05/06/2005

O HOMEM DE UM MILHÃO DE DEDOS

Acabo de voltar do mato. Da casa da minha mãe. Desta vez, por mais que tenha tentado, não consegui roubar nenhum livro. Mas ganhei de presente o "Contos de Horror do Século XIX", da Companhia das Letras. Por lá eu li o "Contos de Medo, Horror e Morte" da Nova Fronteira. Os dois livros foram lançados quase simultaneamente. O da Companhia é melhor, edição mais caprichada, traduções mais célebres, e uma seleção mais interessante, apesar do livro da Nova Fronteira ter alguns autores curiosos, como Machado de Assis e Kafka. Só não entendo por que a Companhia deu o nome de "Contos do Século XIX", se grande parte dos contos é do começo do século XX.

Ontem de noite fiquei ao pé da lareira, lendo (o irlandês) Sheridan le Fannu, ouvindo Liszt e o relógio da casa bater meia noite (sim, o relógio lá dá as badaladas, mas aqui em casa eu escuto o sino da igreja...). Tudo quase perfeito. O problema mesmo é só sair de madrugada para catar lenha e manter o fogo aceso (ops!). Um dia desses vou encontrar uma cobra no meio do caminho (ops!) e vai ser uma beleza...

Sheridan le Fannu criou grande parte do imaginário do vampirismo, para outro escritor tecnicamente superior aproveitar depois: Bram Stoker, (Quem falar de Anne Rice come toda a bosta dela...)

Lá eu vi também um DVD horroroso que eu mesmo aluguei: "Sonho de Amor", do Charles Vidor. É a história romanceada (e açucarada) da vida do (compositor húngaro) Franz Liszt.

Liszt é meu herói. Pianista ultra-virtuoso do século XIX, muito criticado por criar composições apenas com o intuito de demonstrar sua técnica absurda.

Ele fez transcrições para piano de peças sinfônicas de outros compositores, floreando ainda mais as passagens e dificultando a execução para outros pianistas. O poema sinfônico "Dança Macabra", do francês Camille Saint-Saens, por exemplo, torna-se quase cômico na versão do Liszt, de tão rebuscado.


Parêntese: Eu ouvia muito "Dança Macabra" quando eu era uma criança já despertada pelo espírito gótico, hehe. Meu pai tocou para mim e me explicou que se tratava de uma peça de horror, com caveiras dançando no cemitério, coisa assim. Quer coisa melhor para fazer uma criança ouvir música clássica?

Inclusive, tenho uma gravura enorme aqui na minha sala, da autoria do meu pai (o artista plástico Guilherme de Faria), que provavelmente foi inspirada nessa música também. É o retrato de um caveira cavalgando num mar de corpos. Ela é descrita numa passagem de "Feriado de Mim Mesmo":

"Ele mesmo escolhera aqueles quadros. O quadro da morte. A morte cavalgava. Às vezes se cansava. Às vezes se lamentava, mas era sua própria vida."

('Página 107, como o número do meu apartamento de Porto Alegre, que é descrito no livro, veja só. Não era a Lyvia, de Goiânia, que queria saber de onde vieram as coisas...) Fecha parêntese.

Voltando ao filme, é uma merda. Liszt é interpretado pelo Dirk Bogarde. Pô, aquele cara só pode interpretar um compositor decadente, como no "Morte em Veneza". Como colocam ele na pele de um virtuoso? Além disso, ele não tem cabelo. O cabelo no Liszt é fundamental! hehe. Ele usou a vida inteira o cabelo comprido. Inclusive tenho uma biografia dele, escrita por um tal de Zsolt Harsanyi, com um trecho ótimo sobre o "nascimento do cabelo em Liszt". A mãe dele diz:

- Quando é que te resolverás a cortar o cabelo?
- Não o cortarei mais. Pelo contrário, vou deixá-lo crescer até que caia sobre os ombros. Como os cavaleiros da Renascença.
- Cabelo comprido? Então meu filho que transformar-se num palhaço?


Foram feitas várias caricaturas de Liszt tocando; seu cabelo como uma peça fundamental na "composição do personagem", ele balançando a cabeleira de um lado para o outro, uma coisa linda. hehe.

Mas não é só o cabelo que falta no filme, é tudo uma afetação só. Liszt é retratado como um homem frívolo, ignorante, egoísta e vaidoso ao extremo. Ele tinha alguns desses aspectos, mas era extremamente generoso com outros artistas, tendo revelado vários compositores, como Chopin e Wagner.

O filme tem uma passagem divertida, com Liszt tocando suas composições no piano (com a mão levinha...) e acordando seu filho, que começa a chorar. Daí ele passa a tocar um noturno de Chopin e o bebê volta a dormir. Mas, no geral, o filme é chato, tolo, com personagens mal construídos, que trocam de personalidade de uma hora para outra... Ah, não presta.

Tenho três biografias do Liszt. Aquela mais conhecida, do Derek Watson, uma ilustrada, de Bryce Morrison, e uma romanceada, do Harsanyi (de onde tirei o "trecho do cabelo"). O texto dessa última é ótimo, não só como informação, mas também como literatura. Narra desde a infância de menino prodígio do Liszt até o final da vida, tudo de forma envolvente (obviamente muitas liberdades devem ter sido tomadas à fidelidade dos fatos). Existem várias passagens que ajudam a criar uma concepção de quem era o Liszt, de como ele pensava e trabalhava.

"Pela primeira vez na vida, via o menino aquele pequeno obelisco isócrono [o metrônomo]. Agora, esse instrumento hostil e cruel ali estava, em cima do piano, vigiando-o severamente, afim de que ele não se satisfizesse com o que tocava. Bastar nascer nele o desejo de retardar o ritmo antes de iniciar uma passagem complicada, para melhor gozar da surpresa que nela se ocultava, o metrônomo o chamava à ordem com tanta crueldade, que chegava a parecer-lhe perversa. E, por outro lado, refreava-o com a mesma crueldade, quando em determinado ponto queria acelerar o ritmo a fim de gozar com a velocidade dos seus dedos. O próprio [professor] Czerny também parecia um metrônomo."
Que é isso, que ritenuto é esse?
Assim é mais bonito.
- Assim não é mais bonito. Só pode ser belo o que é regular e completo.


Ahhhhhhhhhh... que menino lindo...

Bom, chega de Liszt, vou ouvir Kylie Minogue. haha.

(ei, descobri este final de semana que Carson McCullers é mulher!)

NESTE SÁBADO!