14/12/2006

CORDA NO PESCOÇO


(Legenda: "Meu passado gótico me condena... à pena de morte.")

Sonhei que eu tinha morrido. Me suicidado, na verdade. Ou não? Não. Isso não teria a menor graça. E a graça do sonho era essa: eu tinha morrido enforcado, mas ninguém sabia se era suicídio ou não. Estava em todos os jornais. Estava no Jornal Nacional, uh-lalá! Mas isso não por eu ser um "escritor famoso", apenas por ser um defunto enigmático. Assim:

Meu corpo foi encontrado enforcado num celeiro no interior de São Paulo. A corda amarrada numa viga alta de madeira. Eu pendurado, como os suicidas ficam. Mas uma dúvida no ar. Onde estava a escada?

Se eu mesmo tivesse me matado, teria de usar uma escada para amarrar a corda na viga, e depois saltar para meu corpo ficar pendurado lá de cima. Não havia. Se alguém havia retirado a escada, era um cúmplice – quem era? Ou podia ser assassinato.

Se fora assassinato, podiam ter me enforcado no chão, depois pendurado no alto, mas então haveria mais de uma marca de enforcamento no meu pescoço. Se fora outro tipo de homicídio, também haveria outras marcas. A não ser que alguém tivesse me obrigado a subir numa escada, colocar a corda no pescoço e saltar. Depois esse alguém retirou a escada. Suspeito...

Mas a verdade só eu sabia. E onde eu estava? Dormindo, no meu quarto, claro. Mas onde eu estava no sonho? Não estava. No sonho eu era apenas um espectador da minha própria morte na TV. E eu secretamente tinha a resposta para o dilema.

Eu abri uma escada, subi até a viga, amarrei a corda. Me segurei na viga com as mãos e peguei a escada com os pés. Com as mãos fui andando, segurando a escada com os pés e colocando-a num cantinho do celeiro. Depois a derrubei, para que ela ficasse fechada, no chão, longe de onde ficaria meu cadáver. Então, andando novamente com as mãos, voltei até onde estava amarrada a corda. Usei uma das mãos para colocá-la em volta do pescoço e... me soltei.

Presto!

Isso tudo também acabou sendo revelado na TV, descoberta de um perito criminal. A pergunta deles agora era: "quem eu estava tentando incriminar encobrindo meu próprio suicídio?"

Ninguém. Eu só fiz isso mesmo para aparecer no Jornal Nacional...

Ah, que bela história de Natal! Ei, não é conto não, não é literatura, é verdade! Quero dizer, é sonho. E conto num blog porque não daria mesmo um conto...

Aliás, estava debatendo um pouco sobre isso com a (poeta) Ana Rüsche. Ela aproveitava um comentário do Galera sobre o "O Labirinto do Fauno" para questionar em seu blog o valor do fantástico e da ficção nos tempos atuais. E eu fui obrigado a levantar mais uma vez minha bandeira.

Essa história de dizer que "a vida real é mais estranha do que a ficção" é coisa para quem não tem imaginação. (aliás, eu disse essa frase textualmente no meu debate com o Karim Ainöuz). Você vê, basta colocar um jacarézinho falante num livro para adultos que você já se afastou milhas e milhas das possibilidades que a realidade (e o realismo) oferece.

E Ana Rüsche colocou esse questionamento em seu blog exatamente por concordar comigo. "Tenho grandes certezas que apenas contando de maneira ficcional certas coisas é que as pessoas perceberão a própria realidade como fictícia - é uma ferramenta para desburocratizar olhos já treinados para julgar tudo como normal."- me disse ela por email, de uma forma sintética que eu nunca conseguiria.

É claro que a ficção é construída à partir do real, de valores reais, até de fatos reais. Mas só com a distorção, exagero, alegoria e superação propostos pela ficção é que ainda se pode compreender o mundo atual em sua plenitude. E essa história de que "todas as histórias já foram contadas" é coisa de quem tem menos imaginação ainda. Ou então isso já poderia ser dito na antiguidade grega (tudo já foi contado). Ou então na Bíblia (tudo já foi contado). Ou então com Shakesperare (tudo já foi contado). Então, meus queridos, deixem de preguiça e de reality show e vão procurar suas histórias.

Hoje, inclusive, fui assistir ao "O Labirinto do Fauno". Faz parte dessa nova onda de filmes que criam paralelos entre um mundo fantástico e uma realidade histórica-política, como o (péssimo) "Dama na Água" e o (excelente) "Taxidermia" (do húngaro György Pálfi - exibido na última Mostra de Cinema de SP).

Na minha opinião, "O Labiritino do Fauno" não é nem péssimo nem excelente. É um filme inventivo, com grande criatividade (e violência) gráfica, a serviço de conceitos mais do que desgastados. É filme para circuitão mesmo, tanto quanto "Dama na Água", mas ao menos consegue ser bem mais impactante visualmente. Ruim mesmo é a atriz mirim do filme, dá vontade socar...

Já "Taxidermia" (que por não ser "circuitão" ainda não entrou em cartaz, e talvez nunca entre) trabalha de forma semelhante esse paralelo fantástico com a história recente da Hungria, mas apostando bem mais no nonsense (e na escatologia), sem mensagens óbvias e panfletárias como os filmes de Shymalan e Del Toro.

Ai, hoje tô chato... crítico... chato...


Ok, pra finalizar. Mudando um pouco de assunto - mas não muito - tem um texto meu neste terceiro número da revista Joyce Pascowitch. Só nos conhecemos pessoalmente há alguns meses, mas a Joyce sempre deu força para meu trabalho, então fico mais do que feliz de escrever na revista dela. Até porque, é glamuuuuuuuuuuuuuur...


O texto é uma crônica sobre a atual "revitalização do Centro de SP", com ensaio fotográfico de João Bittar. Dou um trecho:

A cidade toda se inclina para o Centro. Não é difícil vê-lo como o ralo, escoamento, pelo centro estar no final de uma descida. Descendo todas as ruas – consolações, angélicas, augustas – terminamos nele como no fim da linha. Mas como o começo de tudo, o Centro também nos deu essa opção: recomeçar. Girando em sentido horário, abaixo do equador, chegamos a novos tempos. Novos centros filtram São Paulo. E se não nos entregam uma cidade mais pura, ao menos, mais fácil de todo mundo se encontrar.

Eu não. Que tenho andado trancadinho aqui em casa. Assistindo o DVD do Cauby. Esse sim que é surreal. Confiram.

PS - Quem ganhou a promoção "Coelhinho da Páscoa" do meu programa foi Ivana Arruda Leite, uma ouvinte fiel. O coelhinho foi interpretado por Laerte Késsimos.

ENTÂO VOCÊ SE CONSIDERA ESCRITOR?

Então você se considera escritor? (Trago questões, não trago respostas...) Eu sempre vejo com certo cinismo, quando alguém coloca: fulan...