27/04/2015

TODA LUZ QUE NÃO PODEMOS VER

Resenhei o ganhador do Pulitzer na Folha deste final de semana (capa da Ilustrada):

Não se pode dizer que um épico histórico sobre a Segunda Guerra seja uma escolha arriscada para um romance. O tema parece oferecer enfoques tão inesgotáveis quanto o interesse do público —motivo pelo qual “Toda Luz Que Não Podemos Ver” começou a vender bem antes mesmo de ser indicado ao National Book Award, em setembro, e ganhar, nesta semana, o Prêmio Pulitzer de ficção.
Entretanto, se o resultado é (quase) garantido, o processo de se escrever algo assim nunca é simples. Reconstruir aquele momento requer um mínimo de pesquisa, sabedoria e principalmente sintonia.
Como entender o que é viver aqueles cenários, naquele momento? Dizer que o norte-americano Anthony Doerr, 41, fez a lição de casa seria menosprezar o escritor e superestimar a escola.

Lançado há um ano nos EUA, o livro teve recepção que surpreendeu editora e autor, cujos quatro livros anteriores, elogiados pela crítica, tiveram alcance restrito. Ao final de 2014, tinha vendido quase 1 milhão de cópias, o que levou a Intrínseca a tratá-lo como sua grande aposta para 2015 —coroada com o anúncio do Pulitzer dias depois de a tradução sair.

Em narrativas paralelas, o romance apresenta Werner, órfão alemão que aos poucos é cooptado pela máquina nazista, e Marie-Laure, menina francesa que perde a visão e vive sob a proteção do pai.
Werner é apaixonado por transmissões de rádio, aprende a ouvir, consertar, fazer cálculos e identificar emissores, e seu talento desperta a atenção da Alemanha. “É certo fazer algo porque todos estão fazendo?” é a pergunta da irmã que ecoa em sua mente quando se vê cada vez mais entranhado na juventude nazista, em seus ritos perversos.

Já o pai de Marie-Laure é guardião de um dos maiores tesouros da França, um diamante mítico a que se atribui poderes e maldições. Com a guerra, pai e filha fogem pelo país e acabam numa cidadezinha litorânea, protegidos por um tio misantropo, que tem uma coleção de rádios.
Essas duas linhas desconexas —menina cega e menino nazista— caminham para um encontro inevitável, do qual já se pode intuir um desfecho romântico e redentor como uma foto na revista “Life”.

A hábil estrutura segue linearmente, voltando a um ponto preestabelecido de tempos em temos, de maneira fracionada, com recortes da época em capítulos curtos e com uma quantidade limitada de personagens.

A interrupção constante da linha de cada protagonista para dar lugar ao outro mantém a expectativa que explica o sucesso de um livro de mais de 500 páginas. É o que os americanos chamam de “page turner”, um livro em que cada página obriga a virar a próxima. O texto é objetivo, narrado no presente como senso de urgência.

Com um protagonista órfão, outra cega, e tratando de guerra, é praticamente impossível fugir da pieguice, mas essa talvez esteja só na dose indispensável para que se ecoe como grande história, para um grande público.

“Toda Luz que Não Podemos Ver” é um livro delicado, em que se sente além do que é dito. Como exemplo, o personagem Frederik, “o mais fraco”, colega de Werner no internato, poderia render mais cem páginas ou se desdobrar num épico completo. Isso acaba por formar um universo muito mais tridimensional do que os protagonistas podem demarcar.

No final, a saudade por se afastar dos personagens parece reverberar tanto no leitor quanto no autor, que talvez tenha estendido o romance num sentido desnecessário, trazendo-o até os dias atuais, num resvalo de “Titanic”, de James Cameron. Não compromete, contudo, o conjunto. “Toda Luz que Não Podemos Ver” é um belo livro.

TODA LUZ QUE NÃO PODEMOS VER
AUTOR: Anthony Doerr
tradução: Maria Carmelita Dias
editora: Intrínseca
quanto: R$ 39,90 (528 págs.)
avaliação:  muito bom ★★

17/04/2015

DEFORMANDO LEITORES


Mesa de quarta. (do blog do Maurício C. Garcia: http://esquizo.com.br/)

Acabo de voltar do Salão do Livro da Serra Catarinense, organizado pelo grande Carlos Henrique Schroeder, um dos escritores que mais faz pela literatura no estado. Dividi mesa na quarta com Simone Campos, Raphael Montes (de novo nãaaaaao!) e o autor local Maurício C. Garcia. Quatro autores deixam uma mesa bastante inchada, mas a mediação de João Chiodini distribuiu muito bem as perguntas e permitiu que de fato houvesse um debate, não apenas discursos paralelos. Ainda sobrou tempo para perguntas da plateia - que foi tomada por uma juventude trevosa com camisetas de banda, talvez pelo tema da mesa (games, tiros e terror). Bem bacana.

No camarim, prontos pro debate. 


Recentemente Suzana Vargas e Afonso Borges publicaram textos em O Globo debatendo sobre a validade dos eventos literários na formação de leitores. Concordo com os dois, discordo dos dois. Acho que eventos literários formam leitores, mas sua função principal é formar autores, o que pode ser quase a mesma coisa, já que o autor é antes de tudo um leitor.

"Eu também escrevo" deve ser a frase que todo autor mais escuta de seus leitores. E os eventos literários existem para que essas frases sejam ditas. São a ponte entre leitor e autor, em mais de um sentido. É o momento do leitor ("já formado") entender como a coisa funciona, a escrita, o mercado, reformar-se como leitor e autor... ou calar-se para sempre.

Por isso é essencial que o evento tenha participação do público (que tenha público, para começar), em perguntas, conversas. As oficinas literárias oferecidas em muitos festivais contribuem com isso, mas sempre acho mais importante o leitor conhecer as experiências individuais de cada autor do que "fórmulas" para escrever.

E nesse ambiente, nessas tendas, sempre há um transeunte curioso, um acompanhante alienado, alguém que pode ouvir a palavra do autor pela primeira vez e perceber que também se fala (e se lê) sobre "games, tiros e terror". Assim também pode se formar novos leitores.

Na pesquisa que publiquei na Folha ano passado, sobre a renda de escritores, ficou claro a importância dos eventos literários na sobrevivência dos escritores. Eventos pagam as contas, formam autores na plateia, reformam autores nos palcos. Autores formam leitores, não tenho dúvidas disso.

Sobre os textos do Globo, para me deter a questões pontuais:

Eventos não levam ninguém a ler mais ou a comprar mais livros. Eventos literários sejam eles festas, feiras, bienais com maior ou menor projeção nacional, são fenômenos de marketing. Ou seja: eventualmente ouve-se falar num produto chamado livro, em seus autores, como quem anuncia uma nova marca de refrigerante. - de Suzana Vargas

Discordo veementemente. Uma limitação que encontro em muitas mesas literárias é exatamente que cada autor quer apenas falar de seu livro, dar seu serviço, não debater temas propostos e expandir a discussão para a literatura de forma mais ampla. Também não se pode esquecer de eventos que adotam e trabalham o livro previamente (como a Jornada Literária de Passo Fundo, o Festival Literário de Extrema), para depois oferecer a conversa com o autor.

O escritor quer, claro, ser reconhecido. Mas o reconhecimento se dá de uma só forma: em vendas. Ou existe escritor que vendeu 10 exemplares e é um sucesso? -
 Afonso Borges. 

Discordo e tenho discutido isso exaustivamente aqui. O reconhecimento não se dá só em vendas. O autor quer vender mas não quer vender a qualquer preço, pode ter muitas ambições antes disso. Aliás, o bom autor deve ter muitas ambições antes disso. Autores mais sofisticados, com uma literatura mais densa, arriscada ou controversa sabem que não estão publicando sucessos de vendas, e já consideram sucesso conquistar seu público (seja ele de dez leitores especializados). João Gilberto Noll, João Silvério Trevisan e Evandro Affonso Ferreira, entre outros, são senhores autores que não vendem, e sem dúvida são reconhecidos. Para mim, são heróis.


Você pode ler os textos originais da Suzana e Afonso aqui: http://editoras.com/discussao-debate-dialogo/

E assim se abre a (minha) temporada de eventos literários de 2015. Também ajudam a formar a mim como autor, não só pelos debates oficiais, mais pelas conversas que se estendem nos bares, nos translados. Sempre aprendo muito. Semana que vem vou estar na Flipoços, ao lado da querida Luisa Geisler, falando sobre o êxodo urbano na literatura brasileira atual (tema de um texto que publiquei na Ilustríssima ano passado). Você pode ver toda a programação aqui: http://www.flipocos.com/


Na estrada. 

13/04/2015

A FORMA DA SOMBRA



Resenha que publiquei na Folha deste final de semana:


O boom que o cinema de horror teve mundialmente nos anos 70 e 80 encontrou eco no Brasil da época em público, mas não em produções. A censura do regime militar e a falta de tradição na produção fantástica e de gênero (seja cinematográfica, televisiva ou literária) restringiram o horror nacional a produções underground ou, no caso da literatura, a obras mais voltadas ao público juvenil.

Isso começa a dar sinais de mudança com uma nova geração (de escritores, roteiristas e cineastas) que cresceu assistindo aos "slashers" --subgênero do horror, com muito sangue-- dos anos 80 e agora dá os primeiros passos escrevendo livros.

"A Forma da Sombra", romance de estreia do carioca Fernando Abreu Barreto, 38, é um grato exemplo disso. Ainda que firmemente inspirado pelos filmes estrangeiros de assassinos seriais e de vampiros, busca não só uma identidade nacional, como tem um trabalho cuidadoso de linguagem, tão raro em literatura de gênero.

"Encontro o sol aos domingos, quando não chove. Durante a semana, ao chegar ou sair do trabalho, ele não está lá. Sinceramente, não me faz falta", anuncia o parágrafo de abertura.

O protagonista anônimo é um condutor de trens do metrô no Rio. Passa os dias nos subterrâneos, sem ver a luz do sol, volta para casa de noite. Antissocial, não se identifica com o mundo "iluminado" à sua volta e questiona a própria identidade e humanidade. É uma visão mais profunda e sombria, que outros poderiam transformar facilmente numa paródia: "Um Vampiro em Copacabana".

Não é exatamente novo --a crise existencial do protagonista tem ares pesados de déjà vu (a série "Dexter" vem imediatamente à cabeça)-- e mesmo a ambientação de thriller nos túneis do metrô já é algo visto (o filme britânico "Plataforma do Medo", de Christopher Smith, é uma das influências citadas).

Entretanto, o autor acerta ao combinar esses elementos e ambientá-los no Rio dos dias de hoje. Principalmente, o lirismo do texto dá pistas de um novo autor nacional que pode acrescentar muito ao gênero e à literatura.

A FORMA DA SOMBRA
AUTOR Fernando de Abreu Barreto
EDITORA Caligo
QUANTO R$ 25 (116 págs.)
AVALIAÇÃO muito bom

NESTE SÁBADO!