18/09/2015
QUE HORAS EVA VOLTA?
Há poucas semanas, publiquei aqui no blog a microcrônica (argh!), Eu Não Bato Panela, que retrata uma realidade que poderia ter visto no filme de Anna Muylaert, mas que conheço a vida toda, então descrevi mesmo antes de ver o filme.
Cresci em casa com empregada - na maior parte do tempo, duas empregadas que moravam no quartinho dos fundos. Não usavam uniforme, eram "praticamente da família", uma delas, a Eva, era minha "mãe preta", assim se chamava. Grande, gorda e negra, cuidava de mim e de minha irmã enquanto minha mãe trabalhava fora.
Apesar do tratamento humano, era uma típica relação patrão-empregada, a qual hoje se vê cada vez menos. Para mim, na infância e adolescência, era normal. Para as empregadas, devia ser ainda mais.
Anos depois, morando sozinho, trouxe uma antiga faxineira de casa, a Antônia, para fazer limpezas semanais. Era de confiança, ela limpava e eu cozinhava, ela comia na mesa comigo, mas estava longe de ser "da família". Tentei manter com ela uma relação profissional, e fracassei miseravelmente. Antônia "não sabia o seu lugar."
Quando me mudei para Florianópolis, descobri que Antônia, cearense com mais de 60 anos, nunca tinha visto o mar. Convidei-a para passar um final de semana comigo, passagem paga, hospedagem na minha casa. Antônia relutou em "viajar com o patrão". Aceitou sem entender muito bem o que deveria fazer, se deveria trabalhar. (Contei tudo aqui)
Antônia voltou a trabalhar na minha casa quando voltei a morar em São Paulo. E já não funcionava mais. Começou a vir quando eu dizia para não vir. Passou a pegar escondido roupas minhas e levar para sua casa, para lavar. Um dia, voltando de uma viagem, encontrei-a limpando meu apartamento num dia não combinado, sem receber seu salário. Discuti que não era para ela vir assim. Ela nunca mais veio. Liguei na semana seguinte e ela não atendeu. Depois deixou recado que não viria mais.
A verdade é que a relação com empregada doméstica é algo difícil de administrar. Mora na sua casa, mas não é da família. Busca-se uma relação estritamente profissional, mas é impossível não ter uma relação pessoal com quem vive com você. Não acho um relacionamento saudável e desde então desisti de ter faxineira em casa - até porque não trabalho fora. Estou longe de dar conta da limpeza da casa, mas também não dou conta de alguém passando aspirador enquanto escrevo.
Na Europa ninguém tem empregada em casa, isso é exaustivamente repetido, e é verdade. Verdade também que em geral as casas não são tão limpas, tão arrumadas. Lembro de meu apartamento em Helsinque, que eu até conseguia manter mais limpo do que aqui, mas lá as janelas não abriam, não entrava poeira, eu não tinha tantos livros, tantas coisas, a cozinha tinha uma lava-louças, o frio escandinavo tem menos germes...
Penso em tudo isso semanas depois de assistir a "Que Horas Ela Volta?" de Anna Muylart, belíssimo filme que ainda ecoa por aqui. Tudo é muito identificável - tanto que no começo fiquei na dúvida se a casa usada de locação era a antiga casa de um tio, no Morumbi. As atuações estão todas estupendas, incluindo a do meu querido amigo Lourenço Mutarelli, embora eu ache que a ótima atuação de Regina Cazé destoe um pouco (no registro cômico) do resto do elenco.
Minha avó foi dessas também que viveu a vida toda com empregadas, que usavam uniforme, vinham quando ela tocava um sininho (!); "ninguém pode dizer que sou racista porque todos meus criados são de cor", é uma frase clássica real dela. Meses atrás, teve de ir morar numa casa de repouso. As empregadas foram dispensadas. Clarice, que trabalhava há mais de quarenta anos com ela, foi diagnosticada com câncer e morreu em poucas semanas, depois de sair da casa. Para mim foi o símbolo de uma estranha simbiose, que já estava com os dias contados.