29/01/2020

AGATHA

Agatha quando era gata. 

Dizem que quando a gente morre todas as histórias de nossa vida passam em nossa mente. Mas será que fazem sentido? Uma vida inteira, ou um assassinato. Será que naquele instante derradeiro tudo se encaixa num clique e tem-se a impressão de que a história está completa, tudo foi cumprido, era esse mesmo nosso final, tramado desde o começo?

Com tanta violência, tantos assassinatos, nós, que aqui restamos, ainda estamos procurando sentido. Somos como um Detetive Hercule Poirot... mas jogados num romance surrealista. As pistas não se juntam, os motivos são banais, não há o toque de planejamento, de genialidade, a beleza de uma morte bem pensada, o assassinato no momento exato...

Relendo hoje “O Assassinato de Roger Ackroyd”, vejo como falta propósito em nossas vidas... ou nossas mortes. Como tudo seria mais interessante se fosse realmente um hábil quebra-cabeças, deixado a desvendar para os mais atentos, ou os perseverantes, que seguissem até o final. A vida compreendia pelos leitores. E tudo com um fino humor inglês.

Não sei que histórias passarão em minha cabeça quando a faca finalmente entrar nas minhas costas. Mas adoraria que minha morte tivesse sido escrita por Agatha Christie.



Orelha que escrevi para "O Assassinato de Roger Acroyd", numa edição da Globo de dez anos atrás. O briefing era escrever uma orelha mais literária, menos publicitária, quase como um microconto. Esse foi o texto aprovado, mas antes tinha mandado outro um pouco menos objetivo, que acharam um pouco demais (e era um pouco demais de paródia de mim mesmo), então refiz. O primeiro era assim:


Dizem que quando a gente morre todas as histórias de nossa vida passam em nossa mente. Eu me lembrei disso quando senti a faca entrando. Minhas próprias paixões, conquistas e fracassos, emaranhadas com aquelas que vivi como leitor. Não conseguia diferenciá-las, principalmente porque ainda estava concentrado em continuar respirando. Ele enfiou a faca novamente - e outra vez - depois parei de contar. Eu vim ao chão, ele seguiu para a porta. Meu assassino me deixava para completar sozinho a história. Não fazia sentido, minha própria morte, uma trama à qual eu não poderia dar final. Me lembrava de tantos romances policiais – sempre com um grande desfecho, uma grande virada, motivos e encaixes que davam poesia a uma morte. Naquele momento, eu só queria chegar ao telefone, chamar uma ambulância, ligar para minha irmã e perguntar qual era mesmo o nome daquele livro da volta do Detetive Poirot? A memória é um lento rastejar. E eu estava tirando tudo do lugar - apagando digitais, manchando pegadas, destruindo pistas que narrariam minha vida, meu assassinato. Sem mais poder seguir em frente, permaneci deitado no chão de tacos, meu sangue se infiltrando nas frestas, misturando-se a fios de cabelos, restos de insetos, lágrimas de outrora. Ficaria ali, para contar minha história? Ou seria tudo esquecido, enxaguado, reformado com um novo piso? No meu último suspiro, apenas um desejo: como eu gostaria que minha morte tivesse sido escrita por Agatha Christie.

Hoje acho que o texto aprovado é mesmo bem melhor. Orelha tem que cumprir um serviço (mesmo que não tivesse sido isso que haviam pedido inicialmente). E assim começou minha história com Agatha Christie...





E por algum acaso do destino, Agatha Christie acabou se tornando uma das autoras com quem mais tenho trabalhado... Bom, na verdade, é a "A "autora que mais traduzi. Desde 2018 tenho traduzido os livros dela para a plataforma de áudio Storytel, que chegou ao Brasil trazendo uma caralhada de audiobooks, podcasts e muita coisa legal. (Inclusive meus três primeiros romances, que estão esgotados nas livrarias, estão por lá). 



Ouso dizer que traduzir Agatha Christie é... fácil. Bem fácil. Os textos dela são muito apoiados no diálogo, o que os torna bem coloquiais. Há um desafio da época, é claro, ela escreveu de um século atrás até os anos 70 - isso limita as gírias e a "soltura" da coloquialidade; e há também uma sátira da época, referências aos costumes. Mas ela também já foi tão traduzida, em tantos idiomas, que sempre é fácil tirar uma dúvida. (E é fácil encontrar tantas barbeiragens feitas em outras traduções...)

E não vou dar uma daquelas de tradutor pau-no-cu falando que "tradução fácil é chata", que o "legal é o desafio". O desafio pode ser legal se o livro for bom, tem um monte de desafio que é só um saco mesmo. Agatha Christie é sempre divertida; e se é fácil, dá para a gente se soltar e tentar apenas tornar o texto mais gostoso. 

Assim, no meio do processo de traduzir os livros pra audiobook, a Globo Livros me procurou novamente para eu traduzir um dos livros dela em papel. 

A nova edição com tradução minha. 

"M ou N" é um romance de espionagem, com um casal de protagonistas não tão conhecidos entre os personagens dela. Tem posicionamentos muito progressistas em relação ao feminismo e a utilidade dos cidadãos de terceira idade, além de questionamentos sobre a guerra. 

Junto à tradução me pediram um texto de apresentação. E ressaltei a importância de Agatha, não só como bela leitura de entretenimento, mas como crítica social e retrato de seu tempo. Tem sido muito enriquecedor mergulhar na obra dela e ver seu desenvolvimento através das décadas do século XX. (Ela mesma tem uma história louquíssima de adultério, desapareceu quando descobriu a traição do marido, foi encontrada dias depois com amnésia. Era uma mulher à frente de seu tempo. E muito da biografia dela se vê espelhada em seus livros.)

Estou terminando agora a tradução de "Noite Sem Fim", que foi dos livros que mais gostei (e que era dos favoritos dela), por isso mesmo resolvi fazer o post. É um livro de final de carreira, então é bem mais ousado e contemporâneo (eu encontrei inclusive um "bitch" escrito por Agatha Christie; tive de traduzir pelo "vaca" padrão. Mas adoraria pegar os diálogos dela e adaptar tudo para a coloquialidade atual.). O humor inglês dela é imbatível. 

Assim, tia Agatha tem pago há muitos meses as contas de casa. Traduzi outras coisas ano passado (livros empresariais, juvenis, um clássico da ficção científica; hoje eu traduzo cerca de 150 laudas por mês), mas com ela já me sinto em casa. 

Na Storytel acho que, por enquanto, tem só dois livros dela em português (na minha tradução), mas já estão vindo muitos mais: 


E aproveitando, recebi há alguns dias a nova edição do Frankenstein, da Zahar, que também tem tradução e apresentação minhas. Esse já foi um livro bem mais trabalhoso, que também exigiu muita pesquisa minha para as notas (eu lembro que literalmente no dia 24 de dezembro a editora me pedia para pesquisar territórios turcos na época do livro). Mary Shelley é uma autora bem mais sorumbática. Mas acho que ficou um belo trabalho. 
As duas edições com tradução minha. 




18/01/2020

FÉ NO INFERNO

No mosteiro de Noravank, em 2015. 

Estamos numa época de minorias perseguidas, de nativos expulsos de suas próprias terras, da religião majoritária se impondo sobre um povo. Estamos no Brasil de 2017, às vésperas de uma eleição reveladora; e estamos em 1915, em plena Primeira Guerra Mundial.

Quem une essas duas épocas é Cláudio, um jovem cuidador de idosos que vai trabalhar para seu Domingos, um senhor armênio, nos Jardins, em São Paulo. Como homossexual e neto de indígenas, Cláudio sabe bem o que é ser minoria, mas na convivência com Domingos conhece uma história que remonta a mais de um século: o genocídio armênio perpetrado pelos turcos. A partir da leitura de um livro de memórias, Cláudio começa a suspeitar que possa estar diante de um dos últimos sobreviventes de um dos maiores massacres do século XX, e sua responsabilidade como cuidador é mantê-lo vivo.

“Fé no Inferno” é um romance que intercala dois períodos emblemáticos através da veia provocadora de Nazarian, um autor que há duas décadas representa o “Lado B” de sua geração. Mesclando pesquisa histórica, folclore armênio e uma observação mordaz do Brasil contemporâneo, o autor cria sua obra mais ambiciosa, num texto obrigatório para os dias de hoje.




Essa é a sinopse do meu novo romance, que sai em abril, pela Companhia das Letras. A Folha deu nota hoje, então começo oficialmente os trabalhos de divulgação.

Como armênio (ou "neto de armênios"? Ou "meio-armênio?") eu devia há muito essa história, mas simplesmente não me considerava capaz. A partir da minha viagem para a Armênia, em 2015, comecei a pesquisar, rascunhar e montar esse romance, que ganhou nova relevância com os tempos de perseguição de minorias que estamos vivendo. 

Mas ainda falarei muito sobre isso. Este é só o começo...

Espero poder rodar o Brasil em lançamentos, mesas e debates - aberto aos convites que surgirem. Agradeço novamente a acolhida na Companhia (e por terem aceito um título tão provocativo sem questionamentos), minha agente Lúcia Riff, e principalmente ao professor-doutor-historiador Heitor Loureiro, que foi quem mais me ajudou em todo o trabalho de pesquisa e escrita. 

Tenho fé. 

(Mas não muita.) 


"O Diabo pelos olhos de uma criança", minha tatuagem nova, desenhada pela minha sobrinha, que tem muito a ver com o livro. 



NESTE SÁBADO!