19/02/2018

PÉROLAS ENTRE AS PILHAS




No final dos anos 60, quatro irmãos entre oito e treze anos visitam uma cartomante que é capaz de dar a data de sua morte. Após previsões não muito agradáveis, cada um seguirá um rumo na vida, com o fantasma da data fatídica se aproximando.

Esta é a genial premissa de “The Immortalists”, segundo romance da americana Chloe Benjamin, que acabou de ser lançado lá fora e acabei de traduzir para a Harper Collins (sai em breve). Foi minha “tradução de férias” e uma aula de literatura – como as melhores traduções são. Tem aquela estrutura de romanção americano, um excesso de atenção aos detalhes e as descrições (que eu particularmente não gosto – não me interessa saber a cor do sapato do personagem, o tipo do tecido do sofá em que ele se senta), uma pesquisa muito bem fundamentada e, acima de tudo, uma alma.

O romance de Benjamin é dividido em quatro partes, uma para o destino de cada irmão, cada uma com um universo totalmente diferente – num domínio impressionante de temas diversos. O primeiro dos irmãos, por exemplo, é homossexual e se muda para São Francisco no final dos anos 70 (então já dá para imaginar do que ele irá morrer). O retrato da época, com a liberdade sexual desenfreada, o assassinato de Harvey Milk, e o surgimento do “câncer gay” é incrível, e é apenas um quarto do livro, que ainda traz grandes surpresas.

É como eu digo, a vida fica muito mais fácil quando traduzo um bom livro. Mas é raro. Já são mais de SESSENTA livros traduzidos, muita merda, muito livro vagabundo, descartável, mal escrito. Trabalho é trabalho e aceito o que vem. (Obviamente não apontaria de quais títulos não gosto, não seria ético. Mas é a grande maioria.)

Frustrante é ver como se paga cada vez pior por traduções. Algumas editoras congelaram o mesmo valor por lauda de cinco anos atrás, algumas BAIXARAM o valor. Quem vive de frila não pode fazer greve – os boletos chegam com uma pontualidade que nunca temos nos pagamentos – então é aquele equilíbrio para tentar fazer mais em menos tempo, e ainda fazer um trabalho decente.

De vez em quando, como em “The Immortalists”, o trabalho compensa.

Prefiro então lembrar dos grandes livros que traduzi. Também preciso ter auto crítica e assumir que cometi diversas barbeiragens, principalmente no início de carreira – para sobreviver, peguei coisas além da minha capacidade, mas também foi assim que fui aprendendo e me aprimorando como tradutor. Tenho medo de ler coisas que traduzi dez, quinze anos atrás...

Vamos lá então com minhas dez traduções favoritas, que já foram publicadas (não necessariamente meus dez melhores trabalhos como tradutor), em ordem cronológica:


MALDITO CORAÇÃO – J.T. LeRoy (Geração Editorial, 2006): Já contei dezenas de vezes aqui. São as memórias de um michê adolescente, um garoto andrógino total vidaloka – que depois se descobriu ser tudo ficção, escrito por uma mulher bem mais velha. Foi dos trabalhos que mais me envolvi pessoalmente – conheci o “autor” que interpretava o personagem, depois conheci a verdadeira autora; até hoje mantemos contato. Acho uma história fantástica, tanto a do livro quanto a trama por trás.

A VIDA SECRETA DOS APAIXONADOS – Simon Van Booy (Saraiva, 2009): Traduzi dois livros de contos dele para a Saraiva – não me lembro exatamente de qual gosto mais, ambos são delicados, emotivos, sem serem piegas, um equilíbrio difícil de conseguir. “Minha esposa é surda. Um dia ela me perguntou se a neve faz algum barulho quando cai e eu menti”, é uma passagem bem bonita, que destaquei na orelha e que dá bem o tom do autor. Ele merecia ser mais conhecido por aqui.

HATER – David Moody (Saraiva, 2009): Do início daquela onda de livros de zumbis. Neste a epidemia se dá por um ódio irracional que vai surgindo em indivíduos espalhados por uma cidade da Inglaterra. É bem divertido. Cheguei a traduzir a sequência – mas não sei se chegou a sair.  

A GAROTA DOS PÉS DE VIDRO – Ali Shaw (Leya, 2010): Como eu amo este livro. Outro que é muito delicado e emotivo, sem ser piegas – um romance romântico de fantasia, de um fotógrafo que se apaixona por uma garota que tem o corpo pouco a pouco se transformando em vidro. Ele vai em busca da cura para ela, numa ilha tomada de pântanos e animais fantásticos. Daria um filme foda.

O MÁGICO DE OZ – Frank L. Baum (Leya, 2010): Foi bem bacana pegar esse clássico para traduzir. É um texto bem infantil, então busquei fazer uma versão delicada, como se contasse a história para uma criança.

A NOIVA DO TIGRE – Tea Obrecht (Leya, 2011): Ao receber a notícia da morte do avô, uma jovem médica se lembra das histórias fantásticas contadas por ele – como a época durante a Segunda Guerra em que seu vilarejo ficou isolado pela neve, e assombrado por um tigre. Tem algo de "Peixe Grande", com um texto bem literário. Ganhou o Orange em 2011. E tivemos crítica positiva até do Alcir Pécora.

OLHAR MORTAL – Fergus McNeil (Nacional, 2014): Thrillerzão bem divertido. Um assassino que deixa uma pista de sua vítima anterior na próxima, ligando assim os crimes. Contado do ponto de vista do assassino e do investigador, é muito bem arquitetado.

VIDAS REINVENTADAS – Boris Fishman (Rocco, 2014): Um jovem jornalista neto de imigrantes russos usa seu talento como contador de histórias, criando passados falsos para membros da comunidade judaica, que buscam indenizações do governo alemão pelas atrocidades da Segunda Guerra. Foi uma tradução difícil, mas é outro dos que adoro.

FRANKENSTEIN – Mary Shelley (Zahar, 2017): Outro clássico bacana de fazer, não só pela tradução, mas por toda a pesquisa que me exigiu para a apresentação e notas, também minhas. Trabalho difícil, editora rigorosa – literalmente na véspera de Natal estavam pedindo para eu pesquisar territórios do império turco no inicio do século XIX - mas que pagou de acordo.

TERÇAS À NOITE EM 1980 – Molly Prentiss (Rocco, 2017): Um belo retrato da cena de artes plásticas de Nova York, no começo dos anos 80, mostrado através de um crítico de arte, um artista plástico argentino e uma jovem caipira. Tem algo a ver com "The Immortalists", talvez a tendência literária atual de jovens escritoras norte-americanas. Mas é uma boa tendência. 

Segue a lista completa das traduções
(tem uma meia dúzia ainda a ser publicada ou que nunca saiu, que não coloquei aí):

- Metrossexual, Guia de estilo - Michael Flocker (Planeta)
- Quando Eu Era o Tal - Sam Kashner (Planeta)
- Fan Tan - Marlon Brandon, Donald Cammel (Nova Fronteira)
- Maldito Coração - J.T. Leroy (Geração Editorial)
- Alguma Coisa Invisível - Siobhan Parkinson (Nova Fronteira)
- O Violino Voador - Siobhan Parkinson (Nova Fronteira)
- Este Livro Vai Salvar Sua vida - A. M. Homes (Nova Fronteira)
- Os Filhos do Imperador - Claire Messud (Nova Fronteira)
- Pão de Mel - Rachel Cohn (Record)
- Siri - Rachel Cohn (Record)
- O Sonâmbulo - Jonathan Barnes (Mercuryo)
-Moby Dick/Oliver Twist/ Raptado/ O Corcunda de Notre Dame/ Viagem ao Centro da Terra (série de quadrinhos para a Ibep)
- Dizem que Sou Louco - George Haar (Ática)
- Cacos de Vida - Sally Grindley (Ática)
- A Vida Secreta dos Apaixonados - Simon Van Booy (Saraiva/Arx)
- Príncipe de Histórias, Os Vários Mundos de Neil Gaiman - (Geração Editorial)
- Você Sabe Onde me Achar - Rachel Cohn (Record)
- O Amor Começa no Inverno - Simon Van Booy (Saraiva/Arx)
- Hater - David Moody (Saraiva/Arx)
- Noturno de Havana - T. J. English (Cultrix)
- Emily, a Estranha - (anônimo) (Record)
- Bowie - Uma Biografia (Saraiva/Arx)
- A Garota dos Pés de Vidro - Ali Shaw (Leya)
- O Mágico de Oz - Frank L. Baum (Leya)
- A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça - Washington Irving (Leya)
- O Ladrão de Crianças - Brom (Saraiva/Arx)
- A Noiva do Tigre - Tea Obrecht  (Leya)
- Ladrão de Almas - Jana Oliver (Farol)
- A Filha do Caçador de Demônios - Jana Oliver (Farol)
- Quentin Tarantino - Paul A. Woods (Leya)
- Aurora - Julie Bertagna (Farol)
- Condenada - Chuck Palahniuk (Leya)
- Academia Knightley - Violet Haberdasher (ID)
- Guia de Estilo Squire (Ibep)
- O Príncipe Desencantado - Tony Ross (Record)
- Magra Para Sempre - Jilliam Michaels (Nacional)
- Guia para Dona de Casas Desesperadas - Caroline Jones (Nacional)
- O Teste - Joelle Charboneau (Gente)
- Emily the Strange - Os Dias Perdidos (Record)
- Olhar Mortal - Fergus McNeil (Nacional)
- Os Escolhidos de Gaia - Marcela Mariz (Autêntica)
- O Universo Contra Alex Woods - Gavin Extence (Rocco)
- Dark House - Karina Halle (Gente)
- O Amor em Jogo - Simone Elkeles (Globo)
- Maldita - Chuck Palahniuk (Leya)
- O Misterioso Lar Cavendish - Claire Legrand (Autêntica)
- Para Onde Ela Foi - Gayle Forman (Globo)
- Os Filhos de Odin - Padraic Colum (Gente)
- A Torre - Daniel O Malley (Leya)
- Meu Romeu - Leisa Rayven (Globo)
- Os Dois Mundos de Astrid Jones - A.S. King (Autentica)
- Vidas Reinventadas - Boris Fishman (Rocco)
- Otto, Etta, Russel e James - Emma Hooper (Rocco)
- Os Marvels - Brian Selznick (SM)
- A Busca Sofrida de Martha Perdida - Caroline Wallace (Rocco)
- Frankenstein – Mary Shelley (Zahar)
- Noites de Terça em 1980 – (Rocco)

06/02/2018

MEIO DESLIGADO

Trilhas

Há dois meses morando (novamente) na praia, desligado de tudo, reflito sobre meu lugar no mundo...




Estou com acesso restrito à internet, sem wifi aqui na casa, sem celular – no fim da bateria, carrega no máximo 10% e morre - é um IPhone já com mais de seis anos, afinal, nunca deu problema, talvez porque eu use tão pouco... (Se tiver um leitor-amigo rico, aceito um novo.)

Ainda assim, por enquanto tenho conseguido fazer tudo por aqui, mas devo ir para São Paulo depois do carnaval. Dependendo do trabalho fico por lá, dependendo, volto para a praia...

Minha rotina tem sido traduzir, escrever, ler, jogar o PSP, mais ou menos nessa ordem cronológica do dia, nem sempre nessa ordem de importância. Sento-me numa mesa de frente para o jardim onde consigo ver a coelha correr, os passarinhos se alimentarem, e faço o trabalho do dia. Dia desses vi uma cobra. Pequena, filhote, não-peçonhenta, permanece em algum lugar do jardim. Ainda não interagiu com a coelha. Mais preocupado fiquei uma manhã que acordei com barulhos na churrasqueira e havia uma ÁGUIA de tamanho suficiente para levar a coelha embora. Os gambás também fazem visitas frequentes.

Minhas leituras têm rodado quase que exclusivamente em torno da pesquisa do livro novo, então não vou comentar por enquanto. Encaixei no meio o Nutshell, do Ian McEwan, que estava na prateleiras há tempos – uma besteira muito bem escrita.  E um par de romances de amigos, que deixaram a desejar, então também não comentarei...

Sobre os games, sou oldschool.  Superei meu vício no Monster Hunter, agora sigo com a série “Ghosts n’ Goblins” – com emuladores, dá para jogar praticamente todos no PSP. Têm aquela dificuldade insana, e fico com remorso de pensar quanto devo ter gasto na infância, jogando “Ghosts n’ Goblins” no “fliperama”. (Aliás, me fez pensar também em como fliperamas eram – ou são – jogos de azar. Não sei porque escapam da proibição dos caça-níqueis.)

Murilo chega toda noite-madrugada com filmes que baixou do hotel. Assim temos visto os comentados da temporada – e eu tenho visto mais A-list de Hollywood do que de costume. Comento ligeiramente sobre os filmes no Facebook, que acabou assumindo essa função que tinha o blog, o blog perdeu a maior parte de suas funções (quem me visita exclusivamente aqui além de minha mãe?)

Curioso um post da Tatiana Salem Levy há algumas semanas, sobre isso de filmes, que ela não sabia/ não queria baixar, e perguntava quais eram as opções além de Netflix, para filmes mais antigos e tais. Bem, os filmes foram feitos para não se ter opção, né? Você via no cinema e depois nunca mais, de repente só numa mostra ou outra. O VHS inaugurou o conceito de rever seguidamente e o DVD criou o conceito de TER os filmes – agora com o streaming está tudo mais volátil. Seria curioso entender como isso alterou a maneira de se FAZER cinema, os roteiros, a estrutura em si. Sou daqueles que gosta de rever, de ter – o primeiro contato com o filme pode ser o mais prazeroso, mas é revendo que se entende como a história foi contada, a estrutura, que se aprende mais sobre cinema e storitelling em geralBem, mas talvez os filmes devessem apenas passar e sumir, como as peças de teatro, os livros...

Eu ainda estou vivo. Estou produzindo. Publico regularmente. Me interessa mais que leiam meus novos livros. Mas sempre me perguntam onde encontram aqueles que estão esgotados, que ficaram anos encalhados. Daí só resta os sebos. Penso se não deveria ser assim mesmo. Será que o livro, como os filmes, como as peças, não deveria ter seu tempo e depois só para os colecionadores? Embora a (boa) literatura devesse ser eterna, não é possível manter todos os livros de todos os autores em catálogo. De repente o livro digital é um meio termo. De repente a impressão por demanda...

Por sinal, o novo romance está se encaminhando, agora já peguei aquele ritmo de ao menos uma página por dia, já estou fazendo com prazer; deve levar ainda alguns anos, mas os últimos meses têm sido ótimos para isso.

Tem sido ótimo também para os churrascos. Sei que é um clichê de tiozão, mas já vivi lindamente a fase gatinho de praia aos 32-33 em Floripa, agora a fase é outra. Até tenho experimentado diversas carnes e técnicas, mas o principal é esse processo primitivo. Sentado aqui no jardim, escrevendo, acendo a churrasqueira nem que seja para grelhar um hambúrguer. E me decepciona o quanto agora o carvão acende rápido, quão rápido a comida fica pronta. O melhor de tudo é o ritual, o fogo acendendo, a brasa queimando....

Meu talento para churrasqueiro é tal que dia desses consegui convencer uma vaca que pastava aqui do lado a me acompanhar. Acendi a churrasqueira e a fui conduzindo: “Agora a pata direita. Agora a pata esquerda. Agora os glúteos...” (Que Marcelo Maluf não leia isso.)

Para queimar (de leve) os churrascos, temos um instrutor de funcional três vezes por semana. No painel de horários dele estão marcados os grupos: “highlanders”, “ladies”, “monsters”, freaks” – não precisa perguntar em que grupo estamos. Completamos os treinos semanalmente com trilhas para praias próximas ou cachoeiras. E dia desses fizemos uma aula de crossfit, que talvez seja uma nova opção. De toda forma, não espero mais um corpo perfeito, só não quero morrer antes dos 46.  Mas se não der também, tô de boas...

De boa. 

ENTÂO VOCÊ SE CONSIDERA ESCRITOR?

Então você se considera escritor? (Trago questões, não trago respostas...) Eu sempre vejo com certo cinismo, quando alguém coloca: fulan...