Convite da exposição de fotografias de meu bisavô, Gaspar Gasparian, que eu não cheguei a conhecer... só por fotos. Para quem não conseguiu ampliar o convite:
De 18 de setembro a 14 de novembro, Pinacoteca do Estado (SP).
Falando nisso, dia desses uma dessas revistas customizadas me encomendou uma crônica... uma crônica sobre meu avô; "saudades do meu avô", era o tema. Eu não tenho exatamente saudades do meu, mas como escritor faz de tudo, remexi o que lembrava...
Não foi exatamente o que a revista queria. Disseram que ia um pouco contra o "espírito de bem com a vida" deles, não iam publicar, mas agradeceram e prometeram me pagar. Muito bem. Afinal, por que uma revista "de bem com a vida" me procurou em primeiro lugar? É como ir numa churrascaria quando se quer comer sushi. Pode até se encontrar no buffet, mas não é o mais recomendado...
Eles ainda tiveram sorte que não pediram um conto sobre minha avó, daí sim a coisa seria surreal e sinistra...
Well, well, como o texto ia pro lixo mesmo... coloco aqui. Pode ser melancólico, sim, mas verdadeiro, e longe de ser agressivo...
Saudades do Avô.
Meu avô não empinava pipa. Não contava histórias, não bebia nem fumava. Não jogava cartas e não fugiu da guerra. Na verdade, ninguém sabia exatamente a sua história de vida, e seria um esforço recolher suas migalhas até para formar fatos concretos de uma crônica de revista.
Vivia retorcido, a voz rouca, vítima de um derrame que o fazia andar com dificuldade, com ajuda de um enfermeiro. Quando chegávamos em sua casa, nos finais de semana, o cumprimentávamos; e se ele fazia alguma pergunta trivial como “tubo bem com você?” eu rezava para que ele não perguntasse mais nada, porque era difícil de entender com seu tom sussurrado, seu forte sotaque armênio.
Era um industrial, pai de cinco filhos. Contavam que fora rígido e dominador, mas quando nasci já se encontrava subtraído. Morreu quando eu tinha doze anos, sem surpresas nem vestígios. Sempre o vi à beira daquilo. Não fui ao enterro. Não mudou as nossas vidas.
Meu avô nunca brincou comigo, nunca me levou ao circo. Na verdade, nunca o vi fora de sua casa e, pensando agora, a própria ideia de avô me parece abstrata. Meu avô não tinha dívidas, não sofria com a aposentadoria. Tinha mais dinheiro do que podia usufruir. Sua casa hoje é uma concessionária de carros de luxo no Jardim Europa.
Guardava uma lata de amêndoas confeitadas em seu escritório, vinda diretamente da Armênia. Enquanto ele dormia, eu entrava furtivamente no escritório, abria a lata, enchia os bolsos, e não precisava me preocupar em ser surpreendido pois sabia que seu avanço era lento, trabalhoso, percorria do quarto ao escritório em vários minutos.
Na volta às aulas, meus amigos contavam de viagens, pescarias com seus avôs. Avôs que nadavam e corriam. Avôs que empinavam pipa. Éramos crianças, e nossos avôs não deviam ser tão velhos assim. O meu era. E eu não tinha nada para contar. Mas não me importava, porque ele me mandara para Disney e me deu o Castelo de Grayskull.
Quando encontrava o avô de outro - de um primo, de um amigo – me intimidava. Não sabia como me comportar com aquele velho safado que contava piadas, que dava beliscões, eu era uma criança tímida. Torcia para que o mundo todo fosse lento, rouco e retorcido.
Se dizem que avô é pai com açúcar, o meu vinha com adoçante, em gotas, com parcimônia. Uma ausência e uma fraqueza que me ajudaram a construir as histórias melancólicas da precariedade da vida. Me ajudou a construir histórias, mas, pensando bem, não acho que teria sentido orgulho em ter um neto escritor.
Hoje fica a nostalgia do que não tive. A ideia abstrata do avô. E também o Castelo de Grayskull, empoeirado em algum lugar da casa da minha mãe. A lata de amêndoas há muito se foi, esvaziada domingo a domingo – desconfio que eu a comi sozinho. E talvez essa seja a lembrança mais forte, a sensação mais pungente. O gosto das amêndoas confeitadas, vindas de uma terra que não existe.