27/10/2017

TRÊS GAYS

Trevisan
Meu pai me proporcionou a primeira experiência de exílio. A de ser um homossexual e, por isso, alijado no âmbito paterno. (...) Como não tem a compreensão do que se passa consigo nem do que significa para a cultura do entorno, a criança “diferente” não tem elementos mínimos para se defender emocional e fisicamente da desaprovação e desconforto que a bombardeiam.

João Silvério Trevisan acaba de voltar em grande estilo com “Pai, Pai”, livro de memórias e romance de formação em que analisa sua formação como homem, homossexual e autor a partir de sua relação com o pai (ou a falta dela). O Trevisan-senior era um alcoólatra, marido violento e péssimo padeiro, que foi pouco a pouco se tornando o patético bêbado da cidade. Talvez por eu ser filho de um pai verdadeiramente ausente – meus pais se separaram quando eu era bem pequeno e ele nunca participou da minha educação, nunca convivemos; passei anos sem vê-lo – questiono muito da visão pessoal do livro (a começar pela noção do autor de “pai ausente”). Talvez eu mesmo tenha uma visão equivocada sobre o peso do pai na minha vida – mas desde a adolescência que aceitei o conforto dessa ausência. De meu pai aproveitei apenas a arte, o resto não me faz falta desde a infância; nunca busquei substitutos, nunca procurei “figuras paternas” – aliás, nunca suportei figuras paternas. Mas veja só, já comecei a auto-análise...

Um grande texto tem esse poder, de nos fazer refletir sobre nós mesmos, e “Pai, Pai” é dos maiores do ano. Para além da experiência pessoal do autor, é um rico panorama do Brasil pré-pós-ditadura e da militância dos movimentos LGBT. A parte central do romance – os anos de adolescência passados no seminário – é minha favorita, onde há o lirismo do descobrimento, da inocência, fundamentados (e não contraditos) pelos estudos bíblicos.

Em diferentes circunstâncias, tenho sido desautorizado como escritor de literatura brasileira e relegado a um nicho: o de “escritor de viados”. Causa espanto que se dê à minha sexualidade tão extraordinária relevância ao ponto de suplantar o interesse por minha literatura. Em outras palavras, faça eu o que fizer, serei antes e acima de tudo “o viado”.

Talvez por eu ser homossexual, talvez por ser de outra geração e nunca ter sofrido desse estigma, sempre vi, sim, João Silvério Trevisan como o “escritor de viados”, e por isso mesmo um exemplo e um herói. Sabemos bem como nos faltam modelos que assumam esse papel sem meias palavras e comprem essa briga (e por isso mesmo me pareça tão pau mole quando Ney Matogrosso renegue o rótulo de gay e se declare ser-humana). O que talvez incomode especialmente em Trevisan seja o discurso não apenas de aceitação, mas de elevar à relação homo a algo além do sexual, além do transgressor, ao sagrado do amor, com o qual até a sexualidade hétero tem conflitos. O aspecto sagrado no amor tem muito de assexuado – e colocar a homossexualidade na equação é bugar de vez.  
 Eu luto com a consciência de que está em jogo algo para mim sagrado: o direito de amar.

Mas também não dá para levar tão a sério a perseguição a um autor que já ganhou três vezes o Prêmio Jabuti. No Brasil, não há muito mais a conquistar como autor, infelizmente. 

“Pai, Pai” já está nas livrarias, publicado pela Alfaguara. E quem está em São Paulo (e ler isso a tempo), tem lançamento e debate amanhã (sábado 28/10), 11h, na Mário de Andrade.




Se Trevisan é nosso “Pai” (mesmo que não queira assumir o papel) é lindo ver novas gerações de autores homossexuais levando o tema para outros universos.

Deve ser por isso que proíbem que se fale sobre nós. Para que, a cada nova geração, não fiquemos sabendo de todos aqueles que vieram antes.

Samir Machado de Machado é um gaúcho pouco mais novo do que eu que publica há mais de uma década, mas que ganhou mais repercussão a partir do ano passado com seu (ótimo) Homens Elegantes, romanção histórico gay passado no século XVIII, lançado pela Rocco, que mistura espionagem, capa-espada e manifesto gay, com muita elegância. Se eu tinha qualquer pretensão de ser o príncipe dândi da literatura brasileira, perdi o posto para Samir, não só por seus cachecóis, mas principalmente por seu texto:

Aos olhos do amante neófito, o corpo do outro é um mapa inexplorado com seus picos, vales e tensos caminhos óculos esperando para serem desbravados, esperando por quem os clame para si. Gonçalo transborda de uma vivacidade instintiva, preocupado em agradar sem saber bem como, aguardando que lhe indiquem o próximo passo com ansiedade. Desajeitado, não sabe bem o que fazer com as mãos – ora as tem soltas ao longo do corpo, agarrando os lençóis, ora as usa para segurar a cabeça de Érico entre suas coxas. Enfim se decide: as põe por baixo da almofada sob a nuca, como um São Sebastião, quando flexiona os braços e arqueia o abdome num longo suspiro, enquanto recebe aquela demonstração de bom uso da língua portuguesa. Ao fim de uma sequência de longas e nostálgicas sugadas, Érico troça ao redor do bálano e aplica um leve mordisco na ponta. A noite chega ao seu ápice. Gonçalo estremece, o êxtase o faz contrair a barriga e estufar o peito uma última vez, sua seiva flui aluvial e sobeja.

Samir

Dando uma guinada radical na elegância, cuspindo no amor e chutando as convenções, temos ainda o Hugo Guimarães, que está com novo romance no forno (ainda não vendido). Outrora meu “protegido” - já assinei a orelha de um (ótimo) livro de contos dele -, mas me afastei correndo quando constatei que para alguém escrever aquele tipo de coisa não dava para ser bom da cabeça. Hugo tem uma escrita violenta, visceral e espontânea. Se Trevisan é um intelectual com formação de seminarista e repertório dos clássicos (da literatura ao cinema à música), Hugo é um autor punk, fã de horror e praticante de atletismo.

Hugo

Está no atletismo, aliás, o diferencial mais interessante de “Igor na Chuva”, esse seu romance inédito que li há pouco e que ganhou menção honrosa no Programa Nascente na USP. É uma auto-ficção de um jovem já não tão jovem, alimentando sonhos platônicos numa São Paulo inundada. Menos violento do que seus anteriores, tem um sarcasmo delicioso e devaneios geniais.


Quando vou a um encontro sexual, eu normalmente não me banho, apenas lavo o pênis em uma pia. Assim como um homem. Assim como um hétero? Não, mas apenas como um homem. Qualquer homem. Eu não sou um homem? Imagine uma mulher negra, filha de escravos, na América dos anos de 1900, tentando participar de um movimento feminista argumentando “Eu não sou uma mulher?” com aquelas senhoras brancas de longas saias. Claro que ela é. É o mesmo que digo aqui. Eu não sou um homem? Um homem feio, mas ainda um homem. (...) Sobre o processo de antropoformização, processo esse em que um animal tende a sentir-se e agir como se fosse um ser humano. Os veterinários dizem que é muito comum acontecer em animais domésticos que não tem contato com outros animais. Faz sentido ao que determinado animal desse tipo deve pensar “se só há seres humanos à minha volta, então eu também sou um ser humano!”. Eu não me comporto como um animal e não sofri o processo de zoomorfização, perdão lhe desapontar se você pensou que era isso que eu ia dizer na sequência. O que eu ia dizer é que sofri um processo similar quando fui aceito na melhor universidade do país, quando comecei a treinar atletismo por lá e por consequência conviver com garotos tão bonitos todos os dias: acho que passei a achar que eu também era um garoto bonito e, logo, ter “acesso” a eles. Apenas não, apenas não sei explicar, desde que sou um ser como o macaco e sim, eu vejo o meu próprio reflexo no espelho. 

Já eu, quando farei meu "romance gay", você pergunta? Bem, não gosto de me limitar a rótulos, sou antes de tudo um "autor", não um "autor gay", assim como não me interesso por homens, me interesso por pessoas... (pessoas com pinto), estou apenas confuso... sou um ser-humano, uma cera-humana... Ah, tudo bobagem. Se ainda não fiz um romance sobre o sagrado do amor gay é só porque no meu mundo não existe sagrado e não exite amor. Mas os viados estão sempre lá. 





NESTE SÁBADO!