14/12/2012

VIVER PARA CONTAR. 


Sou um ser invejoso, rancoroso e frustrado. E de longe o que mais me frustra é o menosprezo da minha obra diante de hipervalorização de autores que não escrevem, que não entregam, que apenas se encaixam melhor na imagem que se faz de um escritor sério, e nas panelinhas.

Por isso é tão recompensador ler algo como Barba Ensopada de Sangue, novo romance de Daniel Galera.

Não foi preciso avançar muito nas páginas para se ter (novamente) a constatação: aí sim; esse é um escritor que merece estar lá, faz por merecer, merece o que conquistou. Barba Ensopada de Sangue é uma obra fenomenal.

Após a morte do pai, um instrutor de natação se muda para Garopaba, buscando conhecer mais sobre a história do avô, desaparecido desde o final dos anos 1960. Lá vive uma típica rotina praieira, romances fugazes, brigas e bebedeiras, enquanto se aprofunda no mistério de sua família. Galera narra tudo de forma objetiva, com riqueza de detalhes nas descrições, materializando o cenário com grande competência. É o romance perfeito de "jovem vai morar na praia", coisa que ele e eu fizemos há pouco - e que agora me gerou dificuldades.

Assim como a temporada do Galera em Garopaba gerou Barba Ensopada de Sangue, minha temporada na Barra da Lagoa está gerando meu próximo romance... E confesso que agora me sinto meio empacado. O que falta dizer? O que eu tenho a acrescentar? Outro romance litorâneo catarinense... ? É óbvio que a trama, e principalmente o estilo narrativo de nós dois são completamente diferentes. Mas temo que as comparações sejam inevitáveis, mesmo que (ou principalmente porque) meu romance não seja lançado antes de 2014.

Será um desafio e tanto para eu ressaltar minha diferença...

Voltando às barbas do Galera, é inevitável imaginar o que ele de fato viveu naquela cidade, quanto de sua experiência real está lá, até porque é tudo muito tangível. Com certeza a vivência descrita foi radicalmente diferente da minha, e me fez pensar novamente em como a (homo)sexualidade influencia todo nosso modo de vida, paqueras, amizades, a forma como você se encaixa (ou não) numa cidadezinha.

O que eu mais me identifiquei com o personagem, na real, foi no seu distúrbio neurológico. Ele sofre de  prosopagnosia, uma incapacidade de lembrar e reconhecer rostos. Eu não chego a tanto, mas tenho uma memória muito, muito, muito limitada para rostos, nomes, pessoas. Domingo passado, por exemplo, fui a um almoço na casa de um amigo e tive de cumprimentar todos sem me apresentar ou sem dizer "prazer", porque eu não tinha ideia de quem naquela casa eu já havia encontrado. Um dos casos  mais graves foi uma vez que uma menina me parou na rua, e começou a comentar sobre o lançamento do meu livro na Bienal. Eu achei que era uma leitora. Demorou alguns minutos para eu perceber que era minha EDITORA.

Essa mesma limitação de memória me impediria de fazer um livro tão descritivo, baseado num cenário real. Então só posso admirar a capacidade do Galera de criar (ou reproduzir) cenários de Garopaba. E há muito mais para se admirar. Barba Ensopada de Sangue é um livrão de 420 páginas, delicioso de ler, e de se viajar. Como negativo, eu só poderia dizer que o terço final do livro me pareceu um pouco arrastado, e a conclusão é de certa forma frustrante, mas tudo num grau muito suave diante do prazer que o livro traz como um todo.




ENTÂO VOCÊ SE CONSIDERA ESCRITOR?

Então você se considera escritor? (Trago questões, não trago respostas...) Eu sempre vejo com certo cinismo, quando alguém coloca: fulan...