03/02/2014

RESENHAS DO FINAL DE SEMANA



Duas resenhas minhas publicadas neste final de semana, na Folha:


LIONEL ASBO: ESTADO DA INGLATERRA, de Martin Amis.

Sarcasmo, cinismo e ironia são recursos de estilo difíceis de serem traduzidos por aqui. Não apenas porque não encontram muita correspondência num país pretensamente simpático como o nosso, mas porque dependem de antemão de uma compreensão do leitor, uma cumplicidade, tornando-o aquele que também caçoa ou aquele que é caçoado.

Esse jogo está em alta em “Lionel Asbo: Estado da Inglaterra”, a começar pelo título, com um intraduzível “Asbo” (de “ordem de comportamento anti-social”, em inglês) e um “State of England”, que nem em português deixa claro se se refere ao estado atual da Inglaterra ou a um fictício “Estado” do Reino Britânico.

Um pseudo-fictício momento atual da Inglaterra é o que encontramos no romance de Martin Amis. Desmond é um jovem criado nos subúrbios de Londres pelo marginal tio Lionel, um antipai, ou contrapai (“Lionel falava; Des ouvia com atenção e depois fazia outra coisa”) que recomenda que ele falte na escola, só leia porcaria e só use o computador para pornografia. Contrariando a educação familiar, Desmond, gentil, feminista e “romântico”, segue um progresso lento e constante através dos estudos, enquanto seu tio avança loucamente pelo crime e pela sorte, tornando-se uma celebridade instantânea ao ser premiado num bilhete de loteria.

A estrutura do romance é ousada, não só oscilando entre os dois personagens, como também incorporando reportagens e desconstruindo a linearidade, mas sempre oferecendo a possibilidade do leitor de rir daquilo como uma grande piada, um traço da boa literatura pop que não parece existir entre nós. O teor imoral do caráter de Asbo (que afinal é o herói do romance) e seu comportamento violento poderiam tornar o romance pesado. Mas sua completa inversão de valores toma ares de nonsense, como nos melhores filmes de Tarantino, e oferece um desafio ao leitor na voz do protagonista: “O mundo dos ricos é pesado. Tudo tem peso. Porque está aqui para durar. E o meu velho mundo... é leve! Nada pesa um grama! As pessoas morrem! As coisas... voam e desaparecem! Portanto este é o meu desafio. Ir do mundo flutuante... para o mundo pesado. E sou capaz de enfrentá-lo.”

Lionel Asbo é um desafio. Uma experiência literária sublime, mas produto da Inglaterra, que talvez perca grande parte de sua força em outros territórios, reinos e estados.

Avaliação: Bom


O TÍMIDO E AS MULHERES, de Pepetela. 

Pepetela é pseudônimo de Artur Carlos Maurício Pestana do Santos, escritor angolano que recebeu o Prêmio Camões em 1997, esteve na Flip de 2008 e tem duas dezenas de obras publicadas em seu país. No Brasil, a editora Leya vem publicando boa parte de sua obra, e agora traz seu romance mais recente, O Tímido e as Mulheres, recém lançado em Angola.
            Heitor é o “tímido”, um aspirante a escritor de “cabelo grande, barba grande, despenteado, um Jesus Cristo Negro”. Sua paixão platônica é Marisa, uma radialista sedutora de “seios fartos, uma bunda generosa e lábios carnudos”; que por sua vez é casada com Lucrécio, um filósofo resignado, aprisionado a uma cadeira de rodas. O que à primeira vista se apresenta como um triângulo amoroso se desdobra numa série de histórias interligadas, num foco narrativo que migra para outros personagens da Luanda dos dias de hoje: o fiscal corrupto, a estudante de história, os amigos boêmios.
            Com humor fino e uma sensível observação da sociedade, o autor constrói um texto delicioso que remete muito à crônica de costumes brasileira – passando por Machado de Assis, Nelson Rodrigues e Jorge Amado (esse citado nominalmente pelo autor). A proximidade da realidade angolana com a nossa é instigante, embora tal familiaridade também tire um pouco o brilho do romance. A esposa voluptuosa com o marido impotente, o protagonista aspirante a escritor, o amigo safo, até o imprescindível cão companheiro do herói – tudo resvala num déjà vu, magistralmente escrito, mas sem grandes novidades.
            Como tempero especial temos o português angolano, perfeitamente compreensível (a edição apresenta o texto original, sem adaptações), porém repleto de expressões curiosas e grafias alternativas. Um glossário de cincos páginas ao final desvenda termos como “ngombelador”. “ximbeco” e “cassule”.

Avaliação: Bom. 

NESTE SÁBADO!