A professora se encontrava entre as quatro paredes que faziam o menino ser o que ele era, refletiam o que ele era, eram extensão da personalidade do menino, a ponto das paredes já terem suas digitais e os móveis estarem impregnados com antigas células dissidentes da pele dele. Estava no quarto do menino. E tudo lá apontava para fora. Os pôsteres de surfe, a prancha encostada num canto, o skate escorado para não rolar, a miniatura de um navio dentro de uma garrafa. Era isso, um navio, dentro de uma garrafa. O menino trancado dentro de um quarto que só apontava para fora, mas que estava com as janelas fechadas, a porta fechada, e o menino encerrado numa cama, sem querer sair. Aquilo assinalava como o menino era contraditório, como era contraditório ser menino, como ser menino é uma impossibilidade de ser, associada a uma enorme vontade, uma enorme potência, uma enorme latência que, ao se resolver em maturidade, só revela frustração e incapacidade.
Não tenho saudade da infância. Não vivi grandes traumas ou privações, mas a lembrança que tenho dessa época é de insegurança, desconforto, incapacidade. As pessoas nunca têm idéia do que queremos, do que gostamos, pelo que estamos passando. A gente tem de brincar com o filho da vizinha, com o colega de classe, com o neto do patrão, apenas por uma questão de idade. Mas só quando a gente chega na fase adulta (a "crisálida-pós-pupa"), e toma controle da própria vida, é que não precisa dar tantas satisfações, não precisa tanta dissimulação, não precisa interpretar para fazer parte...
Ao menos, isso é algo que posso dizer que conquistei.
Na escola, os meninos eram (são!) obrigados a jogar futebol. E isso já determinava toda uma herarquia social - os que jogavam bem, os que jogavam mal. A primeira pergunta que qualquer menino faz a outro é "para time que você torce?" e era embaraçoso dizer que eu não torcia para time algum, que achava tudo aquilo uma idiotice (ao menos eu estava em sintonia com meus pais, que nunca assistiram nem a copa).
Eu conquistava alguns amigos por meus gostos bizarros - os filmes de terror, os monstros, os répteis, os dinossauros - outros pelos brinquedos: tinha bonecos importados do He-man, G.I. Joe, fui o primeiro menino da classe a ter o Nintendo de 8-bits
Enquanto um dos meus irmãos era um despirocado mirim, que era expulso de todos os colégios, minha irmã era "a" integrada e cheia de amigos, sempre sociável. Eu não era uma coisa nem outra - nem louco nem sociável. Preferia brincar sozinho com meus Comandos em Ação...
Acho uma fase triste. Acho uma fase fodida. Imagine, te mandam passar o verão num acampamento com um bando de crianças desconhecidas. E você é obrigado a brincar, a jogar, a se divertir com elas. Por quê? Só porque têm a mesma idade. Imagina que tiram você - tiozinho - hoje da sua casa, e botam você com um bando de homens que você nunca viu, numa colônia de férias, para falar de carro, de futebol, de mercado de capitais, e todas essas coisas que alguém acham que os homens gostam. Legal?
A infância não respeita as liberdades individuais.
Sofri sim, a cada dia, mastiguei cacos de vidro (hehehe). Sinto isso até hoje. Acho a infãncia castradora. Acho até que a gente não ejacula antes porque nos castra o professor de educação física.
A adolescência não é muito melhor. Há mais consciência, mas a mesma impossibilidade. Ainda dormimos na casa dos pais, ainda comemos o que eles querem nos servir. Por que ninguém diz que uma das maiores conquistas de libertação do homem é ele poder escolher diariamente o que vai comer? Ser adolescente é viver nesse conflito. Um corpo cheio de vontades - e possibilidades - um universo de castrações...
Penso em tudo isso enquanto leio e analiso contos de uma turma da 8a série (13 anos de idade). É uma fase tão difícil. A gente já é o que é, mas não pode ser...
Eu sou o mesmo, acho. A única diferença é que agora posso ser eu mesmo. "Torna-te quem tu és", pois sim. O livro novo fala muito disso. E meus livros todos falam das mesmas coisas que eu fala quando tinha sete, oito, treze anos... Bem, mais ou menos. Ao menos meus colegas sobreviventes identificam no meu sangue, nas minhas mortes, aquilo que eu já era. Agora faço do meu jeito.
Preciso dizer também que hoje em dia encontro meninos que eram dos mais integrados - os primeiros do time, cheios de amigos, populares - que estão fazendo arte. Se eles me olham com respeito, eu os olho com desprezo. Não... olho com suspeita... Não, olho com desprezo mesmo. Não acho que eles têm esse direito! Acho que só têm direito de exibir um universo particular (como deve ser a arte) aqueles que não fizeram parte do universo oficial.
E então?
E então?
Vai saber hoje quantos gordos, quantos carecas, vai saber quantos quasímodos olham pra mim e dizem que eu mesmo não tenho esse direito. Vai saber quantos perdedores não me renegam porque acham que a literatura é apenas arte deles...
Não faço parte da arte dos perdedores?
Talvez então todos tenham sempre se sentido excluídos. Talvez sejamos nós que tenhamos visto o outro como vitorioso. O garoto de canelas esfoladas - o primeiro do time - ele também se sentia deslocado...
Um olho um pouco abaixo do outro, um pai um pouco mais embriagado...
Integrado? Eu? Me procura aí... (não adianta me perguntar por email, talvez procurando nos arquivos do blog você encontre) (Acho essa foto das mais tristes)
* O trecho inicial é do meu livro "novo", que já ficou velho de esperar. A ilustração é de Chihiro Iwasaki, do livro "Will You Be My Friend?"