Sou um homem branco nascido e criado num bairro
nobre de São Paulo. Ainda assim, estou credenciado para falar das minorias, vez
ou outra sou taxado de transgressor ou underground,
sou uma opção “acessível” do lado B da literatura, por minha homossexualidade
assumida.
Recentemente tem se discutido muito sobre “o lugar
de fala” na literatura – trazido da mesa com Daniel Galera, Ronaldo
Bressane e Joca Terron na Flip. A mesa,
da programação paralela do Sesc, discutia os deslocamentos literários, “viajar
para escrever e escrever para viajar”, mas a pergunta de uma jornalista na
plateia mudou o foco para o lugar da literatura feminina. A matéria resultante,
publicada no G1 (aqui), levou uma série de feministas e feminazis a
questionarem “o que três homens (brancos e héteros) acham que podem falar sobre
literatura feminina?”
Galera supostamente defendia que escrever como
mulher “não tem mistério”, Bressane, em ótimo artigo, desenvolveu a ideia (aqui)
dizendo: “Se eu não usar a ficção para me colocar no lugar de outro — ou outra
—, pra que diabos serve a ficção?” Mulheres como Ivana Arruda Leite e Simone
Campos reivindicaram (aqui) o protagonismo – não serem colocadas sempre como “à
parte” da grande literatura (a literatura masculina). E eu concordo com todos e
discordo de todos.
Se o desafio e o prazer da literatura estão em se
colocar no lugar do outro, colocar-se no lugar do que não se conhece pode soar
falso e reducionista. Ainda que o escritor deva escrever sobre o que sabe, um
personagem muito próximo de seu perfil/biografia pode remeter à egolataria da “autoficção”.
Eu acredito em literatura feminina, literatura
gay, negra, masculina ou fantástica. Os rótulos existem. Existem os
estereótipos. E cabe ao bom escritor fazer uso deles, negá-los ou ir além. Um
homem pode fazer literatura feminina, um hétero pode fazer literatura gay. Não
são escolhas fáceis, e frequentemente soam falsas. Isso não significa que
mulheres só podem fazer literatura feminina, gays só podem fazer literatura
gay. As pessoas não são apenas uma coisa, o escritor não é apenas um gênero.
Como homem branco classe média-alta, eu sou dominante;
como gay sou minoria, marginal. Entendo o homem como “o outro” a ser
conquistado. Tenho uma visão masculina de grande parte da vida. Escrever um “romance
hétero” (e bastante machista), como BIOFOBIA, é mais fácil para mim do que
escrever em primeira pessoa feminina (coisa que também já fiz em “A Morte Sem
Nome”). Escrever em primeira pessoa jacaré tem seus desafios, mas também nunca
haverá um réptil a me contestar.
Negar os rótulos é ato frequente de autores que se
sentem reduzidos. “Não existe isso de literatura gay, é literatura e ponto.”
Paia. Gays não precisam fazer necessariamente literatura gay – mas se a
homossexualidade é a questão central da obra, é literatura gay. Se o livro trata
de questões do íntimo feminino, é literatura feminina. Falar em “literatura
masculina” só não é tão comum por, talvez, ser a maior parte da produção
literária. O termo costuma aparecer quando é uma mulher que escreve do ponto de
vista masculino – o que também não é frequente.
A fobia do gênero (literário) é compreensível.
Quando já se lê tão pouco no Brasil, enquadrar-se num rótulo é reduzir ainda
mais o público (“livro de mulherzinha”, “livro de viado”). Para piorar, os
autores que aceitam os rótulos são em sua maioria os que fazem uma literatura panfletária, que não apenas discute a
questão (do gay, do negro, da mulher), mas querem defender essa questão,
perdendo assim as sutilezas e contradições que podem rondar o tema.
Pessoalmente nunca senti preconceito no meio
literário por “ser um autor gay”, mais por ser um autor “moderninho”, pelo
caráter pop da minha imagem e escrita, pelo flerte com a literatura de horror. Nos bastidores, quem sabe a
homossexualidade me tenha fechado e aberto portas; apenas nunca procurei cotas.
Mais do que tentar se afirmar como o gênero
dominante – “Literatura e ponto” – acho que homens, mulheres, gays e jacarés
deveriam reafirmar suas diferenças, fortalecer seus gêneros próprios, tomar as rédeas dos rótulos. Eu fico
com o “existencialismo bizarro”. Sou homem branco dos jardins, mas não quero escrever como um homem branco dos jardins. Quero meu espaço e quero respeito, não quero ser mainstream. Só faz sentido escrever se for para tentar fazer diferente. É o gosto
pelos subterrâneos que me leva mais longe.