08/05/2015

MINHA AVÓ

Dona Zília e eu, anos atrás. 

Hoje fui ao asilo visitar minha avó que acabou de fazer 89 anos. Levei lírios. 

"Vó, sei que talvez seja tarde para contar isso, mas não poderia deixar a senhora partir sem saber realmente quem é seu neto. Eu... eu sou gay."


Comprimindo os olhos, ela diz. "Não posso entender tudo o que se passa no mundo de hoje. Mas para mim você será sempre a mesma pessoa, meu neto."


Eu me aproximo para dar um abraço e um beijo. Ela estende a mão. 


"Não vamos exagerar, né? Sabe-se lá onde você pôs essa boca..."


Postei ontem de noite esse texto no Facebook. Acordei com centenas e centenas de polegares, comentários e compartilhamentos, que continuam crescendo.

Santiago, você é um cara gente boa demais. Não é de se estranhar que sua avó também seja assim.
Lindo momento esse que vocês dois tiveram

Vó sendo vó. HAHAHAHAH

Gay é um rótulo estranho. Vc é sim um ser humano maravilhoso . E vc acha que ela não sabia? Ela é uma graça!

Fofa pela aceitação e sábia por suspeitar do beijo hahahahaahahahaah

Muito forte essa história! Mostra bem - e com humor - as contradições nossas em lidar com as diferenças… de ambos lados, neste caso. Parabéns por contar publicamente, Santiago Nazarian!

Longe de ser uma história verídica...

Minha avó vem de família armênia, tradicional, conservadora. Nunca trabalhou.Viveu sempre com conforto rodeada de empregadas - "Ninguém pode dizer que sou racista porque todos meus criados são de cor" - é uma das frases antológicas que de fato ela verbalizou. Depois que meu avô morreu, há mais de vinte anos, ela passou a vida viajando pelo mundo (ou pelo "primeiro mundo"). Até que o corpo e a cabeça começaram a deteriorar e ela foi ficando mais e mais trancada em seu apartamento no Itaim Bibi.

Há pouco mais de um mês ela se mudou para um "asilo". Ou uma casa de repouso de luxo, de fato. Os filhos agora se desfazem de um apartamento acumulado de relíquias, recortes de jornal do século passado, moedas mortas, francos, liras, cruzados novos. A empregada que estava há mais tempo com ela - mais de quarenta anos - morreu três semanas depois de ser dispensada - diagnosticada e morta de câncer nesse curto espaço de tempo. Minha avó resiste aos 89.

Nunca falei abertamente com ela sobre minha sexualidade - porque jamais poderia falar de qualquer sexualidade com minha avó. Lembro de uma vez que, criança, levei um tombo e falei rindo "ai, minha bunda!" Fui reprovado por ela por falar uma "palavra feia". Minha avó deixou de assinar a revista Caras porque tinha muito anúncio de lingerie...

Ontem fui visitá-la no "asilo", levei flores (não levei lírios, que são para enterro), conversamos amenidades. Ela falou dos bisnetos, minha sobrinha ("tão loirinha"), surpreendi-me até de ela achar interessante poder ter um bisneto mestiço (uma prima minha acaba de se casar com um japonês).

A história sobre a "confissão" é apenas uma história. Inspirada pela declaração do Ziraldo, claro. Declaração infeliz, sem dúvida, homofóbica, mas de um senhor de 82 anos, de outro tempo. Reforça a reflexão de que um escritor, um artista, não precisa dar a opinião sobre tudo, não importa tudo o que ele pensa, e que caráter não tem nada a ver com talento.

Só não digo que continuo admirando Ziraldo como artista porque... nunca admirei. Sempre achei os livros dele um porre. Desde criança. (Com a Ruth Rocha - a crucificada da semana passada por falar mal de Harry Potter - já é diferente. Lembro bem Marcelo, Marmelo, Martelo como uma de minhas primeiras leitura prazerosas.)

Mas digo que continuo admirando Lobão como compositor, por exemplo. Só deixo de ouvir as merdas que ele fala de política.

Voltando à história da avó, me surpreendeu a repercussão. Acho que tem um pouco a ver com o momento, a ligação com o Ziraldo. E o povo gosta de uma história de aceitação, ainda que torta. (Se fosse mais piegas, talvez gostasse ainda mais.) Jamais seria aquela a reação da minha avó. Ela jamais entenderia ou aceitaria, mesmo tortamente. Mas eu continuarei visitando-a com flores, até chegar a hora dos lírios.

No final, a repercussão desse post me lembrou a história do JT LeRoy (de que já falei tanto aqui), da autora Laura Albert, que criou um personagem fictício, com uma história biográfica de sucesso, que fez sucesso por acreditarem ser real. É o "Paradoxo de LeRoy". Ao mesmo tempo em que ela se orgulhava de sua história, não podia assumir a autoria, pois revelada como "história" não teria o mesmo impacto. "A realidade é mais interessante do que a ficção" é uma falácia em que os não-ficcionistas querem acreditar.

Conversando com Laura "LeRoy" Albert. Grande autora. 

TIREM AS CRIANÇAS DA SALA

(Publicado na Ilustríssima da Folha deste domingo) Do que devemos proteger nossas crianças? Como não ofender quem acredita no pecado? Que ga...