Há quase dois anos, recebi de uma editora os originais do novo livro de Yann Martel para fazer o parecer (avaliar se deveria ser comprado/traduzido/publicado; é parte do meu trabalho, eu recebo pra isso, por isso nem sempre consigo ler seu livro... Mas também é um ofício que requer mais faro mercadológico do que rigor literário. Muitas das coisas a que dou parecer positivo são livros terrivelmente comerciais, seguindo a onda de vampiros ou chic lit.)
O livro de Martel me deixou chocado. Bastou avançar algumas páginas para eu perceber que estava lendo um GRANDE escritor. Porém, precisei avançar um pouco mais para notar um tom mórbido no texto. E quando estava quase terminando comecei a me sentir realmente mal com toda a carga da doença.
Agora a Nova Fronteira lança Beatriz & Virgílio no Brasil (não, não foi para a Nova Fronteira que avaliei o texto. Se não me engano, a editora para quem avaliei disse que o título entrou em leilão e acabou saindo muito caro - o que explicaria onde a Nova Fronteira/Ediouro anda gastando as somas de direitos autorais que tem tanta dificuldade em repassar para seus autores - digo isso porque sou um deles, logicamente). Fiz questão de comprar o livro, principalmente por ter tido o privilégio de ler uma versão embrionária, inacabada, que na época ainda nem tinha título. E Beatriz & Virgílio me impressionou tanto ou mais do que na primeira vez.
Conta a história de um escritor de sucesso, com um bloqueio criativo, que acaba mudando de cidade e de vida, até que conhece um taxidermista. É um velho que está escrevendo uma peça de teatro passada numa camisa (?), onde uma mula e um macaco discutem, discutem e nada acontece (!). Grande parte do livro é isso - o escritor e o taxidermista discutindo sobre a peça, e os dois animais (Beatriz - a mula - e Virgílio - o macaco bugio) discutem sobre... sei lá o quê. É menos cômico do que parece, mas certamente estranho, e depois de um tempo, como coloquei, vai ficando doentiamente macabro.
A comparação mais próxima que posso fazer é Anticristo, o filme do Lars Von Trier.
Ainda assim, é uma aula sobre escrita, como contar uma história, e também discorre um pouco sobre o mercado literário e os processos de publicação (principalmente no primeiro quarto do livro).
A cena em que o macaco descreve uma pera para a mula (que nunca tinha visto ou comido uma) vale mais do que mil oficinas literárias (acho... porque eu nunca frequentei oficinas literárias).
Meu único senão é a conclusão. Lembro de que, ao ler os originais, o final me pareceu inacabado e apressado. Agora os originais estão no meu apartamento em São Paulo e não posso conferir o que foi mudado (ou se de fato foi mudado), mas minha impressão foi outra, igualmente insatisfatória. Agora me parece que o livro todo trabalha com isso da obra inacabada, com a impossibilidade de concluir uma história, com a obra em processo, e o final dado é muito conclusivo. Mas enfim, não convém estragar a experiência falando do final aqui...
Yann Martel (espanhol, radicado no Canadá) se tornou um novo Dennis Cooper para mim, um dos meus autores malignos favoritos, com certeza. Na época do parecer, aproveitei também para ler seu grande sucesso - A Vida de Pi - e me lembrei da polêmica com Moacyr Scliar.
A Vida de Pi narra a história de um naufrágio que deixa um garoto num bote salva-vidas com um tigre. Foi um livro mundialmente aclamado, e premiado, que deve ter em breve uma adaptação para o cinema. E é um belo, belo livro.
Mas sua premissa foi tirada de uma novela do Moacyr Scliar - Max e os Felinos - que narra a história de... um naufrágio que deixa um garoto num bote-salva vidas com um jaguar. Ok, mesma premissa, mas outra história, outro contexto, outro texto. Scliar elegantemente elogiou o romance, descartou as elegações de plágio, apenas se ressentiu do crédito não dado por Martel (que reconheceu posteriormente a influência).
Bem... Depois de ler os dois livros, as duas versões, e estar tão influenciado pelos dois... Foi impossível eu não querer fazer a MINHA versão.
Um naufrágio deixa um garoto num bote salva-vidas com um guepardo.
Na versão original, de Scliar, o garoto era um judeu fugindo da Segunda Guerra, e a história toda é uma alegoria do holocausto. No romance de Martel, o garoto viaja com um zoológico, e sua relação com o tigre questiona a teoria do "bom selvagem". Para mim, coloca-se um adolescente e um grande felino num bote salva-vidas e eu só posso enxergar uma alegoria de descoberta sexual.
Então, na minha versão, o garoto viaja num transatlântico com a família de classe média alta e o guepardo está lá como uma das atrações do navio, um dos "artistas", talvez o primeiro contato e identificação com sua (homo) sexualidade que desperta.
Passando na porta do restaurante, puxado por um domador. Sendo levado a algum palco para nosso entretenimento, ou de volta à jaula. Eu pousei os olhos nele e ele pousou aqueles olhos de pires em mim. Deteve-se por um instante. Um animal à bordo. Animal selvagem. Então com um leve puxão de seu mestre, afastou-se com os olhos ainda em mim.
Naquele instante, eu estava náufrago.
Queria ser levado por ele. Queria ver a vida selvagem – felina ou marítima – queria alguma vida a se debater entre mordidas. Eu era como ele, levado na coleira. Um abrir e fechar de olhos e eu me encontrava com um igual.
Obviamente, quando terminei o conto - de cerca de 30 páginas - remeti ao pai original da ideia, Moacyr Scliar. Que me mandou isso:
Meu caro Santiago, muito obrigado pela mensagem, pelas amáveis palavras e pelo belíssimo conto, que li com o maior interesse e emoção. Realmente, você deu uma dimensão nova à idéia! Para mim é motivo de orgulho que minha história possa, ao menos em parte, ter lhe servido de inspiração. E agora temos um time: jaguar, tigre e guepardo! Imbatível! Aguardo ansioso seu livro. Até lá, receba o grande abr. do fã Moacyr Scliar.
...E que é mais do que eu poderia pedir, tendo sido eu mesmo um moleque que leu Scliar (O Centauro no Jardim) na adolescência, para a escola, e que fiquei tão perturbado, tão incomodado. (Na primeira vez que encontrei Scliar, na Primeira Flip, disse isso pra ele. Mas acho que ele não entendeu que era um elogio...).
Sou eu um dos vivem, respiram, se inspiram e torcem por Scliar.
Obviamente, quando terminei o conto - de cerca de 30 páginas - remeti ao pai original da ideia, Moacyr Scliar. Que me mandou isso:
Meu caro Santiago, muito obrigado pela mensagem, pelas amáveis palavras e pelo belíssimo conto, que li com o maior interesse e emoção. Realmente, você deu uma dimensão nova à idéia! Para mim é motivo de orgulho que minha história possa, ao menos em parte, ter lhe servido de inspiração. E agora temos um time: jaguar, tigre e guepardo! Imbatível! Aguardo ansioso seu livro. Até lá, receba o grande abr. do fã Moacyr Scliar.
...E que é mais do que eu poderia pedir, tendo sido eu mesmo um moleque que leu Scliar (O Centauro no Jardim) na adolescência, para a escola, e que fiquei tão perturbado, tão incomodado. (Na primeira vez que encontrei Scliar, na Primeira Flip, disse isso pra ele. Mas acho que ele não entendeu que era um elogio...).
Sou eu um dos vivem, respiram, se inspiram e torcem por Scliar.
Obviamente, o conto está em PORNOFANTASMA, meu primeiro livro de contos, que sai daqui a uns dois meses, pela Record. O título é "As Vidas de Max", mais do que justificado.
Termino então com um trecho de Beatriz & Virgílio
Termino então com um trecho de Beatriz & Virgílio