28/07/2010

DOIS LATINOS
Uma vez questionei Golo sobre seu tênis. Era um Converse velhíssimo, que ele nunca se precupava em lavar. Sugeri que, já que seus quadros estavam vendendo tão bem, quem sabe não seria uma boa hora de comprar novos sapatos. Golo ficou ofendido. Ofendeu-se tanto que nessa noite não trepamos. Usou de desculpa a cocaína que nos restava e foi dormir no sofá.

(Trecho de Temporada de Caza para el León Negro - de Tryno Maldonado, em tradução ligeira minha.)


Acabei de ler dois dos escritores que conheci em Madrí: Tryno Maldonado (México) e Juan Sebastián Cárdenas (Colômbia). Rapazes bacaníssimos, que confesso que já torcia para gostar dos livros. Do Maldonado inclusive eu comprei, e - ufa - foram leituras mais do que prazerosas. Por isso estão aqui.

Temporada de Caza para el León Negro é uma declaração de amor a um personagem. "Golo" é um jovem artista plástico cocainômaco, anárquico e autista - que equilibra sensibilidade e poesia com uma futilidade estúpida. Mais do que a figura de um excêntrico, é um retrato (abstrato) de nossa geração (a "Geração Atari", como Maldonado coloca no livro), então o livro se torna uma visão afetiva de nossos valores e ideais.


O livro é estruturado em parágrafos curtos isolados, descrevendo Golo e sua ascenção do anonimato ao topo do mercado das artes plásticas. O narrador é seu namorado, mas não chega a ser um personagem. É um narrador que se oculta e se anula em favor de seu muso. O mais interessante é que, por mais que seja daqueles livros perfeitos para se apaixonar pelo protagonista, não aconteceu comigo. Apaixonante para mim foi a paixão narrada, mas o tal de Golo eu achei... um ser desprezível... e levemente asqueroso. Não consegui nem imaginá-lo fisicamente atraente. Sinal de que Maldonado criou algo vivo, aberto à cada leitura.


Eu não uso marcador de páginas. Insisto em apenas tentar memorizar o número da página em que parei. Nem sempre dá certo. E nesse livro, em especial, com parágrafos isolados se repetindo, eu me pegava achando que estava relendo uma página já passada, então pulava para frente, percebia que estava pulando páginas. Fui lendo e relendo fora de ordem, o que não me pareceu fazer diferença para a estrutura do texto e reforçou a sensação do livro próprio.


Uma graaaaaaaaande experiência de leitura.

Maldonado e eu no braço de ferro em Madrí. (O curioso - bizarro, pitoresco - é que eu sugeri o braço de ferro, mas há uma cena semelhante no livro dele; que eu fui descobrir depois.) (Ok, perdi na disputa.)
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O zumbido da fábrica era muito grave. Outro em meu lugar; ou eu mesmo em circunstâncias diferentes, teria dito que o zumbido propagava uma atmosfera solene, que era uma trilha sonora mais do que adequada a imponente aparição daquela paisagem. Mas o zumbido na verdade não representava nada. Tampouco tinha um valor simbólico nem era uma metáfora. O zumbido não era mais do que um zumbido, assim como a lembrança da mulher não era mais do que uma lembrança. Seu único valor, se é que tinham algum, remetia a sua própria presença. Algo que fazia vibrar o ar e se metia nos pulmões, de modo que você acabava respirando antes de entrar na corrente sanguínea.

(Trecho de Zumbido, de Juan Sebastián Cárdenas, em tradução ligeira minha)


Cárdenas é um colombiano que mora já há vários anos na Espanha, fala muito bem português e atua também como tradutor. Traduziu inclusive (para o espanhol) João Gilberto Noll - que dividimos como um dos nossos autores favoritos.



Por Cárdenas ter me revelado de antemão essa influência (ou não), foi inevitável eu não ver algo de Noll no romance Zumbido. Um homem que sai do hospital onde morreu sua irmã e segue levado por uma mulher desconhecida e pelo acaso para uma série de situações absurdas, oníricas e quase surrealistas. Tem algo do forasteiro eterno do Noll, sim, mas também algo muito próprio (porque afinal as influências se tornam influências em grande parte por já estarem lá anteriormente, por despertarem essa identificação.)



O trecho que traduzi acima para mim se tornou chave do romance. O zumbido que é apenas um zumbido (o assobio que é apenas um assobio) e que arquiteta um delicioso paradoxo na cabeça do leitor, que sempre recheará de sentidos próprios, implícitos o que está lá. Afinal, se o zumbido está lá, está em livro, está escrito, ele deixa de ser apenas um zumbido. E o livro está recheado disso, duelando com a prosa espontânea.

Tem algo de beat, algo de Fante e (talvez por nossas influências em comum) algo até de Olívio (que Cárdenas não leu). E eu poderia dizer algo de Eyes Wide Shut (Kubrick, com o qual meu Olívio também foi comparado). É uma viagem delirante, um pouco incômoda, mas riquíssima. Cárdenas sabe muito bem o que faz.

Cárdenas e eu, algumas semanas atrás, em Madrí.



Não, Maldonado e Cárdenas (e esses dois livros que menciono) NÃO foram publicados ainda em português, no Brasil. Fica aqui a dica...

Aos poucos vou ampliando minha visão da América Latina, com escritores que conheci em eventos na Colômbia, Peru, Venezuela, agora em Madrí e também no Brasil. E essa geração, nossa geração, a "Geração Atari" que seja, vai amplicando suas fronteiras para mim. Vou me sentindo mais e mais integrado nessa comunidade global de escritores, por nossa semelhanças e, principalmente, por nossas diferenças.

TIREM AS CRIANÇAS DA SALA

(Publicado na Ilustríssima da Folha deste domingo) Do que devemos proteger nossas crianças? Como não ofender quem acredita no pecado? Que ga...