ANTÔNIA CONHECE O MAR
Antônia está na praia, dando o último mergulho. Estou na varanda da minha casa escrevendo, olhando para uma vaca. A vaca não me diz nada.
Há alguns meses em São Paulo, enquanto arrumava minha casa, minha faxineira Antônia deixou escapar: Nunca tinha visto o mar. 64 anos, nunca tinha visto o mar. Longe de ser uma restrição financeira – fazendo faxina em diferentes casas todos o dias, provavelmente ela ganha mais do que VOCÊ – era parte daquelas limitações auto-impostas, inércia, condicionar-se à vidinha de todo dia e não se permitir ir além. 64 anos, sem nunca ter visto o mar, tendo vindo do Ceará, morando em São Paulo, com finais de semana e feriados com Guarujá, Santos, Praia Grande logo ao lado...
Tornou-se minha primeira missão de 2010 levar Antônia para conhecer o mar.
As esotéricas e astrológicas diriam que eu, como taurino, deveria buscar constância e rotina. Até busco. Mas de tempos em tempos também me forço uma mudança, arranco-me da crisálida com asas murchas; não é à toa que tenho tatuado um símbolo de “Proibido Estacionar.” As pessoas são muito acomodadas. As pessoas são muito medrosas. E se a gente não ventila, não aprende, não evolui. Só se repete. Eu me repito demais... eu sei, eu me repito demais... Eu me repito demais, e se não tiro feriados de mim mesmo acabo mastigando sempre o mesmo prédio, no tédio, como um menino cego ou um narciso vesgo...
Mas estava falando de Antônia.
Antônia trabalha na minha casa desde a infância. Tenho total confiança. Já chegou inclusive a deixar, como quem não quer nada, uma nota de dez reais na minha cama, em períodos de vacas magras que eu mal conseguia pagá-la. Antônia tem filhos e filhas. Os filhos de Antônia nunca a levaram para a praia.
Então, neste momento definitivo de mudança, trouxe Antônia comigo, apenas para o final de semana. Antônia relutou - “Ah, eu já tinha combinado de ir pra Campinas...” Mas quando ameacei convidar no lugar a outra faxineira da minha mãe, Antônia cedeu, por ciúmes. Trouxe Antônia para Florianópolis – além das montanhas, depois da Lagoa, passando pela floresta, na praia da Barra.
Sábado de manhã, Antônia viu o mar. Primeira vez. Não estava um tempo lindo – mormaço – mas ok. Sentei-me nos degraus de um restaurante na praia e empurrei-a para a água. “Pode deixar que cuido das suas coisas. Sabe nadar?”
Antônia sabia. E foi andando desconfiada para a beira das ondas, sozinha. Aproximou-se de outra senhora por lá – a senhora não sabia nadar. Antônia ficou ao longe conversando. Se eu fumasse, estaria sentado fumando. Depois de alguns minutos, Antônia deu um pulo e desapareceu no mar.
Ficou saltando onda após onda, dando cambalhotas de costas, mergulhando como uma criança, fazendo inveja pra senhorinha no raso, que não sabia nadar. Eu, ainda sentado na escada, confesso que não consegui tirar um sorriso do rosto.
Uma hora depois, Antônia ainda estava saltitante na água. Eu ainda a sorrir.
Uma hora e meia depois... Eu deixei de olhar Antônia e fiquei mais interessado nos surfistas. Só espiava de vez em quando para ver se ela não se afogava.
Duas horas depois, eu estava sentado numa cadeira de praia, bebendo caipirinha com uma petizada; Antônia ainda saltando no mar.
O resultado foi que saí com minha primeira queimadura séria de sol em Florianópolis. Devia ter levado mais a sério aquele mormaço.
De tarde, comemos sequência de camarão. Depois, fui arrumar a casa – desfazer as malas. Antônia não estava entendendo direito que não tinha de trabalhar para pagar a passagem/hospedagem. Fomos ao supermercado (acho que vou ter problemas com os mercados daqui: não há maçã verde, não há filé de peito de peru, e uma vodca Smirnoff custa 30 reais). De noite, sugeri que fôssemos até a Lagoa jantar. Antônia preferiu ficar na frente da televisão, vendo novela e Big Brother. Não insisti.
Neste domingo acordei cedo, ela já tinha saído. Trabalhei num conto chamado “Trepadeira” (do meu próximo livro, stay tuned) e Antônia voltou da praia. Levei-a para a Praia Mole e Galheta, como sempre estavam vazias, só nós e os surfistas. Na volta – viemos a pé – Antônia viu os patos na Lagoa: “Eu acho que esses patos não são de verdade...” Não me arrisquei a explicar para ela que patos de borracha dispersos numa lagoa seriam chamados de “instalação artística” e que aquilo seria um pouco sofisticado demais para Florianópolis. De almoço fiz risoto de funghi e frango semi-Thomas (sem o curry-schmidt, porque ia matar o sabor do risoto). Depois Antônia saiu de novo para a praia aqui ao lado, enquanto eu rumino com as vacas...
Hoje de noite Antônia vai embora, volta para São Paulo, eu fico. Agora é com ela ir além, exigir dos filhos (e do namorado) que a leve para a praia no final de semana, nos feriados. Soltei uma pequena bomba para explodir longe de minhas mãos. Nessas horas eu entendo como a ignorância pode ser uma benção e como a inércia do povo preserva antigas formas de poder.
Antigas formas de poder...
Antônia na trilha para a Galheta olha para o mar quebrando nas pedras e diz: “Que coisa mais linda. Isso é prova de que Deus fez tudo isso.” Eu, no sarcasmo relativista tive de contestar: “Olha... Na verdade, isso tudo aqui é obra do Dr. Roberto Marinho.”