31/03/2008

ANIMAIS BONZINHOS


(Bastidores de Cymbeline)


Cristiane Lisbôa não come animais bonzinhos. Outro dia fomos jantar num restaurante chicoso e eu a ouvi dizendo isso ao garçom que oferecia cordeiro. Não come animais bonzinhos. Ela come carne, então não sei como pode achar que os bois são perversos. “As galinhas são más, elas nos perseguem”, me disse ela. Muito bem, as galinhas nos perseguem. Eu percebi que como apenas – APENAS – os animais bonzinhos. Hoje, numa peixaria, cresci os olhos para uma embalagem de cavalo-marinho - Quero cozinhar cavalo-marinho - Mas era só a marca na embalagem. Dentro havia polvo, ou lula, ou vôngole, esses animais sem coração...

Sou um magro de alma gorda.

Assim, encho a boca para falar dela, minha afilhada, que assim se tornou porque tinha muito, tanto, em comum.

O morto geme de dor. Está muito cheio de movimentos, de olhos bem abertos, implora, cospe, reza o Pai Noso em voz bem alta. Chora, bebe as lágrimas que o ruivo derrama. Que coisa desesperadora é ver alguém assim.

Trecho de seu novo livro: "Sylvia Não Sabe Dançar", um pulp fiction de costumes (adorei isso, "pulp fiction de costumes"), novela recheada de frases fabulosas, trama ironicamente sórdida, que eu tive orgulho de prefaciar. Pois é, Cristiane Lisbôa é da minha turma. E nos aproximamos como leitores-escritores, que agora podem se chamar de amigos. Assim me sinto mais próximo dela do que de qualquer outro autor na literatura contemporânea. Sabe como é, num mundo onde todo mundo diz que escreve, eu leio as frases dela e vejo na hora a diferença. A apresentação que eu assino do seu livro é essa aqui:

Após ter publicado belos volumes de contos, Cristiane Lisbôa estréia com esta novela rodriguiana, uma comédia de costumes bizarros, de humor cruel e ironicamente melodramático. Em 1929, uma jovem professora de balé mata o jornalista que a difamou. À partir desse assassinato, resgatamos a história de Sylvia, numa narrativa recheada de incesto, escândalos e relacionamentos sórdidos. Em resumo, uma delícia. Já há alguns anos vemos nos deparando com uma enxurrada de novíssimos escritores, sempre carregados de promessas e possibilidades. Nesse contexto, Lisbôa chega para deixar clara a diferença. É só ler as primeiras frases, as primeiras páginas, para evidenciar que encontramos uma escritora de fato, de talento inegável, lirismo e inteligência. No final, das centenas de frases brilhantes do livro, é possível encontrar uma conclusiva: “À partir de hoje, defendo que todos os bons escritores devam ter assassinado alguém a sangue-frio.”

E é isso. O livro virou um pocket fofíssimo (entregue aqui na minha casa com um camafeu de petisco). Ela lança na quinta-feira de noite, na Livraria da Vila da Alameda Lorena. Quem quiser mais detalhes, pode conferir o belo site: http://www.sylvianaosabedancar.com.br/

(você já viu site de livro melhor do que este? Se livro não fosse um produto cultural fantasma, todas as editoras fariam sites assim. )



Já eu, estou dando os últimos toques em "O Prédio, o Tédio..." depois nem sei mais. Andei conversando muito nas últimas semanas sobre teatro. Carl Grose, autor britânico que fez o texto de adaptação de "Cymbeline", me deu muitas dicas. Andei pensando muito nos últimos meses sobre outras possibilidades. Acho que vou dar um bom tempo para escrever outras coisas, talvez peças. Pensei até em adaptar "Mastigando Humanos" para o teatro, não sei. Só sei que não quero estacionar, fazendo sempre as mesmas coisas. E por aqui parece que não há muito além para evoluir. Quero dizer, a literatura, é tão restrita, tão pouco difundida. E os outros veículos são uma piada. Peças de teatro? Roteiros de cinema? Pfffffffff. Enquanto não morrerem todos os idiotas que ainda acham que é necessário mostar nossos serrados e nossas favelas, ou quaisquer outros cenários beges que eles acreditem que sejam mais NOSSOS do que qualquer cenário interno que se possa imaginar- porque eles NÃO podem imaginar - a gente vai continuar no brasil intelectual oficial. É isso, falta um pouco de imaginação. Mas essa é uma bandeira que eu carrego há tempos. E não sou de todo desesperançoso, porque parece que está surgindo uma geração (a minha geração) de cineastas muito mais interessantes. Gente como Esmir Filho, Felipe Sholl, Daniel Ribeiro e Marco Dutra. (E que morram de dengue todos os outros!!!)

Mesmo assim, é um pouco desestimulante pensar que, como escritor, o máximo que você pode ascender é a autor de outra coisa: autor de teatro, de cinema, não há como crescer como um mero autor por escrito. De Livros. Triste.

Por isso, quero experimentar outros veículos, ao menos como experiência, como já venho fazendo com o cinema. Porque também o meio editorial entupe minhas artérias.



Santiago Nazarian e Carl Grose nos bastidores de Cymbeline


Toda a equipe.


Então... sei lá... é por aí. É isso mesmo. Estou preparando o livro novo. Contando com todo o seu entusiasmo. E bastante amargurado de pensar que o máximo de sucesso que posso ter é vender 3 mil cópias (uma edição) nos primeiros meses, depois mais alguns milhares de gotas em gotas, e ainda ouvir cobranças e ataques como se uma vírgula errada pudesse provocar mais dano à cultura brasileira do que qualquer letra de Ivete Sangalo.

Entenda: é esse o Godzila que destrói nossas metrópoles, enquanto sou um micro aligator monologando nos esgotos...


Mas esta é uma alegoria antiga. Atualizando: são esses os zumbis que babam em nossas ruas, enquanto sou um simples assassino de criancinhas.

Bléh!

E devo discutir um pouco sobre isso com os alunos de letras do Mackenzie, numa palestra que vou dar esta semana. É bom conhecer gente nova que está estudando isso em dias atuais. Debater um pouco sobre as possibilidades. Pode parecer previsível um autor lamentar ter de migrar para o cinema ou a TV, mas não é. Sei que grande parte dos jovens autores que estão aí dariam tudo para ter essa oportunidade. Mas não é esse meu sonho, não é nisso que me especializei. Eu ainda preferiria ter tudo no papel, por escrito.

Anyway, terminou hoje a temporada de Cymbeline, com o Kneehigh Theatre, no Sesi. Para mim foi uma ótima oportunidade trabalhar com eles, traduzir, legendar, conversar. Todos foram muito queridos e muito profissionais. Vão deixar saudades.

25/03/2008

ODEIO O FATO DE SER REI...


(foto: Pierre & Giles)

I hate the fact that I´m king
I´ve lost more than I´ve gained
I´ve knelt more than I´ve reined
Would I be so rich, and yet so deprived?
Would my sons be still alive?
Would I hold my daughter and hear her sing?
I hate the fact that I´m king.


Trecho de “Cymbeline”, que está em cartaz no Sesi. Me perguntaram por email sobre o que era a peça. Ora, é Shakespeare! Então você sabe que ao menos tem um rei, uma rainha e um casal que se mata.

E afinal... no final, todo casal não se mata? Não se transforma em cacos cada taça? Cada taça com que brindamos será quebrada. A que restar, será devolvida, sem nem ao menos ter sido usada...

Oh! Quem mandou eu tirar o coração do congelador, não é? Ele ainda funciona. O congelador, digo, ainda funciona. Porque a geladeira foi pro saco, minha geladeira não presta mais. Meu refrigerador não funciona. E o coração, dá pra aquecer no microondas?

Muito bem, trabalho: nos últimos dias troquei uma enxurrada de emails com minha agente, Nicole, sobre antologias que estão saindo pelo mundo a fora. Vários contos meus saindo pela América Latina, México, Itália. E eu tenho de ficar revirando meus arquivos, abrindo o congelador, ver quais contos antigos eu consigo requentar no microondas, porque há um bom tempo que não sento e escrevo um conto novo. Também, esse romance novo me consumiu tanto... E romances antigos, que insistem em me assombrar... E a falta de romance na minha vida... E as assombrações do Supernatural... Ah! Tudo isso anda me tirando dos trilhos.

Mas tenho um projeto, ainda tenho um projeto, meu próximo projeto, provavelmente, de livro, será um volume de contos. Está na hora, não? Cinco romances, agora chega. É preciso variar. E deve ser um livro de contos de terror. Vamos ver. Um deles ao menos já está pronto, e vai sair este ano numa antologia de contos de vampiros, organizada pelo Luiz Roberto Guedes e publicada pela Devir. Meu conto lá é “Catorze Anos de Fome”. Quem foi numa leitura minha na casa das rosas, há dois anos, recebeu o conto. Agora, só na antologia. Depois, quem sabe, nesse meu livro de contos trevosos. Mas isso é projeto para daqui a dois.... três anos....

E é só projeto.
(É um perigo anunciar projetos aqui, porque depois eu tenho de responder durante anos e anos leitores que querem saber a quantas andam....)

Tá, um trecho do conto de vampiro:
Um homem careca, de olhos esbugalhados, olhos tingidos de vermelho, de doenças, de ódio. Olheiras profundas, narinas dilatadas. Mas o que mais impressiona é sua boca, sua mandíbula proeminente, na arcada inferior, uma longa fileira de dentes, afiados. Saliva, espuma. Olha para os meninos como quem pede socorro, como quem pede desculpas, como quem não pode se conter e não pode mais suportar. Como se quisesse engolir até o último dedo deles, sugá-los, como um fio de espaguete, como se só assim pudesse sobreviver

Por enquanto, dando os toques finais em “O Prédio, o Tédio e o Menino Cego”. Tenho mais um mês pra entregar a versão final pra editora. É um livro enorme. Sai em julho/agosto.

Tá, mais um trecho do livro novo:
Sua sorte estava lançada. Nicolas pegou um biscoitinho da sorte e partiu-o para ver o que dizia. Ainda no restaurante. Ainda no limbo entre almoço e jantar. Mas com os vapores da janta emanando da cozinha, o restaurante voltando à vida. Antes do primeiro cliente, antes que o trabalho recomeçasse, antes que a mãe o chamasse e pedisse que Nicolas ajudasse com os pratos na cozinha, ele partiu um biscoito da sorte, para forrar o estômago e ver se havia saída. E o biscoito dizia: "Você está fodido."

20/03/2008

PASCOA AOS PEDAÇOS





Estreou ontem no teatro do Sesi a montagem de Cymbeline, do Shakespeare, pelo grupo britânico Kneehigh Theatre. Eu estou legendando todas as apresentações ao vivo, lá de cima, da cabine de luz. Recebi o texto original já traduzido, mas como houve muitas mudanças, adaptações, cacos e improvisos, fiquei esta semana toda acompanhando os ensaios, repassando o texto com os atores. Eles foram super queridos, fizeram uma leitura dramática todos juntos comigo, aprenderam algumas coisas em português. Ontem na estréia arrasaram. E eu já estou vendo que vai ter cada vez mais improvisos em português. É preciso tomar bastante cuidado com as legendas já prontas...

Pra quem não conseguiu ver o convite aí em cima, é no Sesi da Paulista (1313), de terça a domingo. Horários: Terça a sex – 20h. Sábado: 16h e 20h. Domingo: 17h.

Como procuro sempre equilibrar (ou diluir?) alta cultura com futilidade, tenho assistido “Supernatural” todas as noites. Estou com a primeira temporada inteira aqui, não me pergunte por quê (um amigo disse que era pelo ator pitéu. Mas se fosse por ator pitéu, eu compraria a caixa de Smallville). A idéia da série até que é legal, dois irmãos caça-fantasmas, perseguindo várias lendas urbanas: a loira do banheiro, a noiva da estrada, o homem do saco, mas o resultado é péssimo, péssimo, péssimo. Os atores são péssimos, a produção é tosca, não tem clima e não dá medo nenhum, parece que eles só contratam gente bonitinha, até para fazer os papéis de fantasma. Fora que o ator bofão conquistador não me engana, sempre que ele quer dar uma de durão eu o vejo na mesma hora na pista da the Week, sem camisa, de óculos escuros, numa roda de bibinhas hollywodianas.
Ui, ui, ui!

A única coisa boa do Supernatural é que cada episódio tem sua independência (eles até tentam fazer uma trama contínua, sobre o pai desaparecido, mas não tem a menor importância). Acho um saco essas séries tipo Lost que você tem de acompanhar inteira para entender, e cada capítulo termina obrigando-o a ver o próximo. Você até pode comprar uma caixa com a temporada inteira, mas depois vai ter de esperar (MESES) pela segunda temporada, com a continuação. Eu não tenho saco. Isso dura anos. Vicia e escraviza. (Uma madrugada dessas, fiquei na casa da minha mãe vendo uma maratona de “Heroes”. Fiquei CINCO HORAS seguidas assistindo. Gostei. Mas é frustrante, porque cinco horas não é o bastante para você entender direito a história.)

(É mais ou menos como jogar SimCity....)

Ah, outra série que assisti esses dias é Greek. A Universal mandou um DVD aqui. Me parece um “Barrados no Baile” universitário. É gostosinho de ver, levinho, mas faltam pitéus. Ao menos, nos dois episódios que vi, não tinha nenhum pitéu, só pitéias. Tem uma trama seqüencial sim, mas como não lida com suspense, não frustra tanto o expectador, e cada episódio se resolve mais ou menos em si.


Cambada de nerds!



Estou querendo é rever o Arquivo X...

Falando em mistérios, retornos e bizarrices, estou ouvindo o novo cd do Porstishead, que vazou na net. Primeiro achei que era falso, agora.... ainda estou na dúvida. O cd é muito ruim. Ok, talvez seja mais BIZARRO do que ruim. Parece uns lados B da carreira solo da Beth Gibbons. Não entendo porque eles voltaram para fazer algo assim, tivessem então dado outro nome para banda. O cd que estou ouvindo não tem nada a ver com Portishead, não tem batidas eletrônicas, não tem o clima lounge-soturno tão gostoso dos outros dois álbuns, nem pode ser rotulado como trip-hop. Ok, ok que eles mudem e façam uma coisa diferente, mas daí é como eu disse, não faz sentido para uma banda que sumiu há quase dez anos voltar com algo que não tem nada a ver com a própria banda. Não sei, eu ainda quero acreditar que o que estou ouvindo não é o álbum final. (E não é de todo ruim não, tem umas faixas “interessantes”.)



O novo do Anthony eu ainda não ouvi.



O novo do Nelson Ned também não.



E o novo da Madonna que se foda.

No mais, boa Páscoa. Vou ficar por aqui direto, legendando os espetáculos.

17/03/2008

LONGO POST DE FARSAS E BIZARRICES

Laura Albert e Savannah Knoop - Autora e intérprete de JT LeRoy, respectivamente.



Opa, Santiago,
Muito obrigado por tudo isso. Acho que o povo lê sobre mim e tira suas conclusões sem ler uma única palavra. Eles não pensam que talvez a imprensa se aproveite apenas do lixo sensacionalista, o troço que usam para vender revistas, que tem pouco ou nada a ver comigo, com quem eu sou ou sobre o que é minha obra. É a cruz que tenho de carregar, mas há piores... como nós sabemos.
Eu li sim “Running with Scissors”, acho que te entendi errado. Lembro de você me perguntar e eu estava meio abobado e tão acostumado a nunca ter lido a maioria das coisas sobre as quais me perguntam, é [um livro] doloroso... ótimo e engraçado. Ele é um cara bem bacana também.
Enfim, obrigado por ser eu, escrevendo esse livro comigo, porque é o que um tradutor deve fazer. Estou muito honrado.
Sinto muitas saudades do Brasil. Espero voltar logo. Talvez para esse lançamento eles me tragam de volta… Não custa sonhar.
Com afeto,
JT.
PS – Pode retirar o nome do Dennis Cooper de qualquer lugar que apareça? Obrigado! Eu também gostaria de refazer a página de agradecimentos, incluir uma turma lá. Pode me enviar essas páginas?
Obrigado mais uma vez ; )
(Email de JT LeRoy, enviado para mim em setembro de 2005)
Ok, sei que essa história é velha...
Fui procurar o email do JT LeRoy depois de assistir “Segredos na Noite – De Night Listener”, em DVD. Recomendo, apesar do filme ser estrelado pelo Robin Willians... É baseado numa história real, uma história de fraude literária, muito parecida com a do JT, descoberta pelo (escritor) Armistead Maupin.
O livro de Maupin "The Night Listener", eu li há pouco mais de um ano. Também é bem instigante, mas acho que não tem tradução no Brasil.

Isso me fez pensar como a verdadeira história (da fraude) de JT LeRoy daria um bom livro, e me fez procurar os antigos emails que troquei com ele/ela. Nesse aí já se vê uma contradição entre algo que ela (Savannah - a intérprete de JT) me disse ao vivo, e o que dizia a autora (Laura Albert). No caso, era sobre um livro do Augusten Burroughs, que eu comentei pessoalmente com JT, e que ele/ela disse não conhecer.

Também fiquei pensando em como há bons autores gays/alternativos nos Estados Unidos. Como essa literatura “underground” contemporânea me influnciou, com nomes como o próprio Augusten Burroughs, Matthew Stadler (que eu também conheci pessoalmente), Alan Hollinghurst, Ton Spanbauer e principalmente o Dennis Cooper.

Mas daí é só pensar mais um pouquinho e ver que, no Brasil, há grande número de autores gays, que tratam da temática em maior ou menor grau, e estão no primeiro time da literatura contemporânea: Caio Fernando Abreu, João Gilberto Noll, Silviano Santiago, Marcelino Freire, Bernardo Carvalho, Glauco Matoso, João Silvério Trevisan...

E daí me lembro porque quis organizar aquela MALDITA coletânea de contos gays, com o Marcelino Freire. Mas que ainda vai sair, pode ter certeza, deve sair este ano ainda, mais pro final.

Então, vamos lá. Encontrei uma bela entrevista com Laura Albert, revelando toda história por trás da farsa de JT LeRoy. Traduzi as melhores partes. Aproveitei para traduzir também uma entrevista com Dennis Cooper (que li há tempos, enviada a mim pelo Daniel Luciancencov). É bom para ajudar a difundi-lo por aqui. Não há nenhuma obra do Cooper traduzida para o português. Eu já tentei vender, mas é coisa HARDCORE MESMO, não é para qualquer um...

Então vai lá JT, depois Cooper (pega fôlego porque a coisa é longa).
Trechos da entrevista com Laura Albert, autora de JT LeRoy.
(Tradução Santiago Nazarian)
P: Você inventou o Jeremy, mas diz que ele se apoderou de você, como se existisse independentemente..

Parecia mesmo que ele era outro ser-humano. Vou falar dele no passado porque sinto que a energia dele não é mais a força primordial em mim, como era antes.
Como você decidiu apresentar o JT para um mundo mais amplo, além da sua terapia?

Dr. Owens pediu que eu escrevesse minhas histórias. Ele dava aulas na Universidade de São Francisco para gente que queria ser assistente social, e ele sabia o quanto eu odiava assistentes sociais, então ele disse: você pode ensinar a verdade para eles. Gostei disso porque me senti útil. E percebi que foi uma forma de me forçar a escrever. Quando escrevi a primeira parte eu senti um clique. Era um conto chamado “Balloons,” sobre o uso de heroína. Eu escrevia as história à mão, porque não sabia datilografar. Então mandava por fax para ele, às vezes ia de bicicleta para a escola e entregava pessoalmente. Eu estava louca por retorno.

Você ia pessoalmente, como Laura?

Não, eu ia como amiga do Jeremy, Speedie. Era quem eu era em público – uma mulher, mais tarde conhecida como Emily, cujo apelido era Speedie. Ela falava com esse sotaque cockney irritante, dava vontade de bater nela, mas ela morou em todo canto, porque o pai dela era militar. Ela teve uma vida difícil, e saiu de casa cedo para morar em São Francisco. Eu também disse que ela trabalhava com sexo, porque tinha gente que podia me reconhecer. Eu me encontrei com o Terry—Dr. Owens— como Speedie, algumas vezes.

P: Quando você escrevia, você sentia que JT se apoderava de você da mesma forma de quando você falava? Você sentia que JT é que escrevia?

Não, quando eu escrevia eu sentia como se estivesse tentando formar uma história. Ele contava a história e eu era a secretária que pegava e dizia: Ok, obrigada, agora vou tentar tornar isso uma obra. Mas assim como eu não sentava e não pensava em mim como JT, enquanto eu escrevia eu também não tinha de ser a Laura.

O que o Dr. Owens, e seus alunos, acharam das histórias?

Conversaram sobre elas do ponto de vista terapêutico. Mas eu queria saber mesmo o que achavam sobre a escrita. Então o Dr. Owens me passou o contato de um vizinho, um editor chamado Eric Wilinski, que me deu retorno. Um cliente meu, do disque-sexo, me havia indicado a poesia de Sharon Olds, e eu a admirava muito. Quando mencionei isso para o Eric, ele disse que havia estudado com ela e sugeriu que eu escrevesse diretamente pra ela. Eu disse, Nah, isso não se faz. Ele disse que tinha falado com ela, e ela queria que eu escrevesse para ela. Ela me escreveu de volta. Ela leu “Balloons” e a resposta dela foi tocante.
Na mesma época, entrei em contato com um autor gay de ficção, de quem tinha ouvido falar. Havia coisas muito perturbadoras nos livros dele, coisas sexuais, e a forma como ele capturava a solidão e as necessidades dos adolescentes realmente me tocou. Liguei pra ele usando o apelido de Terminator, e falei como Jeremy. Ele era alguém que eu admirava, mas quando li meu trabalho no telephone, percebi que, ainda que ele gostasse da minha escrita, se empolgou sexualmente pela perversidade e o abuso das histórias. Então começamos a mudar nossa relação para uma relação sexual. Era como os namorados da minha mãe – eu queria que eles estivessem por perto, então fazia de tudo. Ele achava que estava falando com um garoto de treze anos, e sempre me convidava para ir a sua casa. Eu achava que atenção sexual era melhor do que não ter atenção nenhuma. Aprendi nas ruas que se você entra numa situação sexual perigosa, é só dizer que tem AIDS – é a última estratégia de sobrevivência. Então finalmente eu pisei no freio e disse que tinha AIDS e feridas por todo o corpo. Não o desestimulou nem um pouco. Tem gente que gosta de ir ao extremo. Eu estava assustada, mas também aliviada. Se ele podia ter compaixão por alguém que não era bonito, que estava de fato desfigurado, ele podia ter compaixão por mim, Laura.

Mas ele não sabia que Laura existia. Ele tentou ajudar o JT de alguma forma?
Ele me mandou um romance de outro autor gay, com quem entrei em contato. Esse cara também me me chamou para ficar com ele, mas passou meu trabalho a frente para uma escritora do The Village Voice chamada Laurie Stone, que acabou publicando um dos meus contos, “Baby Doll,” numa antologia chamada Close to the Bone. Esse livro teve muitas resenhas e a maioria destaca meu conto, dizendo como é intenso e cru. Logo arrumei um agente, Henry Dunow, e a editora Crown quis publicar um volume com meus contos. Falaram em publicar como um livro de memórias. Era época da febre de memórias. Havia saido o The Kiss , da Kathryn Harrison, e The Liars Club, da Mary Karr, e tinha esses livros apelativos de abuso infantil por todo canto. Mas eu não queria publicar as histórias se elas não pudessem sobreviver como ficção. Comecei a me corresponder com a escritora Mary Gaitskill, e ela me deu um ótimo retorno, foi a primeira pessoa a ser crítica com minha escrita. Ela me levou a todas essa grande literatura: Vladimir Nabokov e Flannery O’Connor— e eu percebi o quanto precisava aprender.
Ela quis se encontrar com o JT?

Sim. Ninguém nunca o havia encontrado pessoalmente, e começaram os boatos de que ele não era real, então eu sabia que precisava de um corpo. Marquei um encontro com a Mary, e decidi contratar alguém para interpretar o JT. Mas não conhecia ninguém que combinasse com minha descrição física dele. Então Geoff e eu andamos de carro pela Polk Street, e eu vi um garoto que nunca havia visto antes. Tinha dezenove anos, era magro, loiro, de olhos azuis – perfeito. Disse a ele: quer ganhar cinqüenta pratas sem fazer sexo? Ele topou. Falei pra ele não conversar, só dizer oi para uma mulher chamada Mary, depois se assustar e ir embora. Levei-o ao café. Mary Gaitskill esperava lá. O garoto entrou, disse “oi, sou o Terminator”, passou um vinagre e um chocolate que eu comprei de presente pra ela. Ela disse “oi, prazer em conhecê-lo”, e ele fugiu. Então me sentei. Eu fui lá como Speedie, e nós conversamos.

Tem uma foto de autor do JT, no livro. Quem era esse?

Meu editor pagou para usar a foto de um adolescente que parecia com o JT. Quando Sarah foi publicado, teve críticas fabulosas, e as revistas queriam matérias com suas próprias fotos do JT. Não queriam usar a foto de divulgação. Então percebi que de novo iria precisar de um corpo. Amo o Andy Warhol, e havia lido que ele usava gente que fingia ser ele. Então quando a revista dele, a Interview, pediu uma foto do JT, perguntei a essa menina que conheci em Valencia Street, uma sapata bonitinha de vinte e poucos, se eu podia fazer uma foto dela, por cinqüenta pila. Coloquei óculos nela e fizemos a foto como JT. Mas mais revistas estavam interessadas. Eu precisava de mais fotos. A irmã mais nova do meu marido Geoff’, Savannah, sabia sobre JT, e me ocorreu que eu poderia usá-la como modelo, se não conseguisse achar mais ninguém. Ela tinha essa energia de estrela, e me deixou tirar umas fotos dela. Quando vi, eu disse: “Oh, meu Deus, parece com a foto de divulgação do JT!”

Por que fazia garotas serem o JT?

Bom, primeiro tentei um cara. Fiz até com que o JT dissesse para as pessoas que ele precisava de um dublê, como Andy Warhol. Mas finalmente eu percebi que o gênero não importava – era mais encontrar um visual específico. Savannah por acaso era mulher. Mas mesmo depois dela começar a aparecer como JT, eu sempre procurava alguém, porque eu sabia que não era fácil para Savannah se vestir como ele. Precisava de toda uma transformação física além da peruca loira, do chapéu preto e dos óculos escuros.

Você a deixava falar com os repórteres ou só posar para fotos?

Inicialmente, eu disse para ela não falar. Mas ela tem um ótimo ouvido, e depois de me ouvir falar como JT no telefone, conseguiu pegar o sotaque sulista, o ritmo lento e algumas frases básicas. Quanto mais entrevistas ela dava, mais falava. Mas levou muito tempo para se acostumar a ser JT, e no começo ela meio que ferrava com tudo. Uma vez ela disse que era de North Virginia—e as pessoas pensaram: Oh, JT gosta de zoar com as pessoas. Outra vez fomos num cinema e tinha um cara do som que tinha trabalhado com o pai dela. Ela me puxou pro banheiro e me contou. Eu pensei: bem, agora já deu. Felizmente, ele não a reconheceu. Isso sempre acontecia. Quando Savannah dava autógrafos, ela via gente que ela conhecia, e que não a reconhecia.

Como você conseguiu viajar com Savannah quando ela se passava por JT? Você tirou identidades falsas?

SIm, mas ela ia com o passaporte dela. Só o pessoal da polícia via, e tínhamos cuidado. Quando os livros foram publicados fora, fomos levados ao Japão, Brasil, e por toda Europa, e tínhamos um ritual. Quando pousávamos, arrancávamos os nomes de todas as malas.

Então vocês viviam com medo de serem descobertas?

Falávamos sobre isso, mas sabíamos que nossa intenção não era má, então não tínhamos vergonha. Nos perguntávamos: estamos fazendo as pessoas fazerem algo que não querem? Estamos sendo úteis? Estamos fazendo as pessoas se sentirem bem e estamos espalhando amor? [?!!!] Achamos que sim. As pessoas respondiam com muito amor e felicidade ao JT e sua literatura.

Ninguém notava a diferença entre a Savannah em pessoa e você no telefone?

Não, porque quando ela começou a interpretar o JT, eu copiei a voz dela. Na minha época de punk, eu falava com sotaque britânico porque era mais bacana. Eu saí com meu namorado skinhead por quatro meses antes de dizer a ele que eu não era inglesa. O que eu percebo é que depois de um tempo as pessoas começam a prestar atenção no que você diz, não na sua voz. Então você pode relaxar no sotaque e ninguém nota. Mas se eu sentia que estava falando com alguém desconfiado, eu mantinha meu máximo, e meu papel de Speedie ficou mais importante, eu tinha de falar como ela e como JT no telefone, às vezes na mesma ligação. Eu ia e voltava: Espere, deixe eu chamar o JT, então ele começava a falar.
Alguém acreditou quando você disse que você era o JT?

Sim, claro. No geral, muito mais gente – gente envolvida na publicação do livro, gente que ficou próxima de mim e de Savannah – sabia que eu era JT, e não quis admitir. É mais fácil alegar ignorância e me culpar do que admitir que sabia. Por outro lado, teve algumas pessoas que eu senti que tinha de contar, e que não tiveram problema com isso. Uma delas foi o Billy Corgan dos Smashing Pumpkins. Quando eu o conheci, há três anos, foi uma coisa e tanto, porque a música dele significava muito para mim. Ele leu meu trabalho e disse que me conhecer era importante para ele. Ele teve um relacionamento por telefone com o JT, mas quando eu o conheci em pessoa, disse que JT era eu—Laura. Ele entendeu e me apoiou.

Suas relações com celebridades eram diferentes das com outros escritores?

Sim, mas a maior parte dessas celebridades é que se aproximaram de mim. Ou mencionavam meu trabalho numa revista, daí eu escrevia agradecendo. Vi que Sheryl Crow falou sobre meu livro no site dela, e fiquei perplexa. Alguém me disse que Winona Ryder gostava do meu trabalho, e Drew Barrymore também, e entrei em contato com elas. Lou Reed leu os livros e gostou muito. Shirley Manson leu sobre JT na The Face, anos atrás, e a vimos tocando em LA, e fizemos todos uma festa de pijama. Shirley era tão receptiva com Speedie quanto era com JT, o que era raro. Ela escreveu uma música chamada “Cherry Lips”, baseada no personagem Cherry Vanilla, do livro Sarah. Músicos começaram a pedir para eu escrever histórias sobre eles, para fazer press releases. Fiz um para o Billy Corgan, Bryan Adams, Nancy Sinatra, Bright Eyes. JT era o cara se você queria ser cool ou atingir o pessoal jovem. Shirley Manson passou meu trabalho pro Bono, e numa entrevista na Rolling Stone, ele disse como The Heart Is Deceitful estava mexendo com ele. Nós o conhecemos e ele foi maravilhoso com todo mundo. A diretora Allison Anders leu Sarah e passou para Madonna, e me disse que Madonna estava lendo. Eu estava na Flórida, na piscina da casa da minha avó, e pensava: Meu Deus, Madonna está no meu mundo. Foi um sentimento incrível. Mas Madonna e eu nunca tívemos muito o que dizer uma pra outra, foi mais uma coisa de vaidade. Ela me mandou uma vez um monte de livros de kabbalah. Fiquei com um e vendi os outros. Precisava do dinheiro mais do que da kabbalah.

Como você se sentia quando via Savannah em público como JT?

Eu não via Savannah, eu via o JT. Era um grande alívio porque ele saía de mim e entrava nela. Eu sentia espanto, admiração, orgulho. As pessoas faziam fila o dia inteiro para vê-lo. Ele tinha tratamento de astro. Tínhamos seguraças porque haviam todas essas pessoas para tocá-lo. Eu tinha o que queria – me conectava com as pessoas – sem ser o foco das atenções.

Você se preocupou em como tudo isso podia afetar a Savannah?

Sim, muito. No outono de 2003 começou a produção do filme baseado em The Heart Is Deceitful, que a Asia Argento dirigiu. Havia um enorme uso de drogas no set, e muita gente queria se aproximar do JT, então ofereciam álcool e drogas pra Savannah. Eu ficava furiosa. Eles sabiam que JT tinha um passado de vício e davam drogas pra ele! E claro, eu tinha medo também de que ela pudesse dizer ou fazer algo que entregasse tudo. Não é segredo que ela e a Asia namoraram.
Então Asia sabia que JT era mulher?

Sim, claro.

E outros devem ter notado também. Como você explicava a aparência feminina do JT?

Savannah já estava realmente se tornando JT nessa época. Até seu corpo mudou. Ficou bem masculino, sua menstruação parou, seus seios diminuiram. Ao mesmo tempo, JT estava virando mulher – era a verdade dele. Ele começou a falar sobre mudança de sexo.

O que você previa para JT? Queria que ele continuasse crescendo como autor?

Sempre senti que JT era uma mutação, um pulmão compartilhado, e para eu me tornar normal, eu teria de respirar sozinha. No começo, senti que ele teria de morrer de AIDS, mas isso não está em nenhum livro. Eu não neguei os boatos, mas não dei nenhuma declaração dizendo que ele estava com AIDS para aumentar sua popularidade. Me lembro um dia, há dez anos, quando achei que ele ia morrer naquele final de semana. Fiquei mal. Estava fisicamente doente. Mas JT não queria morrer, e não pude deixá-lo morrer. Senti que se ele morresse, eu morreria.
Você sentiu – ou sente – alguma vergonha por enganar quem acreditava no JT?

Eu sangro, mas é um tipo diferente de vergonha. Fico triste por isso. Muitas pessoas se inspiraram por alguém tão novo ter escrito o que eu escrevia. JT tem quinze anos a menos do que eu. Tudo o que posso dizer é que sinto muito se as pessoas ficaram decepcionadas ou ofendidas. Se saber que tenho quinze anos a mais do que o Jeremy desvaloriza meu trabalho, então sinto muito.

Agora você escreve para seriados da HBO, como Deadwood , como Laura Albert. Como é não escrever como JT?
É impressionante, pela primeira vez na vida estou solta no mundo como Laura Albert, a escritora de sucesso. E estou indo escrever ficção com meu próprio nome. Dizem para você rezar para seus inimigos. No final, o que eles me deram foi um presente, e devo ser grata.
*****
Os dois livros de JT LeRoy - "Sarah" e "Maldito Coração" foram publicados no Brasil pela Geração Editorial. O primeiro foi traduzido por Flávio Moura, o segundo por mim.
O filme "Maldito Coração", dirigido por Asia Argento, pode ser encontrado facilmente nas locadoras aqui no Brasil. Mas é uma merda. O livro é bem melhor, mais pesado e mais divertido.
Ainda, é interessante imaginar quem seria o "autor gay" com quem JT teve contato por telefone e quis trepar com ele. Pelo email da Laura para mim, pedindo para excluir o nome do Dennis Cooper, dá para ter uma idéia...
Agora a entrevista com o Cooper (eu disse que seria longo, não reclame. Fiquei horas traduzindo. Também não repare nos eventuais erros, fiz isso nesta madrugada e você não está me pagando nada. Fora que meu auto-corretor estava passando tudo de volta para o inglês, e este blogger ferrou com a formatação do texto. Mas beleza.) O mais engraçado são as histórias sobre o Burroughs...
SLAVA MOGUTIN ENTREVISTA DENNIS COOPER

(Tradução de Santiago Nazarian)
“Los Angeles é Impressionante," ele me diz enquanto andamos em seu velho Toyota vermelho. "Aqui há tantos lugares onde você pode desovar um corpo e se safar.” Parece bem convincente. Quase como ouvir a voz de um de seus personagens em “Frisk” ou “Try”. Mais tarde, quando almoçamos no French Market em West Hollywood, ele pede um veggie-burguer. “Sempre fui vegetariano, desde os 18 anos.”

Às vezes é melhor não conhecer essas pessoas cujo trabalho você admira. Sempre há a chance de decepção. Mesmo assim, eu sabia que tinha de conhecer Dennis, depois de trabalhar em traduções do seu trabalho para o russo por alguns anos, e de trocar emails por alguns meses. "E suas roupas?” - Eu não podia evitar de olhar para seus jeans gastos e camiseta manchada com buracos. “Oh, isso é do meu passado de punk”, ele explica. “Acho que não sou um boêmio, não dou a mínima para o meu visual.” Uma declaração atípica de um escritor gay atípico, cujo trabalho influenciou toda uma geração de jovens escritores e alcançou um conhecimento bem além do mundinho gay.
SLAVA MOGUTIN: Ouvi dizer que o Presidente Nixon freqüentava a casa dos seus pais quando você era criança.

DENNIS COOPER: Sim, ele era o melhor amigo do meu pai. Meu irmão tem o mesmo nome dele. Meu pai gostava de política, era muito conservador e queria ser presidente. Todo esse povo Watergate era amigo do meu pai. Nixon entrou nessa porque eles também eram uns babacas fascistas. Então houve a grande queda. Nos anos 60, meu pai começou a fumar maconha, daí ficou mais liberal. Antes disso, queria ser presidente. Mas percebeu que não ia dar certo, então desistiu dessas ambições políticas.

SM: Como isso te afetou?
DC: Eu era muito novo. Então não me afetou tanto.

SM: O que você achava do Nixon?
DC: Nada, naquela época. Hoje em dia acho interessante. Mas eu só tinha uns oito anos, e era um povo que aparecia na minha casa e eu dizia “oi”. Mais tarde eu pensava “Oh, Deus! Vocês eram amigos deles!!"SM: Você veio de uma família rica?DC: Meus pais não eram ricos na juventude. Meu pai ficou rico. Era um garoto pobre do Texas, mas começou seu próprio negócio e ganhou aquela grana toda. Meus pais eram bem conservadores, especialmente minha mãe. Meu pai é mais liberal agora, mas não sei, não falo muito com eles. Eles se divorciaram quando eu tinha 13 anos.
SM: Então eles sabem bastante do seu trabalho?

DC: Ninguém na minha família lê meu trabalho, eles não querem saber, o que por mim tudo bem.. Sabe, cresci no final da era hippie, então para mim era como um mundo diferente lá fora, era legal. O conservadorismo dos meus pais me deu algo para se rebelar, de forma geral. Mas não foi o principal. Minha mãe era realmente uma alcoólatra psicótica. Foi o que me afetou. Ela era completamente horrível…

SM: Quando você percebeu que queria escrever?

DC: Quando eu tinha 15 anos eu comecei a escrever como uma forma de arte. Foi quando eu li pela primeira vez Rimbaud e Sade. E pensei “Oh, Deus! Pode-se escrever sobre isso!” Minhas fantasias foram justificadas pelo Sade. Não dá para ser mais extremo do que ele. Mas tudo o que eu escrevia como adolescente era lixo.

SM: Era poesia, ficção ou diários?

DC: Era de tudo. Eu tentei imitar 120 Dias de Sodoma, e escrevi esse romance extremo de 800 páginas. Era sobre uma festa na escola onde meus amigos e eu fizemos todos esses carinhas bonitinhos virem, então os prendemos e torturamos e matamos. Era uma coisa bem longa, totalmente horrível e ridícula.

SM: Basicamente, você tentou ser o mais bizarro possível.
DC: Isso, mau e cool. Então um dia percebi que minha mãe lia minhas coisas. É uma história longa. Ela me fez ir ao psiquiatra. Eu tinha medo, muito medo que ela descobrisse. Eu escondia no meu quarto. Então queimei. E anos e anos depois, estava escrevendo um livro e encontrei uma página que se safou de algum modo.

SM: Por que você ficou obcecado com violência e essas bizarrices?

DC: Não sei. Quando eu era bem novo, talvez uns doze, vi uma matéria num jornal sobre três garotos, de 11, 12 e 13 anos, ou algo assim, que foram encontrados pelados e mortos nas montanhas bem atrás onde eu morava. Me lembro de ter ficado tão excitado com isso, foi estranho. Achei que era a história mais fascinante que eu já tinha visto. Me lembro que todos meus amigos para quem eu contava isso achavam totalmente esquisito. Então percebi que havia algo de estranho em mim. Daí fiz um amigo ir comigo para o lugar onde eles foram mortos. A gente costumava caminhar por lá. Acampamos por três dias tentando achar o local exato. Bizarro!

SM: Sabe, nos EUA se lê sobre serial killers no jornal. Na Rússia, é um tabú para a mídia. Há apenas boatos…

DC: Mas vocês tiveram aquele cara, como é o nome?

SM: Andrei Chikatilo? Sim, foi o mais famoso serial killer russo, famoso por morder fora os mamilos e línguas das vítimas. Seu apelido era “Zver’ (“Fera”). E ele agia na mesma região onde eu morava com meus pais. Então cresci ouvindo essas histórias bizarras sobre maníacos. Não sabíamos muito, só ouvíamos de vez em quando que garotos desapareciam. E eu sempre tentei imaginar o que aconteceria se eu me encontrasse com a Fera, e o que ele faria comigo.

DC: Era igual comigo, mas eu sempre me imaginava como o assassino. Mesmo quando eu tinha 12, mas também porque há tantos assassinos em LA. Tem algo na atmosfera daqui...

SM: Em uma das suas entrevistas, você disse que serial killers não são gente muito interessante...
DC: Pela minha pesquisa não. E li tanto sobre isso. Acho que a fantasia torna o assassinato muito mais complexo do que é. O único que parecia ter uma estética envolvida era o Dennis Nilsen. Ele era bem esperto. Mas Gacy, Dahmer e todos esses caras matavam basicamente pela solidão…

SM: Mas você não acha que são necessárias algumas qualidades extraordinárias para cometer alguns assassinatos e não ser pego logo no primeiro? Isso não torna esses caras interessantes? E alguns deles tinham claramente uma imaginação louca e talento artístico: Nilsen escrevia poemas de amor para suas vítimas mortas., Dahmer tirava polaroides de seus corpos....
DC: Acho que o que eu quis dizer é que eles não sabiam se comunicar com o mundo, não podiam articular, não podiam explicar nada. As evidências podiam ser bem interessantes, mas só dá pra imaginar. Nilsen era o único intelectual. Nos outros casos, há diferentes graus: Dahmer obviamente é mais interessante do que Gacy. Gacy não parecia nem um pouco esperto…

SM: Obviamente, você foi mais inspirado pela literatura Européia. E quanto a autores americanos?

DC: Quase nada de autores americanos. Burroughs era OK. Mas não sou tão ligado em Burroughs. Mais nos franceses.

SM: Então você fala francês?
DC: Não, leio traduções.
SM: Sei que você morou na Europa um tempo. Quando foi pra lá?

DC: Em 1985 fui para Amsterdã. Fui convidado para um festival de poesia lá, conheci um holandês, daí ele veio me visitar. Ele tinha de estudar e eu estava falido e muito drogado. Então decidi morar lá.

SM: Como foi?
DC: Não nos demos nada bem. Nunca terminamos, mas estávamos acabados quando eu morava lá. Como eu não conhecia ninguém, ele era meu melhor amigo, mas ele tinha problemas em ser gay, o que eu não sabia até ir morar lá. Agora ele não é mais gay.

SM: Como se sustentava lá?
DC: Trabalhava ilegalmente. Trabalhei para algumas revistas de arte americanas, para The Advocate.
SM: Ainda faz muito jornalismo? Vejo artigos seus por todo canto.

DC: Bom… é minha única renda. Não tenho um emprego. Livro só dá uma certa grana, e leva alguns anos pra escrever um livro. Então preciso escrever artigos para pagar as contas.

SM: Sempre leio suas resenhas e entrevistas, mas às vezes não parece ser exatamente você, como uma pessoa totalmente diferente.

DC: Bom, sim, claro. Algumas coisas que escrevo é lixo, não me importo. Muitas vezes é só um trabalho, mas às vezes eu gosto, varia. O que eu escrevia para a Spin eu não gostava. Mas o dinheiro era bom e eu entrevistava Courtney Love e gente assim. Então tudo bem.
SM: Era legal sair com todas essas celebridades como Leonardo ou Keanu?
DC: Foi a última entrevista do Leonardo antes de Titanic, então foi a última vez que ele deixou isso acontecer. Eu o conhecia um pouco antes disso. Acredite ou não, ele ia participar do filme baseado em “Frisk”, porque ele gostou do livro. Mas depois decidiu não fazer, foi sábio da parte dele. Então só conversei com ele algumas horas. Mas Courtney Love quis que eu passasse um final de semana com ela. Naquela época, ela parecia bem bacana, agora ela é uma babaca burguesa. Não agüento mais ela. Keanu foi bem queridinho. Eu o achei muito legal e aberto, um cara honesto, fácil de gostar. Sonic Youth foi ótimo também. A maioria das pessoas que eu entrevistei foi bem legal. Não quero foder com elas, e não é que eu tenha nada contra. Obviamente eles controlam a situação. Há coisas que não dizem. Como fofocas e coisas assim. Teve gente que não me deixou entrevistar, tipo Marilyn Manson e Trent Reznor. Acho que sou pesado demais para eles, e eles sabiam que eu ia desmascará-los...
SM: Parte do seu jornalismo é meio moralista…

DC: Moralista? Sou bem moralista, de uma forma estranha. De uma forma BEM estranha. Depende do que estou tentando defender. Não gosto de autoridade. Odeio gays que tratam garotos como objetos. A beleza cega as pessoas. Conheço tantos garotos atraentes mas infelizes, porque as pessoas não os levam a sério. É um problema porque tenho muitos amigos que se magoam com isso. Não acho que é moralismo, é contra a estupidez, contra o egoísmo. E quanto as drogas, não gosto mesmo de heroína, porque fui tão próximo a gente ligada a isso, e é algo realmente perverso. Mas eu nunca faria uma lei contra, eu diria para legalizar...
SM: Há muitas drogas nos seus livros. Ainda é parte importante da sua vida?

DC: Quando eu era mais novo, tomava muitas drogas. Entrei numas coisas bem pesadas, bem perigosas. Mas faz muito tempo. Agora é só na mente. Minha vida é bem normal no momento. Só quero trabalhar, sabe. Eu era tão louco. Sinto como se eu já tivesse feito de tudo. Se surgir algo realmente interessante, eu experimento, do contrário, me sinto bem tendo uma vida normal. Também, na minha idade, se tomo drogas tenho uma ressaca! Faça agora, antes de ficar velho.

SM: Ótimo conselho!
DC: Sim, não tenho nada contra as drogas. Adoro drogas, só não sou fã de heroina.
SM: Na morte do Burroughs, você foi amargo, o acusou de usar ghostwriter e coisas assim…

DC: Mas é verdade. Eu conheci o Burroughs. Meu agente era agente dele, meu ex-namorado, Mark, trepava com o Burroughs o tempo todo. Trepava semana sim, semana não.

SM: Aí está! Sabia que tinha algo de pessoal!
DC: Eu nao me importava. Eu achava legal que ele quisesse trepar com o Burroughs, que tinha 75 anos. Agora esse cara está escrevendo as memórias dele, o que é meio assustador...
SM: Quem mais está na lista do Mark?
DC: Allen Ginsberg, Gus Van Sant, todo mundo... Então sei muito sobre o Burroughs. Não quer dizer que a obra dele é ruim, só quer dizer que ele não escreveu tudo sozinho. Tudo desde “Cities of the Red Light” pra frente teve muita ajuda, cada vez mais.

SM: Quem "ajudava" ele?
DC: James Grauerholz, o assistente dele. Não é um grande segredo entre as pessoas que conhecem o Burroughs. A turma dele me odeia. Burroughs era um velhinho bem bacana, mas o povo ao redor dele o tornou um freak. Me decepcionou mesmo pelo trabalho dele significar algo, ser realmente transgressor, e de repente perdeu o sentido para mim porque todas bandas do mundo o usava em seus clipes. O trabalho não significa mais nada. Ele se tornou como um garoto propaganda dos marginais. Acho deprimente. Eu nunca faria isso. Mas não foi culpa dele. Ele era velho demais, não estava mais controlando sua vida. O pessoal ao redor é que o controlava.

SM: E quanto a apresentação que Burroughs fez em um de seus primeiros livros?
DC: É, a apresentação… É uma longa história. Se você realmente ler, não é exatamente positiva. “Deus o ajude, ele é um escritor nato”, não quer dizer que sou um bom escritor. Meu agente pediu que ele fizesse, porque ele o conhecia bem. Parece uma ótima apresentação, mas se você pensar bem, não significa nada.

SM: Você gostaria de viver tanto?
DC: Eu fumo três maços por dia, então acho que não vai dar. Pode ser interessante. Não sei. Vamos ver. Ainda me sinto como um jovem fodido de 20 anos, mas não sou. Envelhecer é uma porra estranha...

SM: Como você se sente em ser cada vez mais conhecido e popular?

DC: Acho que meu trabalho vai permanecer por muito tempo, mas acho que nunca vou ser grande. Sempre será uma coisa cult. Não vou ganhar prêmios ou ser convidado para programas de entrevistas como o Norman Mailer ou escrever no The New Yorker. Vai ficar assim. E pra mim tudo bem, porque todos os artistas que eu gosto são assim. Muitos garotos lêem meus livros, mas não se pode fazer filmes com eles. Fizeram uma vez e foi algo horrível. Então não sei o que é o sucesso.

13/03/2008

TEM UM GORDO NA MINHA SOPA



Ah! Não bastasse estes meus pés de pedra, tênis encharcados me impedindo de andar sobre as águas, eu ainda tenho de encontrar um Datena boiando nas enchentes de São Paulo!

A culpa é sua, que fica emporcalhando a rua com suas bitucas. Depois sou eu que afundo e sou engolido pela baleia.

Pode acreditar, já morei no esgoto, sei do que estou falando. A culpa é sua.

E do que estou falando? Desses datenas que jogam sempre a culpa no outro pela cidade estar inundada, pela baleia estar encalhada, pelo menininho ter morrido eletrocutado empinando pipa.

“As autoridades precisam tomar providências. As crianças morrem eletrocutadas porque não têm onde brincar...”

É verdade. Outro dia entrei no Ibirapuera e até lá vi um aviso de proibição de soltar pipa. Até no Ibirapuera? “Danifica as árvores”. É por isso que a pipa do vovô não sobe mais!

Tudo culpa do Shakespeare. Estou legendando outra montagem teatral: “Cymbeline”, conhece? Eu não conhecia. Mas é bem bacana. Já me mandaram o texto prontinho, formatadinho, só preciso bater as legendas com as falas.... E nem sempre é tarefa das mais fáceis. Espero que os atores não improvisem muito... Ano passado eu fiz um Hamlet que colocou Shakespeare pra dançar o chachachá...

Fora isso, tenho jogado SimCity. Isso, aquele jogo antigo de PC e Snes, onde você monta e administra uma cidade. Baixei um emulador aqui no meu PC e ontem, duas da manhã, depois de trabalhar no Shakespeare, resolvi montar uma vilazinha... Fiquei até as sete da manhã, construindo e destruindo minha cidade. Nela pode-se empinar pipa. Nela não se joga lixo na rua. Nela, a chuva nunca ameaça a chapinha dos emos, mas ainda assim, nela há enchentes, e vez ou outra, um gorducho passa detonando tudo – que eu ainda não sei se é o Datena, se é o Godzilla.

(Ok, ok, sei que você vai dizer que videogame é um divertimento vazio, mas ao menos ele me mantém longe das drogas.)



Onde está o Wally?

Aproveitando o tom "Cidade Alerta", repasso email que minha mãe me mandou estes dias:


Alerta aos compradores da Dell

Comprei um computador Dell em 14 de fevereiro de 2007. Uma semana após vencer a sua garantia padrão (de um ano), ele começou a se desligar e se reiniciar sozinho, freneticamente. Encaminhei-o a um técnico da minha confiança, que tendo verificado que o problema era na máquina, me sugeriu que procurasse a Dell, já que a garantia terminara há tão poucos dias.

Contatei a Dell em 25 de fevereiro, onde me disseram que nada poderia ser feito, a não ser que eu optasse por prorrogar a minha garantia em quatro anos, mediante o pagamento de R$ 420,00 anuais. Concluí que isso significaria que, ao término dos quatro anos, eu teria pago em "garantia" um valor igual ao preço do meu computador.

Indignada, autorizei o meu técnico a fazer o conserto, o que se revelou praticamente impossível. Os gabinetes da Dell só comportam um tipo de placa específico, não disponível no mercado.

Entrei novamente em contato com a Dell, expus o problema e eles me forneceram o telefone (apenas o telefone) da ITQ, empresa encarregada da venda de peças para seus computadores.

A ITQ me pediu, só pela placa, R$ 1140,00 com o prazo de entrega de trinta a quarenta dias.

Precisando do computador para trabalhar, e percebendo que eu entrara numa arapuca, liguei mais uma vez para a Dell e pedi para falar com algum supervisor. O sr. Cristiano Alvez veio ao aparelho e, com gentileza, tornou a me acenar com a possibilidade da "garantia" de quatro anos. Caso eu não aceitasse, eu teria as opções ou de comprar as peças na ITQ ou de sair à sua procura no mercado, o que já se revelara impossível.

Perante a minha impotência, restou-me a opção mais absurda: remontar o computador num gabinete compatível com as placas que se encontram no mercado, e que além de custarem bem menos do que R$ 1140,00 existem para pronta-entrega.

Restou-me também a opção de alertar os possíveis compradores da Dell: ao comprar o seu computador, saiba que terá que arcar com uma quantia igual à que pagará por ele, dividida em quatro anos, como "garantia" para o seu produto. A Dell não possui assistência técnica. Caso o comprador se recuse, como eu, a pagar por essa "garantia", em qualquer problema que exija a reposição de peças, terá que arcar com preços abusivos e prazos indecentes, para ter o seu computador em ordem.

Se eu soubesse disso antes, com certeza não teria comprado um computador Dell.

Elisa Nazarian
Caixa Postal 93
18130-970
São Roque - SP

Obs: Antes que me perguntem, o terceiro livro de Elisa Nazarian deve ser lançado ano que vem. E será um livro de contos (Não, seu bangolé, o texto acima não vai entrar no livro). Os dois volumes de poemas publicados por ela você pode encontrar nas boas casas do ramo.

Tchau que tenho uma cidade para destruir.

06/03/2008

SHOW DE HORRORES

Trechos de "O Prédio, o Tédio e o Menino Cego", meu novo romance:



O Homem-caranguejo agitava suas garras na praia, mas o meninos estavam longe dela, acima. Era noite, noite quente, e eles andavam pela cidade que parecia cheia de subidas – cheia de descidas – cidade querendo escorrer inteira para o mar, como se o mar fosse o esgoto que cheirava ser, como se a cidade inteira fosse lixo que pudesse ser despejado lá, biodegradável. Cidade biodegradável. Esgoto a céu aberto. Um dia tomariam providências, e todo o mar seria encanado. Esgoto a céu fechado.

****

Douglas engoliu as pílulas de uma vez. Sentiu-se melhor na mesma hora. De repente não eram as pílulas. De repente eram as pílulas. De repente eram as pílulas que empurravam a cocaína para baixo e reforçavam a dose em seu organismo. Fez com que Douglas se calasse naquele exato instante. E naquele exato instante que se calou sentiu ânsias. As pílulas querendo voltar. As pílulas querendo sair. Então passou. Sentiu-me melhor. Sentiu-se ótimo. Sentiu-se incrível. Será que as pílulas já haviam surtido efeito? E se ainda fossem surtir? E se já tivessem surtido? E se já tivessem deixado de surtir?

****

O monstro das neves... Um monstro polar. Um monstro pálido e escandinavo que, apesar de escandinavo, poderia ser chamado de monstro pelos pêlos que o incomodavam, pela barriga que lhe protuberava, pelo alcoolismo que o embriagava, tudo detestável, ainda que nórdico. Ele rugia. Rugia com a mulher. Rugia com o filho. Rugiria a tal ponto que os atacaria – ou seria o próprio rugido interpretado como ataque? Então delegacia da mulher. Vara da infância e adolescência. Mãe fugindo com o filho, se escondendo numa cidade litorânea, num prédio inclinado.

***

Dentro da classe, da sala de aula, sentia-se como um mensageiro entregando seus próprios ossos. Um assassino, carregando seu corpo numa mochila. Os professores chamavam sua atenção, batiam na sua carcaça, e algo lá dentro dele despertava. Vítima ou culpado? Ele respondia tentando parecer natural, tentando parecer natural, tentando parecer ele mesmo, para que ninguém percebesse o crime que ocorrera dentro da casca. “Ninguém pode perceber que apodreço...” E todos os dias, em cada ocasião dessas, sempre nesse processo ele ansiava dolorosamente voltar para casa, voltar para cama, esquecer toda aquela besteira que chamam de educação.

***

Lá fora, a vida avançava em piruetas, cambalhotas e fogos-de-artifício. O quê? Pensa que tudo neste romance é tédio e melancolia? As crianças sempre encontram uma forma de se divertir – jogue-as sobre cacos de vidro e elas brincarão com diamantes.


***

“Esta não é uma mulher comum. Por trás de seu rosto angelical, de seu olhar enigmático encontra-se uma fera ancestral. Uma besta que varre a Terra há milênios, muitas vezes perseguindo o homem, muitas vezes por ele perseguida, mas por mais que seja caçada e destruída, a besta encontra sempre um refúgio. Pode ser uma caverna solitária nas montanhas, pode ser uma planície vasta e esquecida... Ou pode ser o interior mais soturno da alma de uma mulher.”

***

O menino andrógino seria colocado em outro cômodo, em outra posição, e a nova inquilina sacudiria a cabeça. “Esse menino não combina com nada. Veja só, não casa com as cortinas, fica ruim no sofá. Melhor a gente se desfazer desses restos de antigos moradores.” Então o marido viria até o quarto, cuspindo caroço de ameixa nas mãos, engoliria a polpa da fruta e diria: “Não. Gosto dele. Vamos ficar com ele.”

***

Enquanto o velho sussurrava, o menino pode ver de relance as veias inchadas do nariz dele. Pode ver os milhares de pêlos brancos que escapavam das narinas, tentando envolvê-lo, sugá-lo. Iriam aspirá-lo para dentro e ele também seria um animal preso em petróleo, sufocando, apodrecendo, aumentando o caldo grosso e negro que fazia a riqueza daquele ancião. Não! Não!

***

"Oh, essas formigas são muito interessantes. Sabe que podem devorar um garoto vivo em minutos? Há casos... Houve um caso aqui na cidade, inclusive. Elas são vorazes por açúcar e atacaram um menino que...hum, estava em atividades libidinosas. Sim, sim, parece que é verdade. Ele fazia piquenique com a namorada, a coisa foi esquentando, esquentando, e quando o menino ejaculou, zapt!"

***

A juventude é uma doença... Oh, meu colega, a juventude é uma doença.” – continuava o velho. “Acha que é o contrário? Não, é o câncer. A juventude é o câncer que nos mantém respirando. Como um tumor no cérebro, quando ela é extraída, tudo mais desaba. Como uma muleta, quando a retiramos, desabamos. A juventude é uma doença incurável, rápida, terminal. Eu poderia ser velho para sempre, mas são os vícios da juventude que me matam. É o câncer, o câncer que me faz sorrir...”

***

Naquele momento, passavam por um dos pontos da cidade que era tomado por zumbis. Vinham babando, esfregando-se no carro, batendo no vidro, sedentos por carne humana, sem muita energia para pegá-la com as próprias mãos. Acabavam sendo mais inconvenientes do que perigosos, como pedintes no semáforo.

***
O policial respirou fundo. O cheiro do morto voltou às suas narinas. “Sabe que tem um cadáver num dos quartos, né? Aquele outro... está morto.”
O menino tentou retrucar: “Elelele...” - enrolou a língua. Então bufou, tossiu e recomeçou a frase. “Ele está sempre assim...”
“Está sempre morto?”, perguntou o policial, contendo a irritação.
O menino suspirou, como se não quisesse passar novamente pelo esforço de formular uma frase. “Ele sempre exagera...”



Lançamento em breve...

01/03/2008

TRUE COLORS


Porto Alegre pelas minhas lentes...


Ahhhhhhhhh, alguém me tire daqui! Voltei há um dia para São Paulo e não agüento mais. Na verdade, já não agüentava mais antes de voltar. Dia desses eu estava em Porto Alegre, uma tarde de sol, e comecei a estranhar a luz, as cores, a claridade. Porto Alegre tem uma luz impressionante, um céu de um azul sem igual, que se percebe facilmente nos dias de calor, mas que fica ainda mais especial nos dias de frio. São Paulo não tem disso. São Paulo não tem luz. Verdade, é difícil perceber. Quando aqui faz sol e o céu está limpo a gente acha que tudo está bem, está claro, e azul, e tropical, mas sempre há um leve filtro cinza, sempre um monóxido de carbono, um véu de poeira nos olhos.




E Porto Alegre ainda tem as árvores, pela cidade toda, os parques, parques que fazem sentido, parques que são freqüentados, parques onde você pode comer churros e encontrar os amigos e perder o amor da sua vida, atrás de uma árvore, num enxame de abelhas selvagens. As pessoas freqüentam os parques, e são vistas de dia, caminham pelas ruas. Aqui em São Paulo o dia não existe. Estão todos trancados dentro de casa, das firmas, dos shoppings, cinemas... Aqui não há qualidade de vida.





Sei que estou achando meu cotidiano todo cinza, e chato, difícil, a vida está muito cara, muito demorada e pouco recompensatória. Para cada página ser virada você basicamente tem de esperar o avanço em metros de placas tectônicas, e raramente elas provocam terremotos. É uma fila injusta, pois os mortos são sempre os primeiros, e os urgentes, ansiosos e desesperados morrem esperando, todos os dias. - Isso é de "Mastigando Humanos". Você vê como minha literatura faz sentido, pelo menos para mim. A literatura ainda faz sentido, embora ninguém sinta o mesmo, embora pareça que os escritores avancem milimetros nas placas tectônicas.



Mas um dia ainda destruiremos Tóquio.


(Gojira!)



Voltei de Porto Alegre como voltei de Florianópolis, com vontade de continuar por lá. Acho que quero continuar em qualquer lugar que tenha um pouco mais de horizonte, um pouco mais de calma. Por que diabos sou obrigado a escutar pagode tocando nos vizinhos se não aproveito de fato o tropicalismo deste país?



Para suavizar um pouco, coloco as fotos dos amiguinhos que reencontrei na viagem. Bom saber que meus laços continuam fortes por lá, que algumas amigas que fiz quando morava no sul permanecem para sempre, sempre próximas, mesmo distantes.


Duda, eu, Leticia e Taina (a irmã do Thomas...).




Será que a Renata seria uma serenata? O que será que a Renata seria, se não fosse Renata Leiria? Acho que a Renata seria uma serena nata. Não fosse sua séria ira. E sua risada sarcástica.



O trabalho em si foi tranqüilo. Festival com bons filmes, mas poucos eu legendei. Sempre é interessante legendar vários dias seguidos o mesmo filme, porque alguns que são chatíssimos na primeira sessão, passam a revelar signos escondidos, você tem oportunidade de estudar com cuidado a obra, ver e rever, de uma forma que você não faria normalmente, como espectador comum.

Agora, tem alguns filmes que são chatos na primeira sessão e se tornam cada vez piores...



Também consegui trabalhar bastante no livro novo. Alguns capítulos foram inteiramente refeitos. É um livro com sete protagonistas, então eu sempre acho que preciso contar melhor a história de algum deles, que posso me aprofundar mais em alguns dos meninos (ops!). Fora que ando com idéias terroristas de cortar personagens, reestruturar toda a idéia central do livro.

Tudo isso para que você... e mais uns 3, quem sabe 6 mil nerds que ainda lêem livros, possam se divertir por uma semana e depois me escrever: "Adorei. Mas prefiro Feriado de Mim Mesmo."

NESTE SÁBADO!