24/02/2013


Como se houvesse realmente uma alma a ser libertada, o corpo ascendeu à superfície da água. Gases escapando do pulmão, bolhas à boca. Veio à tona como não conseguiria se ainda vivesse, ainda se debatesse, lutasse contra as ondas buscando uma saída, buscando a luz que vinha de cima, dos lados, onde estava a luz da superfície? Se o corpo ainda vivesse, não saberia, e enquanto dava seus últimos engasgos parecia tão difícil perceber o óbvio: em que direção nadar, para que nadar, como romper aquela linha. Agora que era apenas um corpo, tudo era mais simples. Nem a gravidade a puxar para baixo, nem o desespero a desorientar. Apenas os gases seguindo seu curso, a alma seguindo o fluxo. E o corpo vinha à tona como para zombar de um homem que se afogou.
Boiando com os surfistas, num final de tarde. Acompanhava as pranchas, rabeava-lhes ondas, era despercebido e deliberadamente ignorado, na mesma proporção; não era possível que ninguém não notasse aquilo. Ninguém queria se responsabilizar por um corpo que boiava entre ondas. Marcelo e Benjamin fingindo não ver. Manoel não vendo realmente. Cristóvão espichando o pescoço e se perguntando o que era aquele corpo, que hora vinha, hora sumia, inchado, disforme e esverdeado como um animal marinho. Há de se pensar que surfistas seriam mais solidários, mas ninguém tinha nada com aquilo.
Então, como corpo sem vontades que era, ele abandonou os surfistas. Como corpo sem vontade que era, ele seguiu correntezas contra as quais lutavam homens decididos. Apenas meninos. Um corpo sem vontade se deixou ser levado, como partículas, conchas e lixo.  Enroscou-se em algas, acumulou areia. Levou mordiscadas de manjubas, nos dedos, nos olhos, nas calosidades dos pés. Então se cansou.
O mar o levou até a areia e o deixou lá. O mar recuou e o corpo agarrou-se à areia como o atrito de um surfista que não quer escorregar da prancha, agarrando-se à vida. O corpo ficou lá de bruços. As costas viradas para um sol que já não era suficiente para esquentá-lo. Nenhum sol seria suficiente para esquentá-lo. E as costas permaneceram viradas para um sol que nem esquentariam um corpo vivo. Um banhista vindo à areia, encolhido, retorcido, oferecendo as costas aos pingos esperando que o sol o rendesse e o secasse, não. O sol não esquentaria nem mesmo um verdadeiro banhista e faria com que aquele corpo permanecesse como um pecilotérmico, menos do que um pinguim. Inchando e esvaindo-se após a morte com um pulsar de vida. Pulsando por gases e líquidos e animais marinhos que escapavam e o invadiam. A vida continuava dentro dele, sobre ele, por todos os lados, apodrecendo. 
Há de se pensar que os urubus chegariam primeiro. Ou os siris, os caranguejos, beliscariam sua carne e o limpariam em restos. Mas havia tanto mais naquela praia a digerir. As partículas de vidas, animais esquecidos, aquecidos, pelo sol ressecados, decomposição em estágio avançado. Peixes, pássaros, crustáceos. Qualquer praia é um banquete para necrófagos e os urubus podiam esperar. Antes, o corpo era um autofágico, invadido por si mesmo.
De dentro, fungos e bactérias, larvas e vermes. Todos os silenciosos que sempre habitaram o homem vivente agora se alimentavam do corpo dele, de dentro para fora, de cima a baixo, consumindo o corpo numa luta vencida. Luta perdida. Os vermes que se alimentavam de um estômago que acabaria na boca de um urubu. As larvas que seriam consumidas pelos siris que ainda viriam. O coração na boca de um aquelminto, no estômago de um osteìcte, no bico de uma gaivota.... voando. O corpo em nada interferia. Permanecia com as costas viradas para o sol, como se manteria se ainda tivesse vida, com os mesmos vermes, as mesmas bactérias, a mesma luta dentro de si.
E quem era, o que pensava? O corpo não pensa. Apenas vem à tona, é levado pelas ondas, é consumido e rejeitado e aguarda um local final para atracar. O corpo estava lá. E quisera ser colocado embaixo da terra, cremado, crucificado, ressuscitado em três dias e três noites, não faria diferença. O corpo não tem vontades. Quisesse reencontrar antepassados, uma lápide para ser lembrado, tivesse comprado uma sepultura e escolhido uma música para seu velório, não lhe valeria de nada. E fosse jovem ou fosse velho, em forma ou acima do peso, com traços harmônicos ou desgraçados, não seria possível dizer. Se comeu demais nas últimas semanas. Se voltou a frequentar a academia. Se absteve-se das drogas e da bebida, do cigarro e do açúcar, não faria diferença. Poderia terminar do mesmo modo, terminaria lá.
Com as costas para o pôr-do-sol, os urubus começando a rodeá-lo, não há mais possibilidades para o corpo; ou há uma infinidade de possibilidades, todas fragmentadas. A carne que é repartida entre irmãos. Os ossos que confraternizarão com as conchas. Seus parasitas que viverão novas vidas, novas mortes, os rastejantes microscópicos que encontrarão nova morada. Do corpo resta muito pouco agora. Do corpo não resta quase nada. O corpo tem apenas isso, apenas uma história.  E essa história acabou. 

16/02/2013

TERROR AO TEATRO




Eu sei, muita gente tem. Terror ao teatro. Teatro é aquela coisa chata, insuportável, igual a ler. A diferença é que um livro é fácil largar no meio. Numa peça, você tem de ficar até o fim.

Mas se você insiste um pouquinho, se é de boa família, se tem boa educação, acaba lendo em quantidade e, uma hora, encontra o (primeiro) livro da sua vida. Daí te dá esperanças. Quem não sabe não há mais um? Quem sabe você não reencontra esse prazer de novo. E aos poucos você vai se acostumando a ler - não dá sempre o mesmo prazer, claro que não, mas se torna menos um estorvo. E com o tempo você já aprende a escolher melhor, já sabe o que pode te valer a pena, o que basta simplesmente evitar.

É a mesmíssima coisa com o teatro, embora a maioria das pessoas não passe do primeiro passo. Eu vou bastante, e já aprendi a gostar. Busco sempre um meio termo delicado - não tenho paciência com pecinha alternativa-amadora, mas também não suporto peçona televisiva. O que existe entre elas é arte. E de vez em quando se encontram umas pérolas.

Como a deliciosa peça da minha querida amiga Cléo de Páris, que fui hoje, na estreia, A Nossa Gata Preta e Branca, no Parlapatões. É uma peça divertidíssima, despretensiosa, delicada, feminina e muito engraçada. Grande mérito do texto (que também é da Cléo, da atriz Maria Casadevali e do diretor Tiago Leal) é brincar com esse mundinho teatral, a vida e os valores do ator. Tem muito de auto-crítica e auto-parodia. Adorei.

Vale lembrar que no Parlapatões também voltou em cartaz The Pillowman, que entra facilmente nas dez melhores peças que vi NA VIDA. Mas já falei bem sobre ela aqui: http://www.santiagonazarian.blogspot.com.br/2012/10/o-homem-travesseiro-t-pillowman-e.html



The Pillowman agora está sábado às 20h, domingo às 19h, no Parlapatões. E gosto bem desse teatro, um tamanho razoável, confortável, bom ar-condicionado, e lá na Praça Roosevelt. 


E ainda outra grande dica é Sonata a Kreutzer, do Tolstoy, que tem meu cunhado Ernani Sanchez no elenco. O maior mérito do Ernani é ser pai da Valentina, claro, mas ele ainda é um ótimo ator. (Não aceitaríamos qualquer coisa na família, né?) E a peça é um drama passional louquíssimo, lá no Sesc Pinheiro. Vai que está acabando. 






















08/02/2013

LEMBRANÇAS DE CARNAVAIS PASSADOS


Carnaval 2011, com Renatinha Simões e Cris Lisbôa, numa escuna em Jurerê. Com certeza foi o melhor verão da minha vida. 


Nunca gostei de carnaval. Nunca soube sambar. Samba para mim, só de fossa, samba-canção, ou então aquelas marchinhas antigas. Afinal, sou mau sujeito, ruim da cabeça e doente do pé.

Mas impossível viver no Brasil e não ter lembranças psicodélicas desses feriados. Pra mim fica sempre um clima meio pesado, carregado, afinal é uma festa pagã, coisa de pecador. E revendo agora, é isso de que eu me lembro do carnaval:


- Aos sete, oito anos, eu passava o carnaval com a família em Campos do Jordão, vestido de preto, óbvio, fantasiado de vampiro. Me lembro que naquela época já me incomodava a música "Cabeleira do Zezé", porque eu tinha um cabelo mais compridinho do que o recomendado para os meninos.

- Minha primeira paixão de carnaval aconteceu aos treze anos, num navio rumo à Argentina. Conheci à bordo uma gaúchinha de Passo Fundo e ficamos juntos num namorico infantil em alto mar. Mal saberia eu que NUNCA mais teria uma história de amor à altura...

- Quando eu morava em Porto Alegre, com uns 23 anos, decidi em pleno sábado de carnaval pegar um ônibus para Florianópolis. Achei um hotelzinho muquifo no centro, segui pra Praia Mole, e lá conheci um menino que me hospedou nos próximos dias. Os pais dele tinham uma cadeia de lojas de móveis, e a gente ficou numa das lojas. (Sim, nós usamos algumas camas de mostruário.)

-  Vários carnavais da década passada eu passei em São Paulo mesmo, vários me drogando loucamente, pulando de clube em clube, então não me lembro de muita coisa.

- O de 2003 foi o único que passei no Rio, como se deve. Meu ex chefe de Londres (onde trabalhei como barman em 2002), resolveu conhecer o carnaval carioca e fez questão de que eu fosse com ele, como guia e intérprete, com tudo pago. Fomos nas festas, bloquinhos de rua e tudo mais. Não tenho vontade de voltar. Para mim, o melhor foi ficar hospedado no Hotel Glória, tomando caipirinhas na piscina.

- Falando em bebidas na piscina, esse também foi o tom do carnaval de 2009. Meu namorado na época trabalhava com a Cris Lisbôa na revista Simples, e eles armaram um ensaio fotográfico no Hotel Ca'doro, aqui no baixo Augusta, que estava deserto. Foi um carnaval meio surreal, tomando champagne na piscina de um hotel fantasma, aqui do lado de casa.

- Carnaval do ano passado eu ainda estava na Finlândia, e passei na Lapônia, cruzando o mar congelado e comendo carne de rena. Foi o mais gostoso da minha passagem por lá.


Carnaval passado, em Kemi. 

Este carnaval eu pulo. Ou melhor, não pulo, vou meio que ignorar. Muito trabalho, pouco dinheiro, e ainda estou meio traumatizado do reveillon em Floripa. O pulo deve ser só na casa de campo dos Nazarian, alguns desses dias. Mas levo uma playlist de marchinhas.

06/02/2013

VELHICE



Demorei para ver o (mais uma vez estupendo) filme do Haneke, Amor. Não estava com paciência para ver "filme de velho", e a definição pode ser tola mas não há definição mais precisa. Amor é um "filme de velho" cruel, lento e mais demonstrativo do que realista.

Um casal encontra-se na situação perfeita da "melhor idade". Tiveram uma vida plena, filhos, testemunham o sucesso de seus alunos de piano. Não têm problemas financeiros, são eternamente apaixonados e aproveitam a vida juntos. Daí surgem os problemas de saúde. Ela tem de realizar uma operação, e à partir disso seu quadro só piora. Ele se dedica a cuidar integralmente dela, sendo fiel à promessa de não levá-la de volta ao hospital ou colocá-la num asilo. E é isso. 

Haneke monta um quadro perfeito para discutir as questões da velhice, da saúde e, claro, do amor. O filme é lento, triste e traz mais questionamentos do que respostas, como qualquer bom filme deveria fazer. 

Me fez pensar muito na história do Walmor Chagas, e numa opinião que eu postei no Facebook há algumas semanas. Ele estava velho, doente, debilitado, preferiu acabar com a vida. Muitas pessoas lamentaram como se não fosse a melhor saída, como se não fosse uma boa saída, como se o melhor fosse ele aceitar entrar em estágios cada vez mais dementes, degradantes, vegetativos. Não foi melhor acabar com tudo antes?

É uma moral muito cristã, apegar-se tanto à vida, mesmo diante das circunstâncias. Na discussão do FB, uma amiga me colocou que "ninguém acaba com a própria vida se não estiver com um quadro grave de depressão", e eu concordo. Mas daí é questão de se pensar o quanto a depressão tem de realismo, de enxergar as coisas como as coisas são. Talvez se Walmor Chagas estivesse devidamente medicado contra a depressão, teria sido mais otimista. Mas quem pode dizer que esse otimismo induzido quimicamente não é uma ilusão, que teria sido melhor ele aceitar sua degradação física e mental?

Ecoando os pensamentos do filme, minha mãe sempre diz que prefere morrer antes que os filhos a vejam caquética, babando. Que ela não quer que os filhos fiquem com uma imagem degradada de quem ela foi. Na verdade é apenas um aprofundamento do bordão "Die Young, Stay Pretty," que também tem seu sentido. 

Em algumas culturas - como entre os esquimós - o final da velhice é visto como uma aceitação para o suicídio. Esquimós idosos são abandonados sozinhos na neve, morrendo de forma resignada. Mas acho que não é preciso ir tão longe... Bom, quando EU estava abandonado na neve, na Finlândia, tudo o que eu pensava realmente era em me matar. Recuperei certa esperança na vida, mas não a ponto de pensar "que bobagem, quem diria que há um ano eu só queria me matar." Não acho que eu teria perdido muita coisa. E teria sido um ótimo, ótimo final; imagine: "morreu aos 34 anos, afogado, jogando-se no Mar Báltico". Garantiria o futuro da minha obra - ah-há!

Acho engraçado, mas não é brincadeira. 

Se eu fosse atropelado hoje, assim, por acaso, as pessoas talvez dissessem: "Ele ainda era tão novo, tinha tanto a viver." Mas não acho que ninguém precisaria se lamentar. Eu já tive uma ótima vida, já fiz basicamente tudo o que eu queria - se terminasse hoje, eu não teria o que lamentar. Só que certamente Morrer no Mar Báltico seria melhor do que atropelado na Paulista... (Ou velho e cancerígeno numa cama de hospital). 

Essas reflexões sempre me fazem lembrar da Leila Lopes, sem zoeira - sabe a atriz que era global, tornou-se um viral na internet, depois fez filme pornô e se matou? Para mim a carta de suicídio dela faz um sentido absurdo, ainda que esteja carregada de uma fé cristã. Alguns trechos:


"Eu decidi que já fiz tudo que podia fazer nessa vida. Tive uma vida linda, conheci o mundo, vivi em cidades maravilhosas, tive uma família digna e conceituada em Esteio, brilhei na minha carreira, ganhei muito dinheiro e ajudei muita gente com ele. (...) É preciso coragem para deixar esta vida. Saibam todos que tiverem conhecimento desse documento que não estou desistindo da vida, estou em busca de Deus. Não é por falta de dinheiro, pois com o que tenho posso morar aqui, em Floripa ou no Sul. Mas acontece que eu não quero mais morar em lugar nenhum. Eu não quero envelhecer e sofrer. Eu vi minha mãe sofrer até a morte e não quero isso para mim. Eu quero paz! Estou cansada, cansada de cabeça! Não aguento mais pensar, pagar contas, resolver problemas... Vocês dirão: Todos vivem!!! Mas eu decidi que posso parar com isso, ser feliz, porque sei que Deus me perdoará e me aceitará como uma filha bondosa e generosa que sempre fui."

Voltando ao filme do Haneke, talvez exista uma mensagem implícita de que a melhor morte possível seja por amor. É um jogo difícil, talvez utópico, porque todo mundo morre sozinho. Pensa-se nesses casais ideais (como no filme) que vão morrer juntos, velhinhos... Mas geralmente é assim, 50 anos de casados, o marido se vai antes da mulher, a mulher passa os últimos dez anos da vida só de lembranças... Não há escapatória da solidão. 

Daí me lembro de outro belo, belo filme, dirigido pelo Dominique Derudere. 



Fugindo de uma suíte de hotel, após cometer um assassinato, um michê se esconde na "Suite 16", onde mora um velho paraplégico. Inicialmente o velho é feito de refém, mas aos poucos a situação vai se invertendo. O velho se alimenta da companhia, atenção e juventude do michê, e passa a dominá-lo maquiavelicamente, gerando até uma relação de amor doentia. É um dos meus filmes favoritos, altamente wildeano, inclusive com uma citação do verso:

Yet each man kills the thing he loves,
By each let this be heard,
Some do it with a bitter look,
Some with a flattering word,
The coward does it with a kiss,
The brave man with a sword!

(de "Ballad of the Reading Gaol", Oscar Wilde).

Para terminar de uma forma um pouco mais otimista, e para demonstrar que eu ainda tenho certa esperança, coloco trecho de algo que escrevi há pouco tempo, trecho de um romance, que sabe-se lá se algum dia verá a luz do dia:

"Trinta e cinco anos é uma idade delicada; num abrir e fechar de olhos, a juventude se vai, se  esvai. Mas mantendo os olhos bem abertos, é possível prolongá-la um pouco mais, só mais um pouquinho, uma última chance. Sentia-se assim, naquele verão, o último verão, última chance, de ser jovem, surfista, saudável e em forma. O mar moldava, o sol esculpia, o sal, os mariscos, as opções de ser feliz e tão poucas alternativas. Há uns bons três verões que ele achava que não mais poderia. Mas nesse último, nesse agora, no que acabara de passar, aproveitou ao máximo as últimas possibilidades de seus trinta e cinco anos, num abrir e piscar de olhos. Uma idade delicada."


04/02/2013

O ÚLTIMO BEIJO




Não se lembra do primeiro beijo? Engraçado, eu acho. Talvez tenha acontecido há muito tempo, eu entendo, muitos outros beijos acumulados. Uma segunda experiência mais impactante, uma iniciação traumática. De repente você era tão novo, tão criança, no tanque de areia, no playground, atrás da moita, que se confundia ainda com um peito desmamado. Uma menina um pouco mais atrevida, um menino mais delicado. Só uma troca por uma bolacha recheada de morango...


Ou esse primeiro beijo não foi um beijo realmente? Um selinho de tia, brincadeira de prima, um sopro pós afogamento, na praia, para lhe devolver a vida. Eu esqueceria. Afinal, quando você se tornou consciente, capaz de se lembrar realmente, o beijo perdeu sua maciez etérea, sua imprecisão inocente. O beijo áspero dos barbados. Lixa contra lixa, rasgando sua boca. O beijo se tornou só uma desculpa. Muita coisa veio depois e o beijo se fragmentou lá atrás, lá embaixo, por todos os lados. Até onde vai apenas o beijo? Quando chega a ser transmissor, comprometedor, perigoso e irrefreável? Eu quero um beijo seu. Por que você iria me negar?


Quando será seu último beijo? Você não sabe, e não se lembrará. Ninguém se lembra, mas ele pertencerá a alguém [pertencerá a mim!]; com quem ficará seu gosto, quando você não puder mais beijar? Um salva-vidas mal-sucedido. Um namorado zeloso no hospital. Um ex-namorado piedoso, com você já velho, ressecado, lábios enrugados impossíveis de beijar. Por favor, não vá tão longe, você deveria dar esse beijo ainda hoje. Quando foi seu primeiro beijo? Eu queria tanto ter estado lá...


Você fecha os olhos, para eu lhe roubar. Você abre a boca, para eu invadir. Ainda não estou certo de que é a hora – é este o final? É assim que vai terminar? Escolheu a música, escovou os dentes, passou religiosamente o fio dental? Quero entrar em suas cavidades, sugar-lhe ouro e prata, latejar-lhe em gengivite, fazer sua mucosa sangrar. Não sei onde sua boca esteve, não sei qual foi seu primeiro beijo. Mas seu último beijo é isso, é meu, isso você não pode negar. Abra a boa. Feche os olhos. Sinta o gosto, é o último que você vai sentir. Gengivas sangrando ou bolacha de morango, que seja, toda sua história do beijo agora é minha. Seu último beijo é meu.

(Publicado na revista Júnior, de novembro de 2012). 


NESTE SÁBADO!