roupa será melhor. Sob um toldo, eu fumo. Espero passar. A nicotina me faz companhia. Sob um toldo, eu espero. A chuva castiga os descobertos. Castigará a mim também. Espero passar o tempo.
           
"Sabe quando ele passa?"
           
 Como?
           
"O ônibus. Quando passa aqui?
           
Um adolescente se abriga ao meu lado. Molhado, sem inibições. Franja escorrendo. Camiseta colada. Bermuda pingando. Mãos na cintura.
           
Eu não entendo nada de ônibus. Estou aqui por acaso.

E sou simpática com ele, nem sei por que. Ele sorri e me parece mais branco, talvez por sua pele ser morena, clara, como seus dentes, brancos.  Mas se fosse doce, já teria derretido.

Assim conheci davi, 14 anos depois de seu nascimento. Pouco antes da minha morte. Era uma tarde chuvosa e estava dando tudo errado pra mim. Eu não estava dando muita importância para isso. Nunca dei certo. A chuva foi uma boa desculpa para desistir. Conversar com davi, num ponto de ônibus, foi apenas um passatempo, como ligar pontos ou caçar palavras. E a gente sempre quer repetir. A chuva criava uma cortina ao nosso redor. Mais calor em nossos corpos. Ele pingava com um lindo sorriso. Eu oferecia um cigarro. Má tentativa de parecer maternal. Ele aceitava. Esperava que não levasse a sério nossa conversa. Esperava que o ônibus o levasse embora. Tire esse menino daqui!
           
Me falava do tempo e da chuva. De onde vinha e pra onde ia. De como era e o que queria. E todas as formas de conseguir, que ele conseguia. Eu não duvidava, para que ele não tentasse me convencer. Muito confiante. Eu sorria com ele. Oferecia cigarros. Me oferecia algo mais. Mas estava muito úmido para enrolar. Se não fosse assim, eu aceitaria. O levaria para minha casa. Usaria o que fosse necessário para encharcá-lo, se o ônibus não chegasse. 

Ninguém mais pousava naquele ponto. Naquele ponto, a chuva já tinha levado todos. Éramos eu e davi, excluídos do mundo abrigado. Se a chuva nunca parasse, seríamos nus ou impermeáveis?

Por trás da cortina, algo rompia nossa união. Graças. "O ônibus está vindo", esticou seu braço. Longo e ósseo, recebendo gotas de chuva, ele tentou fazer sinal. Não ia parar. Eu sei. Senti 12 gotas, talvez um pouco mais, entre a calçada e a rua, e logo estava coberta. Beijando o asfalto. Encaixando-me na cidade. Saltei sobre o ônibus. Ele estava sobre mim. 



                                         *

E a cidade à minha volta me obrigava a sorrir. Frio metropolitano, vento automotivo, todos esses climas urbanos levavam para longe os perfumes do campo, da minha roupa. Já não era tempo. Quinze anos de idade precisam de aventura. Talvez até pudesse encontrar uma cobra, escorpiões, um jagunço selvagem no sítio de meus tios. Mas aquilo não me satisfaria tanto quanto um ônibus intermunicipal, sujo, ruidoso, passando sobre meus medos.
         
Eu e uma amiga, num apartamento. Ruminávamos ervas finas, enroladas em seda. Recebíamos rapazes motorizados, enroladas em lençóis. Tínhamos aquela felicidade assassina dos meninos. E nos matávamos diariamente.
         
Era lindo, passear por ruas novas a cada dia. Eu nunca me cansava e nunca terminava. A novidade era eterna, me entediava com amor. Cada buzina era uma música diferente para meus ouvidos. Cada metal reluzente, cada vidro partido era um caco em meus olhos. Eu passava por tudo isto, rasgando minhas ingenuidades. E cada passo dado era um passo importante.
         
Porque eu só tinha quinze anos, sentia cada passo como uma grande experiência. Muito experiente, então era eu. Buzinas graves, agudas, formavam meu comboio. Um loiro, um moreno, eram rapazes diferentes. Tons e calibres faziam toda a diferença, enquanto eu não crescia. Eu não mudava. E tudo à minha volta se movimentava.

Aos quinze anos, acreditava que a rua fora feita para mim. Apesar de ser uma garota doméstica, acreditava que era urbana. Apesar de urbana, acreditava que era selvagem. E era mais selvagem do que a cidade, urbana, ao meu redor.
 
A cidade que não era minha pertencia a outros. E todos tentavam arrancar um pedaço. Tomavam as ruas, marcavam seus territórios, deitavam nas calçadas e dormiam nas sarjetas. Eu era só uma visitante, não possuía nem lixo próprio.
 
Eles possuíam meu lixo, deitando nas calçadas, dormindo nas sarjetas. Rasgavam o plástico e faziam uso do que eu nem sabia pra que servia. Eu estava apenas de passagem. E queria o meu pedaço.


Ele não sorria, não chorava, nem pedia piedade. Desprezava minha passagem, enquanto vasculhava o lixo. Desprezo também é vingança. Contra mim, ele mastigava restos de alimentos, frutas, carne e me desafiava com sua selvageria. Mendigo, se acha pior do que eu? Me desafia com sua podridão, tentando me fazer sentir culpada. Desprezada, passei por ele e tentei retribuir o desprezo. Mas desafio também é vingança, quando se vence. E o vidro de maionese, o vidro de maionese jogada, de maionese desprezada veio parar nas minhas mãos. E na minha boca, entre meus dentes, vencida, derrotada, mastiguei o creme. E o vidro se partiu. E mastiguei cada caco. E senti o prazer típico das gengivas cortadas. Mastiguei e engoli. Alguns prazeres nos fazem sorrir em gengivite. 


                                                    *
           
"Coma de boca fechada, Letícia.” Meu nome é Lorena. Há doze anos, ele ainda não percebera. Sempre me chamou de Letícia, meu pai, porque Lorena era nome escolhido por minha mãe. Nem sei se eu mesma concordava ou não, talvez não, mas continuava respondendo. Pai, meu nome é Lorena.
          
“Vê só? Você sempre tem de trazer esses assuntos desagradáveis à mesa.”
          
Melhor à mesa do que à cama. Na minha idade, ainda não precisava deitar para morrer. Sangrava caminhando. Ainda sangrava. Ainda caminhava. Da mesa para o banheiro, são apenas trinta e cinco passos. Anos. Fácil seguir até lá. Uma mesa, uma coluna, um carro de sobremesa no meio do caminho, todos à altura da minha cintura. Ninguém vai perceber, o sangue que escorre. Me mata de vergonha, minha menarca.  Um tapete vermelho estendido por onde passo. Tire esse sorrisinho do rosto, senhor garçom. Eu conheço o caminho. Do banheiro até a mesa são apenas trinta e cinco passos.
           
Olhando no espelho, é o nariz que me sangra. Vou deixar essa morte para outro capítulo. Não posso ter uma hemorragia neste jantar. Restaurante chique, tapete vermelho. Nem uma gota a menos. Minha morte tem de ser sobre toalhas brancas. Discreta, limpa e dolorosa, volto para a mesa. “Me desculpe, senhorita. Precisa esfregar o chão.” O garçom me traz um pano. Não, é só para limpar o nariz.
          
“Você está doente?”
           
Não, estou adolescente. Dá quase no mesmo. E com fome, voltei ao frango. Entre garfos e facas, havia um assunto a ser resolvido, ou dois, ou nenhum. Há tempos não nos víamos, hein? Eu cresci, não muito, virei uma mocinha. Entediada, sem assunto, depois de quatro anos longe de meu pai. Antes da sobremesa, teria de dar um jeito. Ali mesmo, não no banheiro.

“Sua mãe não está bem. Acho que não seria bom você ir morar com ela. Eu ainda estou me ajeitando, mal tenho lugar para mim. Você pode morar mais uns tempos com seus tios.”
          
Não vou reclamar de boca cheia. Já engoli muita coisa na vida. Mas vou me mudar. Não posso mais morar entre frangos, galinhas, primos. Arrumo uma colega. Venho pra cá. Será um grande passo, mas não será difícil. Já dei trinta e cinco, só do banheiro até a mesa. Você não precisa fazer nada.
         
“Letícia, você não pode morar sozinha com essa idade.”
         
Por que não? É bom a gente aprender desde cedo. A solidão é condição inerente ao ser humano, blábláblá, blábláblá. E ninguém está totalmente sozinho nesta cidade. Quando eu sentir falta de barulho, ouvirei uma buzina ao longe. Se precisar de companhia, ligo a TV. Quando quiser falar com alguém, é só dar um alô. Ah, papai, quem precisa de família?
          
O sangue escorria novamente por minhas pernas e ameaçava me derrotar. Ele era um homem, meu pai. Eu era uma mulher, sangrando. Sempre estaria em desvantagem, não importava o discurso. É uma lança em suas mãos e buraco em minha pele. Se eu fosse rápida, ainda poderia acertar o garfo em seus olhos. Mas meu pai age antes, agarra minha mão. “Segure direito. Você não é mais criança.”
            
Oh, que seres miseráveis que somos! Viro o suco de laranja sobre a toalha branca. Sinto muito, o garçom traz outro. Com o garfo de volta, destrincho o frango. E penso naqueles ossos tão ágeis que foram terminar numa panela. Meu pai come peixe, peixe, peixe. Um oceano inteiro para chegar a um anzol. Nossa loteria, a sorte dos peixes.
          
Mas meus planos não terminam na morte dos peixes. Terminam na morte do frango. E é lá que minha morte começava, pelo menos neste capítulo.

"Então, me conte, como andam as coisas no sítio?"
            
Me conte você, como andam as coisas no fundo do mar? Me distraia com seu aquário enquanto engulo algo mais. O restaurante é eclético, tenho certeza de que conseguirá algo no cardápio para passar o tempo. Você mastiga, eu engulo.

O osso da sorte dita o meu destino, quebro com os dentes. Não preciso do meu pai pra saber qual parte fica comigo. Eu engulo as duas. Este frango não é recomendado para crianças menores de quatro anos, assim como não é recomendado aos cães, podem engolir e engasgar. Mas não será apenas por falta de prática? Ou por uma garganta pouco desenvolvida? Epliglote inconsistente. Aos doze anos, minha epiglote é larga e receptiva. Já engoli muita coisa. Então, mastigo os ossos e espero a resposta.
           
Com espinha de peixe, palitaria os dentes, querido pai. Não cuspa no prato que comeu. Engula, engula. Com vinho, desce mais macio. Cada garfada é um capítulo a menos, na vida do peixe. Cada garfada é um capítulo a mais, nas minhas mãos, na sua vida, não sei. Não como peixe. Este anzol não me fisga.
           
A conversa se torna uma longa mastigação. Para cada dúvida, pontuo afirmativamente com o som dos ossos triturados. Nem posso ouvir. Apenas aceno afirmativamente. Sorrio de boca cheia. Deixo de combater. Meu pai percebe. "Você está estranha. O que se passa na sua cabeça?" Na minha garganta passam pedaços grandes demais para eu falar. Meu pai percebe. Comemos em silêncio e faço questão que ele fale.
           
Então, como anda o trabalho? Pergunto para deixá-lo ocupado. Pensando em como responder, gagueja, engasga, engole em seco. Terei o tempo que preciso, enquanto ele procura uma justificativa, entre os dentes, entre as entradas de seu cabelo. Justificativa no colarinho amarrotado. Justificativa que surge como desculpas, para uma menina de doze anos. Eu percebo, ele não tem culpa, coitado, do seu próprio fracasso. Nem do meu, sou culpada. Eu percebo. Ele começou a envelhecer. Ou eu a perceber isso. Engasgo em silêncio.
           
Meu pai continua. Tento manter o sorriso. O osso da sorte encontrou seu caminho, tranca minha respiração e eu nem posso rir. Sabe como é, restaurante fino, ou quase, toalhas brancas. Não vou cuspir na toalha que pinguei. Meu sangue já nem escorre. Está tudo preso dentro de mim. Até o sorriso. Sabe como é, toalhas brancas. Não posso engasgar em voz alta. Nem olhar para cima, com os olhos cheios de lágrimas, eu posso. "Lorena, você está bem?"
 
Ah, então agora você sabe meu nome? Tarde demais? Não posso responder. Se tentar, denuncio meu plano. Sorrio, cuspo, tusso. Não bata nas minhas costas, não bata nas minhas costas. "Letícia, você está bem?" Ah, foi só impressão. Salve meu epitáfio.



                                                       *

"O banheiro fica do outro lado," indicou meu garçom. Meu banheiro fica mais longe. Como eu faço para chegar até lá? Ele sorria para mim, pronto para me atropelar com o carrinho de sobremesas. Tão bonito, meio argentino, com os cabelos caindo pelos ombros, ombros que jamais cairiam. Tinha meus fios abaixo do queixo, caído. Afastei o que escorria por minha testa e tentei sorrir de volta para minha mesa. Tropecei no meio do caminho. Quebrei um salto, uma unha. Ele me amparou.
           
"Precisa pagar a conta. Precisa pegar um taxi. Precisa tomar cuidado", me disse entre os dentes. Muito impreciso. Naquele momento só queria cama e colo. Não podia pagar por tudo. Antes, teria de desviar de um exército de garçons, garfos e facas, bandejas cheias e guardanapos ao chão. Meu pai me deixara sozinha no restaurante, como uma mãe deixa o filho no supermercado. E eu já estava grande demais para chorar. Caí nos braços de Miguel e deixei que cuidasse de tudo. Meu garçom, tire a mesa. Leve a conta. Estou satisfeita. Receba sua gorjeta. "Não posso. Estou trabalhando. Senhorita, pegue um taxi e vá para casa."
           
Fechei meus olhos e me embaracei sobre ele. Embaraçado, Miguel sorriu para o maitre e sussurrou para mim. "Não faça isso. Vai me complicar." Eu não ouvia nada, Miguel, eu não ouço nada. Olhos fechados e mãos em volta do seu pescoço. Senti um perfume doce que não combinava com o prato principal. Não deixe o maitre tirá-lo de mim.
           
"Olha, eu te levo pra casa. Mas tem de esperar lá fora. Assim vou ser despedido." Me afastou do maitre. Me colocou no sofá. Foi pagar a conta. Tentei não me perturbar com a inclinação do restaurante. Acendi mais um cigarro, tentei acertar as cinzas no cinzeiro. "Com licença, a senhorita não pode fumar aqui." Apaguei.
           
Acordei com Miguel me sacudindo. "Vamos, eu te levo." Atrás dele o maitre procurava mais explicações. Deixei tudo o que eu tinha, minha carteira de cigarros na mesa e minhas vergonhas em casa.
           
"Você bebeu demais. Te levo pra casa. Como é seu nome?" Letícia. Há dezenove anos. Não percebeu? Nome escolhido por meu pai. Nem sei se eu mesma concordava ou não, talvez não, mas continuo respondendo a quem pergunta.
       
Com o fio de cabelo que faltava na minha sopa escorrendo pela testa de Miguel, afastei dos olhos e sorri. "Você tem um sorriso bonito." Assim, tão argentino, ele me colocou deitada no banco de trás do carro. Talvez não devesse ter entrado, por que não? Por que não? Qual é a forma melhor de se conhecer uma pessoa?
        
"Não deveria me meter, nem sei o que aconteceu. Mas foi muito feio seu pai largá-la sozinha nesse estado." Eu também acho, mas ele me largou muito antes. Oh, Miguel, ele me largou muito antes. E você, por que não me larga? Por que se importa?
           
"Para onde te levo? Me dê um endereço.”
          
Não sei, nunca soube. Nunca encontrei realmente meu lar. Quem sabe não é o seu? Quem não sabe não é o seu? Quem sabe, não é o seu. Não é do seu que eu pulei da janela do seu da janela? Não era o seu?
         
“Acho que bebeu um pouquinho demais. Se quiser ir para minha casa, tudo bem. Não tem ninguém lá. Mas vai ter de dormir comigo, não tenho onde acomodá-la.”
         
Ora, por favor, eu sou adulta. Eu sou profissional. Um pouquinho demais. Muito pouco. Eu estou bêbada e deitada no seu carro. Tem de me pedir permissão para esse tipo de coisa? Como terminam suas noites na Argentina? Nós somos jovens, jovens, jovens. Temos licença para fazer tudo de errado, dentro do carro, posso fumar?
           
"Então, para onde?" Ah, Miguel. É você quem guia e me traz o cardápio. Me diga as opções. O que combina com vinho tinto, com lágrimas e com sangue? Me diga para onde devo ir. Não me deixe ir longe demais. Não me deixe sozinha esta noite. Miguel, rasgue minhas roupas e me jogue no lixo!
           
E naquele momento as inclinações da minha vida eram apenas subidas e descidas da cidade. Miguel no volante, perigo constante. Guiada por ele, eu me perdia um pouco mais. Mais devagar, Miguel, senão vomito.
           
"O dono do restaurante ficou com a conta. Disse para eu tomar conta de você. Ele é amigo do seu pai, amigo de muitos anos.”
         
Talvez. Considerando quantos copos já derramei sobre suas toalhas. Por todos esses anos, se não fossem amigos, teria de abrir uma lavanderia. Fiquei quieta. O carro me dava enjôo.  Falta muito para a gente chegar?
         
“É...”, tímido. “...”, hesitante. Finalmente: “posso saber o que aconteceu?”
         
Meu pai é dono de uma rede de bordéis. Eu sou a gerente de um deles. Mas discutimos frequentemente sobre rapazes trabalharem lá ou não. Ele é contra, eu sou a favor.
           
Não disse isso, não disse nada. Estava bêbada demais. E Miguel apenas respondeu.  
         
“Acho que conheci sua irmã. Há algumas semanas vi seu pai no restaurante, uma menina que parecia com você.”
          
Todas as mulheres se parecem comigo. Eu sou filha única. Deitada no banco de trás. Me deixe descer, eu vou vomitar.
          
Carro parado. Vinho tingindo a calçada. “Então, está melhor?” Perguntas bestas para uma bebedeira imbecil. Estou. Me deixe aqui. “Não vou deixá-la. Me diga onde é sua casa.” Eu moro aqui. “Você não mora aqui.” Claro que moro. Naquele prédio lá. “Eu vou esperar você entrar.” Já entro, pode voltar para o carro. “Você não mora neste bairro.” Por que não? Achou que eu era uma garotinha de classe média? “Ok, vamos para minha casa.”
            
Eu não quero, ouviu! Eu não quero! Me deixe aqui! Eu não preciso da sua ajuda. Eu quero ficar sozinha. Eu quero ficar. Que me importa ser assaltada pelos marginais, estuprada pelos mendigos, comida pelos lobos? Que me importa que a chuva me gripe, que o vento me derrube, o diabo me carregue? Me deixe, que na minha história derramo vinho sobre sua toalha. Eu engato ré no seu carro. Eu disparo todas as balas da sua pistola. Me jogue na neve para que eu congele. Me cubra de terra para que o sol não me queime. E abra as janelas para que eu pule. Me deixe sozinha para morrer. Me deixe à mercê. Vá embora, e não apareça nunca mais por aqui. Esqueça que me conheceu. Esqueça que não me conhece. Desista de tentar. Me conhecer é impossível, mesmo com toda uma biografia. E um epitáfio o que pretendo escrever.
             
Não sei se ele entendeu. Mas foi.

                                       
               

MESA

Neste sábado, 15h, na Martins Fontes da Consolação, tenho uma mesa com o querido Ricardo Lisias . Debateremos (e relançaremos) os livros la...