16/12/2016

BEIJOS DO GORDO





Termina hoje o já "lendário" Programa do Jô, um talk show que estabeleceu um novo formato aqui no Brasil. Desde o final dos anos 80, quando estreou no SBT, mudou pouco, mas despertou todo tipo de reação, de cultuado a ridicularizado, de entretenimento cabeça a besteirol descartável. Apesar da produção requintada, os méritos todos sempre estiveram com Jô Soares. O programa era dele e era ele. Ele que conduziu milhares de conversas. Levantou centenas de carreiras, e também foi muito criticado por sua vaidade; constantemente parecia querer usar o entrevistado de escada para suas (requentadas) piadas. Porém não se pode negar o mérito de alguém que fazia três entrevistas por dia, trazendo desde personagens do povão até a alta intelectualidade.

Se a soberba intelectual do Jô por vezes gritava, hoje os talk shows são entregues à celebração da ignorância. Não temos ninguém com a gama de repertório para substitui-lo (nem parece mais haver espaço para isso). Bem ou mal, era o espaço mais democrático para a literatura (e as artes em geral) na TV aberta.

Hoje pipocaram entre meus amigos do Facebook fotos, lembranças e histórias de suas entrevistas no Programa do Jô. Foi um divisor na carreira de muitos e não posso negar que tenha sido na minha. Estive lá quatro vezes, além de uma reprise. E agora me pego lembrando de tantas histórias de bastidores…

VAMOS AOS PODRES!!!


- Quando estreou, no final dos anos 80, minha mãe era uma grande fã. Chegou a comprar uma televisãozinha PB de dial (eternizada em BIOFOBIA) para assistir as entrevistas na cama. Lá por 2011, 2012, quando ela tinha publicado seus primeiros livros, ela foi convidada, mas recusou. Dona Elisa é uma escritora reservada.

- A primeira vez que eu estive lá, na verdade, foi provavelmente 96 ou 97, como plateia, assistindo com minha faculdade.

- Fui gongado duas vezes antes de participar. A primeira vez foi em 2003, logo após lançar meu primeiro livro, a segunda foi em 2005, lançando Feriado de Mim Mesmo. Funcionava assim: a produção ligava e fazia uma pré-entrevista para ver se rendia para o programa. Duas vezes disseram sem rodeios: não rende, não tem graça - a produção nunca foi das mais simpáticas comigo. Uma semana depois dessa segunda dispensa, em 2005, ligaram de volta dizendo que o Jô havia insistido para fazer. Foi assim que rolou da primeira vez.

- Essa primeira entrevista, talvez por eu ser novidade, talvez por ser um belo jovem varão, talvez pelo programa estar mais em alta na época, foi um verdadeiro divisor de águas para mim. No dia seguinte eu estava recebendo ligações, convites e xingamentos. Na série de reprises do programa que a Globo exibia no ano seguinte, fui a primeira entrevista reprisada.



- Voltei em 2006, com o lançamento de Mastigando Humanos. Foi minha pior entrevista lá. Entrei depois de dois blocos loooooooongos da Suzana Vieira apresentando seu novo marido, que na época era aquele policial cafajeste que já morreu. Entrei tarde pra caralho, a conversa foi curta e o Jô basicamente queria repetir a entrevista que havia feito comigo no ano anterior. Por sorte, essa é a única das minhas participações no programa que não pode ser encontrada no Youtube. (Eu mesmo também não tenho nenhum registro).

Isso é tudo o que tenho de registro dessa segunda entrevista. 

- Falando em Suzana Vieira, os 5 minutos que estive nos bastidores com ela, destratando toda a produção, foram suficientes para considerá-la a pior pessoa do mundo.

Com Ale Matos, esperando para entrar. 

- Minha terceira entrevista foi para o lançamento de O Prédio, o Tédio e o Menino Cego , em 2009. Foi uma entrevista suave, sem grandes percalços, mas sem grandes repercussões.

Mas eu tava bonitinho, né?

- A última vez que estive lá foi em 2011, no lançamento de Pornofantasma. A entrevista estava marcada para semanas na frente, mas anteciparam num dia de tempestade e alagamento em São Paulo, com aeroporto fechado e muitos convidados não conseguindo chegar ao estúdio. Me ligaram em cima da hora, não pude nem me depilar... Talvez por isso senti o Jô meio despreparado, talvez um pouco velhinho, meio pescando. Mas quando terminou a entrevista ele disse: "Você sabe que gosto muito de você, né?" Fiquei enternecido.



- Sem dúvida o programa lançou meu nome para um grande público, mas não sei se refletiu muito na venda dos livros. As entrevistas também me venderam mais como um personagem bizarro - ex-escritor de disk sexo, performer de auto-mutilação, barman de "prostíbulo gay"- do que como escritor. Ainda assim, tenho de reconhecer que sempre deram espaço para eu falar dos livros, ainda que não tenha sido o que mais atraiu a audiência...


- Nunca houve nenhum corte em nenhuma das entrevistas. O que eu falei foi integralmente no ar, como se fosse ao vivo (embora as entrevistas todas fossem gravadas durantes as tardes de segunda, terça, quarta e quinta).



- Meu contato com o Jô também foi quase integralmente só o que foi ao ar, tirando alguns segundos pós-entrevista de "obrigado, volte sempre". Ele não costumava receber convidados no camarim, você só o vê quando vai ao estúdio. Fora isso, eu o encontrei uma vez numa galeria de arte e uma vez no show do Rufus, mas foram só rápidos cumprimentos.

- Os acompanhantes que foram comigo nessas quatro entrevistas foram: 1a) Daniel Luciancencov, meu namorado na época e fotógrafo da capa do Feriado de Mim Mesmo. 2a) Marco Túlio, ilustrador do Mastigando Humanos, e minha amiga escritora Cris Lisbôa. 3a) Alexandre Matos, ilustrador de vários dos meus livros. Na 4a vez fui sozinho.


- Participei de  vários outros programas (Galisteu, Monique Evans, Peréio, Metrópolis, Edney Silvestre, Dr. Kurtzman), mas nunca foi um EVENTO como esses e nunca teve um décimo da repercussão.

- E não, nunca paguei nada para participar do programa, obviamente. Muito menos as editoras, que mal investem nos convites das noites de autógrafo.

- Claro que não consigo assistir aos vídeos das entrevistas. Não me arrependo de nada, mas é outro eu lá, fico constrangido.

Termino orgulhoso de ter feito parte, agradecido ao querido Jô, melancólico por saber que ficou no passado... O que será hoje dos belos jovens novos existencialistas bizarros?

Bem, provavelmente é a vez do Youtube.

Beijo no gordo. 



01/12/2016

QUE MERDA DE ANO...


Essa foi minha grande viagem de 2016.

Não deu para ser feliz em 2016...


Em Florianópolis, em maio. 

Ano passado muita gente já reclamava da crise, mas consegui surfar razoavelmente, viajei para a Armênia, Europa, fechei alguns projetos bacanas, realizei uma dúzia de eventos que mantiveram as contas sob controle.

A virada até que foi tranquila, só eu e Murilo na casa de campo da minha mãe.
Bowie morreu logo no começo, e escrevi um conto na Ilustríssima inspirado nele. Mas foram poucas colaborações na Folha este ano. 

Este ano começou com muito trabalho e pouco dinheiro, terminou com pouco trabalho e nada de dinheiro. Pouquíssimas viagens; não deu para conhecer nenhum país novo, nenhum país velho. Passei meses, meses, literalmente trancado em casa. Enquanto isso, recebia as piores notícias lá de fora: Golpe, Dória, Trump, uma crise e um conservadorismo crescentes que tornam as perspectivas futuras nada animadoras.

Carnaval em SP mesmo, em companhia de grandes autores: Joca Terron, Rodrigo Lacerda, Ivam Marques, Lourenço e Lucimar Mutarelli, Ivana Arruda Leite, Xico Sá, Ronaldo Bresane, Tati Bernardi, Marcelino Freire, Andrea Del Fuego, Adilson Miguel e Noemi Jaffe. 

Meu aniversário este ano foi low-profile. Demos de turistas por São Paulo, fomos ao zoológico e ao (restaurante armênio) Casa Garabed. 

O namoro foi tranquilo, suave como sempre; no segundo semestre Murilo se mudou para cá; agora se prepara para abrir um restaurante no litoral, então está com um pé em cada lugar. Acho que nosso companheirismo que me fez suportar, ainda que os dois estivessem na merda, cada pequena conquista de um servia para ajudar o casal. Por sorte não somos daqueles, tão típicos, que afundam um ao outro... Ao menos, não ainda.

A nova família brasileira. 

E teve também a Gaia, minha nova coelha. Desde a morte da Asda, queria adotar. Consegui no começo do ano. Gaia veio arisca, distante, educada; tornou-se das coelhas mais carinhosas... e abusada. Destruiu metade da casa, mas impediu que eu me destruísse. Carente ao extremo, não larga um segundo do meu pé, e se não dou atenção vai destruir o sofá, vai comer os fios do computador. Não tem jeito, já é a dona da casa.



Fora o coelho, fora o amor... só o Playstation salva. Devo muito da minha sanidade ao Monster Hunter Freedom Unite, jogo antiguinho para o PSP. Baixei sabendo que era das coisas mais viciantes, pensando em preencher o tempo enquanto esperava as editoras ressuscitarem, ventos moverem moinhos; consegui queimar dias e dias em que eu poderia estar lendo, poderia estar trabalhando, poderia estar ajudando crianças carentes, mas preferia estar em coma.

Tigrex.
(O jogo é um RPG de ação, em que você é um caçador de monstros e tem que criar todo o equipamento, planejar a caçada e sair atrás de criaturas que vão de unicórnios a gorilas e dragões gigantes. Com alto grau de detalhismo, você tem até uma fazenda para cultivar ingredientes, tem de se preocupar com o que vai comer antes das expedições; cada monstro em si tem uma personalidade própria, você precisa aprender seus movimentos, suas reações; enfim, é um jogo que exige centenas e centenas de horas de dedicação... Aproveitei bem, tornou-se certamente meu game favorito de todos os tempos; e ainda não terminei.)

(Você vê, essa foi a grande viagem do meu ano...)

Teve também um pulo rápido em Campinas, em debate com Marcelo Maluf, Andrea del Fuego e Luiz Brás



E Campo Grande, com Douglas Diegues e Anelia Pietrani.

As perspectivas para 2017... são as piores. Tem livro novo sim, romance, já entregue, nas prés, ainda sem data para o lançamento. Mas há muito que os livros não mudam nem minha vida, quanto mais o país, a crise, o aquecimento global...


Debate com Raphael Montes e Rogerio Pereira, na Bienal, em agosto. 


Reveillon será em Maresias, onde Murilo agora trabalha. Mas talvez volte antes por aqui. 

Balada Literária, semana passada, com Ricardo Dalai Lima, Jeanne Callegari, Patrício Júnior e Ramon Mello. 

27/11/2016

OS MELHORES FILMES DE TERROR DE 2016



Terror foi o que não faltou em 2016. E se a crise minou minhas viagens, minha felicidade, consegui ver bons filmes que Murilo arrumou para nós.

A lista, como sempre, é algo extremamente pessoal. Eu tenho aquele gosto pelo terror alternativo, e alguns dos melhores filmes são na verdade péssimos, mas pelo menos acrescentam, trazem algo de novo.

Alguns que saíram este ano (como “A Bruxa”) eu já tinha visto e colocado na lista do ano passado e alguns que vi este ano são um pouquinho mais antigos, mas todos razoavelmente recentes; acho que serve como uma lista em ordem aleatória de boas tendências do terror atual. Vamos lá:

TRASH FIRE


Mistura de comédia hipster com thriller. Com uma gravidez acidental, uma jovem tenta salvar seu relacionamento conhecendo a família do namorado. Encontra uma avó maníaca religiosa e uma irmã sociopata, sobrevivente de um incêndio. Do mesmo diretor de “Excision”, que está se especializando nesse terror moderno, esquisito e descolado.


HEADLESS

Este é um daqueles: melhores-piores, terror ultrahardcore semi-amador, realizado por financiamento coletivo. Não tem muita história: é um assassino mascarado que mata mulheres, corta cabeças, come seus olhos, entre flashbacks de sua infância de abusos. É um spin-off de “Found” (que postei aqui ano passado). Vale pela ousadia, os efeitos asquerosos de maquiagem e, acima de tudo, o clima surrealista com toques de cinema de arte, apesar das atuações sofríveis.

NINA FOREVER


Comédia de humo negro bizarra, em que uma mulher morta aparece literalmente como um fantasma para atrapalhar o novo romance de seu namorado. A idéia é ótima, mas perde um pouco de fôlego no decorrer do filme. Ainda assim, é um filme bem diferente e, de certa forma, bonito.  

EMELIE


Dos melhores da lista. Três crianças são deixadas com uma nova babá, que é uma psicopata sequestradora de crianças. As motivações dela, depois de reveladas, são um pouco frustrantes. E a conclusão é meio “fuem”, mas a tensão se mantém por grande parte do filme e o elenco mirim é sensacional.

BONECO DO MAL


Ok, esse é dos mais comerciais da lista, e muito criticado. Eu pessoalmente me surpreendi bem com a revelação final e com “o monstro” (sem dar grandes spoilers aqui). A história é aquela: uma mulher é contratada para tomar conta da casa e de um boneco, que os donos tratam como filho. Inicialmente descrente, aos poucos ela começa a acreditar que o boneco está vivo.

THE ONES BELLOW


Outro dos grandes filmes da lista. Uma mistura de “A Mão que Balança o Berço” com “O Bebê de Rosemary”. Um casal esperando um bebê se torna amigo de vizinhos na mesma situação. Quando a vizinha perde o bebê num acidente, se estabelece um relacionamento doentio e paranóico.

SACRAMENT


Daqueles bem discutíveis, meio trash, mas com escolhas ousadas e diferentes, como o casal de protagonistas gays. Um grupo de amigos viajando de férias acaba numa cidade de maníacos religiosos. Basicamente um terror de gays X evangélicos.

CREEP


Acho que seria esse o melhor de todos. É um found footage, ok, mas se justifica. Um cara é contratado para gravar um vídeo com um paciente terminal de câncer, que quer deixar um registro para o filho. Aos poucos vai percebendo que a doença de seu cliente é outra, e ele tem de sobreviver a um relacionamento obsessivo. Filme esquisito, perturbador, com um final matador.

THE INVITATION


Outro daqueles filmes inquietantes de paranoia e fanatismo religioso: temas que parecem bem propícios ao terror atual. Um grupo de amigos se encontra depois de muito tempo num jantar na casa de um deles. O ex-namorado da anfitriã suspeita de que haja intenções sinistras por trás, e traumas do passado podem vir à tona.

THE NEON DEMON


Esse dividiu opiniões... ou foi considerado uma merda mesmo. Filme do diretor de “Drive”, mostra a escalada de uma nova modelo, que desperta inveja em suas colegas. É pretensioso, poser, forçado, mas me conquistou pelo final trash e cínico. Merece ser visto.

THE GOOD NEIGHBOR

Dois amigos decidem “trollar” o vizinho, um velhinho solitário, fazendo-o acreditar que sua casa está assombrada. Aos poucos, começam a suspeitar de que o velhinho pode guardar segredos ainda mais assustadores. Surpreendente e com um ótimo elenco jovem.



21/11/2016

CAIO



Porto Alegre, 10 de março de 1965.


Queridos pai e mãe: 
Estive muito doente, tive que passar uns dias na enfermaria. Quero que a senhora imagine o que senti ao me ver sozinho naquele quarto frio e enorme. Cada passo que ouvia no corredor pensava que era a senhora chegando; cada riso de criança que vinha lá de fora eu julgava ser a Márcia ou a Cláudia. Confesso que tive vontade (e tenho) de morrer.

Tive muita febre; o seu Hélio veio aqui e viu bem como eu estava.

Os guris daqui me tratam muito mal, vivo sozinho. À noite choro muito. Só penso em ir embora daqui; maldita hora que quis vir pra cá.

A senhora vai dizer que isso é normal, etc... Mas não é não! Os outros que chegaram junto comigo já estão adaptados.

Há várias noites que quase não durmo e tenho pesadelos horríveis. Acho que até emagreci, ando sempre com olheiras e não como nada. 

Sinto uma falta imensa de todos aí, principalmente da senhora. A coisa que mais desejo é ir embora daqui.

O quarto é muito frio e à noite entra vento pela janela. 

(...) Estou com muita dor de cabeça, tive uma tontura há pouco, nem se sei forma sentido o que estou escrevendo.

Não seria possível ir embora daqui?

(...) Por favor, mãezinha, não me deixe só! Responda logo. Agora é que descobri o quanto gosto disso aí. Gosto muito da senhora. Ajude-me!

Os professores são uns animais; não entendo nada e acho que vou rodar no fim do ano. 

Trechos de uma carta de Caio Fernando Abreu aos seus pais, de quando ele tinha dezesseis anos, publicada no livro da correspondência dele, organizado por Ítalo Moriconi (Aeroplano). (Imagino que, na época em que foi escrita, a doença toda era mais drama e chantagem emocional do que qualquer outra coisa... o que não deixa de ser lindinho.)


Esta semana começa mais uma Balada Literária. E o homenageado do ano é (o escritor gaúcho, morto em 1996) Caio Fernando Abreu. Estarei lá debatendo sobre a obra dele numa mesa na quinta, aqui:

Caio 3D - 24 de novembro, Itaú Cultural, 17h:
RICARDO DALAI LIMA
conversa sobre a obra
de Caio Fernando Abreu
com os escritores
JEANNE CALLEGARI , PATRÍCIO JÚNIOR ,RAMON NUNES MELLO
e SANTIAGO NAZARIAN










Caio é um dos pilares da minha formação como autor, que eu descobri na adolescência, enquanto descobria minha própria homossexualidade e começava a exercitar meus primeiros escritos. Foi uma grande influência em ambos.

Há muito tempo não o lia; sinceramente, peguei certo bode daquele ultra-sentimentalismo orgânico (eu mesmo acabei seguindo para uma escrita absolutamente anti-sentimental); porém semana passada peguei alguns livros dele de volta para me refrescar, e consigo compreender totalmente o fascínio que ele exerceu em mim, que exerce em tantos jovens. Contos como "Aqueles Dois", "Linda, uma história horrível" e "Pela Passagem de Uma Grande Dor", são clássicos modernos, clássicos aqui de casa e aulas sobre o formato conto.

Debateremos um pouco sobre isso, e sobre o que mais o pessoal que estiver lá quiser. Apareça.

Além do Caio e de mim, a balada terá muito mais: Marina Lima, Paulo Lins, Ney Matogrosso, Wagner Moura, Cristovão Tezza, Veronica Stigger, Lourenço Mutarelli... Programação completa aqui:

http://baladaliteraria.com.br/programacao/






19/11/2016

NIGHTCLUBBING

Amazing Grace

Quando eu era pivete de uns dezenove, vinte anos, torcia o nariz para os tiozões de trinta, quarenta, que frequentavam as boates da petizada. Hoje, que sou eu mesmo um tiozão, honro meu passado e fico em casa. Aproveitei na hora certa, hoje não tenho mais a mínima paciência para noite, boate, fila, molecada...

Então quase desisti do show da Grace Jones, que aconteceu ontem no Tom Brasil. Fazia parte do aniversário da D-Edge, e semanas depois de ter comprado o ingresso comecei a imaginar que seria mais balada do que show, pensei que ela poderia cantar só meia hora em live P.A. e entregar para o DJ, achei que seria mais proveitoso vender o ingresso para comprar remédios para a gripe, manta para o sofá, botar feijão na mesa. Felizmente respirei fundo e fui.

Dificilmente haverá outro show desses; Grace Jones está com quase setenta anos, mas em plena forma. No curto e intenso show de ontem ela foi de pole dance ao bambolê, com corpo todo pintado à la Keith Haring, aparentando estar se divertindo muito. Verdade que a voz não está tão potente, e ela errou e esqueceu diversas vezes as letras, mas, se ela se lançou com uma cantora de disco com vozeirão, sua marca registrada nos anos 80 foi mesmo a sonoridade cool do dub, mais declamada do que cantada, então a maior parte de seu repertório não exige muito da voz, e a banda excelente manteve o alto nível musical, com baixo, guitarra, bateria, percussão, teclados e duas backing vocals.

Grace Jones é mesmo uma presença, e parece que a maior parte do público estava lá por isso, pela imagem (talvez pela "influência" dela em cantoras mais novas) sem conhecer muito das músicas- nas diversas vezes que ela entregava versos à plateia, ouvia-se apenas respostas esparsas. Mas ela levantava o público o tempo todo, interagindo, divertindo a todos, totalmente entregue ao show. Foi emocionante.

Cantou os sucessos indispensáveis, pouco mais. Foi um show curto, com poucas músicas em versões que se alongavam em jam sessions deliciosas. Nisso ela mata a pau as cantoras pop da atualidade: é música de verdade; eu mesmo fui anos atrás num show da Lady Gaga (para citar uma influenciada óbvia) e achei uma coisa pop cafonérrima, overproduced, com a banda sempre em segundo (ou terceiro) plano.

Fora o show, a festa teve um punhado de DJs bacanas, mas não fiquei para assistir - o Tom Brasil tem estrutura mais para show mesmo do que balada. Assim valeu muito ter saído de casa, desbravado novamente a noite, encontrado tantos amigos queridos das antigas. Tem sido um ano funesto, mas esses respingos de felicidade deixam meu suicídio para o dia seguinte.

Set list foi mais ou menos isso, sem bis (esqueci alguma?)

Nightclubbing
This Is
Private Life
My Jamaican Guy
Nova (Shenanigans?)
William's Blood
Amazing Grace
Libertango
Love Is the Drug
Pull up to the Bumper
Slave to the Rhythm

13/11/2016

ALICE NO CANAVIAL

(de Sally Mann)

Há algumas semanas uma revista bacana me pediu um conto inédito – que deve sair no próximo mês (aviso aqui) – e trabalhando nesse novo texto comecei a pensar em outros contos ainda não publicados, alguns anteriores até mesmo ao Pornofantasma. Fiquei pensando que poderia ser bacana publicar outro livro de contos, mesmo que as pessoas não gostem de livros de contos, mesmo que qualquer um possa escrever contos, mesmo que contos sejam brigadeiros para confeiteiros.

Achei só que é algo que eu mesmo gostaria de fazer – com um novo romance já entregue (sim, romance novo já está entregue; vamos ver se sai no começo de 2017) – enquanto fermento as ideias para o... décimo? (Juro que perco as contas, ainda mais com um romance para sair, um juvenil, um livro de contos, fica uma conta quebrada...) – achei que poderia fazer meu segundo livro de contos (mesmo que as pessoas não gostem dos meus contos, mesmo que todas as pessoas escrevam contos; brigadeiros aos porcos). Enfim, só para registrar...

E com essas ideias em mente que escrevi o conto abaixo. Já pensando num livro novo, mas carregado de tudo o que já fiz. Está carregado principalmente desse próximo romance, que gira muito na questão da paternidade. Mas aqui pude brincar um pouco mais com a questão do gênero, dos banheiros, masculino/feminino (eu mesmo tenho uma placa de “FEMININO” no único banheiro do meu apartamento... Mas não abaixo a banca e, confesso, sou péssimo de mira...)

Carregado de tudo o que já fiz, achei que seria mais leve apenas postar assim. Faz tempo que não posto minha “literatura” aqui. O blog perdeu muito de sua função com as novas “redes sociais”, mas alguns leitores permanecem. Bem... Por que estou me justificando desse crime?


O título poderia ser melhor... Talvez seja. “A Loira do Banheiro” ou “Alice No Canavial"?. Mas “A Loira do Banheiro” é uma ótima amostra do “existencialismo bizarro”, as referências trash em contextos mais literários (ou pretensamente literários, se preferir). É um projeto falido, eu sei, mas é tudo o que eu tenho... 

A LOIRA DO BANHEIRO (conto inédito). 

“Papai, quero fazer xixi”, disse minha filha do banco de trás do carro. Previsível. Dirigíamos a um bom tempo pela estrada em silêncio; passamos por pastos de vacas, criações de pôneis, o Castelinho da Pamonha, e eu me perguntava como minha filha absorvia tudo aquilo, se absorvia tudo aquilo, e quando iria se deixar seduzir por esses pretensos oásis rodoviários. Pediria para parar, pediria para olhar os pôneis, pediria uma pamonha – pamonha é um sabor infantil? Mais tímida ou esperta pediu para usar o banheiro, ao que eu não poderia tentar dissuadi-la. Ainda assim tentei: “Está muito apertada? Pode esperar um pouco?” Observei-a pelo retrovisor meio retorcida, pernas cruzadas, como se não pudesse mais. Tudo bem...
Não sei se ela tinha noção que o que havia passado havia passado.  As vacas, pôneis e castelinhos haviam ficado para trás, não tinha mais jeito; e ela estaria entregue à sorte do que a estrada oferecesse em seguida; a parada do banheiro seria num posto incerto que provavelmente mal garantiria as condições mais básicas de higiene. Espiei pela janela aberta: uma borracharia, um quiosque de bananas, um posto da polícia rodoviária. Esperava qualquer uma dessas grandes redes que hoje tomavam a rodovia oferecendo de bufê de churrasco a artesanato, mariola, drogaria, panelas de barro, CDs de duplas sertanejas. Nada. “Papai, quero fazer xixiiiiii...” Choramingou mais veemente do banco de trás. Se fosse um menino eu pararia em qualquer ponto, no acostamento, e vigiaria enquanto o moleque se aliviasse sobre dentes de leão. Se fosse um menino pararíamos em qualquer ponto, no acostamento e o moleque poderia se satisfazer ainda hoje em dia? Quando eu era menino, parávamos em qualquer ponto, no acostamento, com minha mãe vigiando para eu me satisfazer, eu já um pouco mais velho pedindo para que ela não espiasse, que assim eu não conseguia, ela jurando que não espiava; e ela ainda que na direção, eu ainda que criança exercia minha superioridade masculina; ao sinal da menor pressão na bexiga pedia para que minha mãe parasse, enquanto que ela, enquanto que minha irmã, elas teriam de se conter até que um empreendedor da estrada concedesse permissão para as mulheres. Nessas horas é que se encontra apenas um precário posto anônimo que parece ter ficado na minha infância, nos anos 80, nos anos 70, daqueles em que pedimos informações apenas para sermos desviados para uma estrada deserta tomada por canibais. Foi o que encontrei, o posto, ao menos. Guinei do acostamento para o cascalho já sentindo falta eu mesmo dos castelinhos pelo quais passamos; uma pamonha cairia bem, agora que eu estava certo que aquela lojinha de conveniência não teria nada a oferecer. Estacionei, desci do carro e abri a porta traseira com minha filha já se desvencilhando de cintos e bonecas.
Deixou a mão que eu oferecia no vácuo, correndo à minha frente, ansiosamente apertada. Levantei o olhar para o frentista solitário que nos observava da porta da loja de conveniência. “Um banheiro para ela?” ofereci minha filha como saudação de paz; os banheiros estavam bem visíveis ao lado da loja. Ele indicou com a cabeça. Eu assenti em agradecimento. Minha filha já entrava no feminino sem me dar tempo para pensar se eu devia levá-la comigo ao masculino, se eu deveria entrar no dela. “Você vai sozinha?” perguntei com ela desaparecendo lá dentro, sem resposta. “Estou aqui fora qualquer coisa...”
Parado na frente dos banheiros me voltei novamente à estrada, um caminhão entrava no posto. Percebi que minha própria bexiga já exercia aquela leve pressão, que na infância obrigaria minha mãe a parar, mas que neste dia eu tentava ignorar para não impor minhas necessidades à minha filha. Era o final de semana dela. O final de semana dela comigo, depois de muito tempo... Eu queria provar à minha ex-mulher que daria conta, mais do que a mim mesmo.
“Vou só ao banheiro aqui do lado, tá? Stella? Estou aqui no banheiros dos homens.” Gritei na porta do feminino e corri para o outro sem resposta da minha filha.
 Encontrando o que eu já imaginava, imaginei o que encontrava minha filha. Qual seria o nível mais baixo de um banheiro feminino, porque aquele certamente correspondia aos piores exemplos de banheiro masculino, ainda funcional. Para nós é perfeitamente possível usar sem tocar coisa alguma, além de nós mesmos, sem papel, sem sabonete. Para uma menina que mal alcançava a altura da privada, o que seria? Bem, se as meninas não mijam de pé, as mulheres não mijam fora do vaso, não mijam na tampa do vaso, não tentam acertar miras aleatórias com o jato nem desenham seus próprios pênis nas portas do reservado anotando o telefone logo abaixo. Não?
Cheguei ao vaso torcendo o nariz. Aquilo entupido de todo tipo de sólido, líquido e gasoso. Obrigava-me a dar descarga com a ponta do dedo. Uma vez: um estrondo e uma espiral agitaram o lamaçal que se aquietou novamente aonde estava. Na segunda, um leve burburinho com um filete d’água que provocou menos mudança ainda. Tudo bem, apontei para o centro da massa e olhei para cima, tentando não respirar. Fixei-me num desenho infantil de um boneco de pauzinhos pagando um boquete. Imaginei que criança desenharia aquilo, tão alto na parede do reservado. Imaginei que adulto ainda usava seus bonecos de pauzinho com propósitos pornográficos. Voltei meus olhos ao meu próprio membro que espirrava na banca da privada que não tive coragem de levantar. Deve ser isso, o círculo vicioso, bola de neve, avalanche escatológica, é preciso um único porco para que o próximo siga o exemplo; com o banheiro naquele estado ninguém poderia mais se importar. Concluí em respingos para todos os lados, e dei a terceira descarga, que despertou apenas um chiado oco nos canos.
Torneira seca também, constatei levantando meu rosto para o espelho riscado. Três descargas na privada, então olhe para o espelho, a fórmula para encontrar a loira do banheiro. Perguntei-me se a fórmula funcionaria ainda que a descarga não. Perguntei-me por que uma loira fantasma apareceria num banheiro masculino daqueles; sem necessidades, por que se sujeitaria um fantasma; siga pela estrada. Pensei em minha filha sozinha no banheiro ao lado e saí apressado.
Lá fora o caminhão fumegava ansioso. Nem sinal de Stella. As meninas demoram. “Tudo bem por aí?” Ainda sem resposta. Imaginei minha filha indecisa sobre como usar um vaso sanitário naquele estado. Imaginei-me entrando e indo até ela ajudá-la e a menina berrando, gritando para eu sair, pedindo privacidade, já consciente de suas vergonhas. Achei por bem perguntar: “Precisa de ajuda?”
“Quem sabe, boneco...” veio a resposta lá de dentro.
Uma voz  anasalada. Nasal. Anal. Quase masculina, quase feminina. Endureci incerto se deveria endurecer, se deveria ficar no mesmo lugar, com uma mulher lá dentro, se deveria correr para o banheiro, com um homem lá. Passei pela porta já me desculpando – “Desculpe, minha filha está demorando...”
Encontrei lá dentro, na frente do espelho, uma travesti.  Algo indígena, mulata, morena, loira, os peitos siliconados, me olhava num sorriso cínico, duvidando de minhas intenções, acreditando em minhas intenções. “Stella?” disse alto demais observando o reservado, porta fechada. Não houve resposta, mas uma descarga soou de lá. Minha filha me ouvindo e se apressando para sair. “Ela ainda é pequena”, justifiquei-me com a travesti. Olhou-me de cima a baixo avaliando o que eu tinha a oferecer. Olhou-me de cima a baixo como se avaliasse se eu podia gerar filhos, ser pai de família, pai de seus filhos.
“O que vocês estão fazendo aqui?!” ouvi detrás de mim. Virei-me. O velho frentista. “Esse é o banheiro feminino!”
“A minha filha...”
“Vamos, fora!”
Voltei-me novamente para a travesti, que arqueava a sobrancelha em seu sorriso ainda cínico. “Stella?” Pressionei para que minha filha viesse me resgatar. “O senhor me viu entrando com ela...”
“Fora daqui!” O velho falou fazendo um sinal para fora que indicava tanto que eu deveria sair quanto que ele mesmo poderia sair e voltar com providências mais contundentes. Levantei as mãos me rendendo, mas respondi somente à minha filha. “Stella, vamos, papai tem que sair. Vamos voltar para o carro.”  
A porta do reservado se abriu. De lá saiu uma morena ainda mais morena, menos loira, mais alta e com peitos ainda maiores. “Pra que tanta pressa, papai?” me disse com ironia.
“Onde está minha filha?” perguntei; a porta de dois outros reservados abertas.
A segunda travesti deu de ombros, lavando as mãos.
“Vamos, todo mundo fora daqui!” insistiu o frentista.
As duas saíram aos pulinhos enquanto eu corria para os reservados, espiava por minha filha, constatava que as mulheres, sim, são mais limpas, que o banheiro feminino era impecável; nem sinal de Stella. “Você viu que minha filha entrou aqui!” argumentei com o frentista tentando convencer a mim mesmo de que ela certamente entrara, dando a ele a oportunidade de discordar.
O frentista apontou novamente com a cabeça, rígida, fazendo sinal para eu sair, ou fazendo sinal que minha filha me esperava lá fora, fazendo sinal para eu esperar lá fora.
Saí olhando ao redor. “Stella?!” Gritava contemplando o vazio por que não havia onde procurar. Na loja de conveniência, entre bombas de combustível, na estrada, nada. As duas travestis requebravam de volta para o caminhão, caminhão ligado, motorista na direção, era o momento de correr até lá e bater na caçamba, atacar o motorista, o que você fez com minha filha. Eu me arrependeria, e me arrependeria de não ter ido, mas permaneci enraizado no lugar apenas olhando para o rosto dele, tentando ler alguma culpa, tentando obter alguma resposta. Por favor, o senhor viu minha filha? Era uma alternativa. Se ela a tivesse, negaria. E eu teria de bater na caçamba, bater no motorista, sair em briga de navalha com travestis. Permaneci. O olhar de óculos escuros dele impossível de ser decifrado. Logo as travestis embarcavam, o caminhão manobrava, dava ré, voltava à estrada, lento, decisivo, ainda possível. Permaneci.
Eles voltariam à estrada até a bexiga das meninas novamente pressionarem. Se fossem meninos, poderiam parar em qualquer ponto, no acostamento, e o caminhoneiro tentaria ignorar enquanto os dois levantavam a saia, botavam o pau para fora, se aliviavam sobre embalagens de mandiopan, bitucas de cigarro, garrafas pet de dolly guaraná.
“Stella!”
Tirei o celular do bolso, como um reflexo, como se tivesse algum recado, alguma mensagem, alguma resposta, como se pudesse alcançar minha filha por lá. Olhei as horas. Considerei ligar para minha ex. Ligar para a polícia, assumir a culpa, assumir meu fracasso. Só fui capaz de ser pai até a primeira parada. Perdi minha filha num posto rodoviário. Deveria verificar o álbum de fotos, certificar-me se ela estava mesmo lá, estivera mesmo lá, existia, existira, agora não mais. O senhor nunca teve filha, chegou aqui sozinho, diria o frentista, agora já é hora de o senhor partir.
Entrei atrás dele, na loja de conveniência. “Escute... Espere... Olhe... Parei aqui para minha filha ir ao banheiro e ela não está mais lá. É apenas uma menina; o senhor não a viu?”
“Sim, vi chegando com o senhor...” Ele respondia como para confirmar que eu não estava louco, sem dar solução alguma.
“Não, digo, a viu depois que saiu do banheiro? Entrei um segundo no masculino e a perdi... Eu estava logo ao lado... Foi apenas um instante...” Desculpava-me como para isentar de culpa, provar que eu era um bom pai, qualquer um poderia passar por aquilo, não era como se eu tivesse abandonado minha filha à beira da estrada...
“Ela deve estar por aí... Não pode ter desaparecido”, foi o que ele respondeu.
“É óbvio. É isso que estou dizendo. Onde ela está?”
“O senhor está me acusando de algo?”
“Não, não, é só que...”
Ele revirou os bolsos e os puxou para fora. “Não está aqui comigo.”
Suspirei. “Olha, de repente aquele caminhão...”
Ele me interrompeu levantando o dedo indicador. “Venha cá.” E saiu da loja.
Eu o segui dando a volta até os fundos do posto. “O senhor deu uma olhada aqui?” Chegávamos a uma oficina num barracão e, atrás disso, uma plantação de cana. Paramos diante do canavial.
“Acha que ela pode ter entrado aí?”
Ele deu de ombros. “Às vezes... Às vezes saem animais daí.”
Eu o olhei franzindo a testa. Queria dizer que animais saem, assim como poderia sair minha filha? Ou que animais sairiam para buscar crianças à beira da estrada, um lobo, uma jiboia, onça-lontra-chupacabra. “Animais selvagens?”
Ele assentiu. “É. Animais selvagens. Coelhos, principalmente.”
Imaginei os coelhos selvagens que poderiam arrastar uma criança. Refleti se de fato existiam coelhos na natureza. Lembrei das pragas de coelhos na Austrália. Visualizei minha filha como Alice, seguindo um coelho que voltava correndo para dentro do canavial, sereia para crianças. Stella atravessando fileiras e fileiras até não poder mais enxergar o caminho de volta. “Stella!” gritei na entrada do canavial. Minha voz venceria o caldo de cana? Minha voz venceria o vento, levada pelo vento, barrada pela cana, venceria o canto do coelho? “Stella, se estiver me ouvindo dê um grito! Siga a voz do papai!”
Virei-me novamente para o frentista, pedindo ajuda. “Como podemos encontrá-la aí?”
Ele meneou a cabeça. “É difícil...”
Eu assenti enfaticamente, concordando, implorando, alguma sugestão.
Ele suspirou. “Podemos tacar fogo. Se ela não sair correndo, encontramos depois entre as cinzas...”
Vendo o choque em meu rosto, ele caiu na gargalhada. Não tinha a menor graça. Corri desesperado para dentro do canavial. “Stella!”

                                                               *
“É uma menina”, me disse minha ex-mulher quando voltei de uma viagem com um palhacinho de pelúcia em mãos. Palhacinho azul, já me parecia totalmente inadequado, não pelo gênero. Palhacinho azul para menino, boneca rosa para meninas; o que a criança precisava era de um berço, fraldas, obstetra, pediatra, um pai. Mas eu não tinha a menor experiência. Minha ex-mulher se anunciara grávida dois meses depois de não sermos mais. Eu me questionei como pai, não sendo mais marido. Então chegando de viagem com apenas um brinquedo em mãos olhei para o amigo gay dela que se esparramava no sofá, respondi com ironia: “Bem... o palhacinho pode ficar para ele, então.”
                                                               *

Saí do canavial em farpas. Atrás do posto, nem sombra de ninguém. Caminhei para o estacionamento com celular em mãos. O sinal era bom e não havia nada que me impedisse de chamar socorro, só não sabia do que adiantaria.
“Alô... Olá... Oi... Boa tarde, estou aqui num posto no quilômetro...” tentava confirmar a localização enquanto entrava no carro, me esforçando para não soar patético, manobrando para explicar que perdi minha filha à beira da estrada. Olhei pelo retrovisor:
“Você é uma menina muito malcriada. É sim! Vai ficar sem sobremesa. Olha só, que menina malcriada.” Stella conversava com sua boneca cor de rosa.
“Stella...” sussurrei ao vê-la lá no banco de trás. Ela continuou sua conversa imaginária com a boneca, perguntando e respondendo, alheia a mim. Ofeguei por alguns segundos observando-a, então me virei como para confirmar que o reflexo no espelho era real. Minha filha continuava lá, voltara ao carro antes de mim, sentara em sua cadeirinha e prendera o cinto. Virei-me para mim mesmo e encontrei marcas novas, rugas que ainda não notara, uma vista cansada. Dei partida.
Saí do estacionamento para a estrada. Ainda era cedo e o fluxo seguia tranquilo. Mais uma hora até o sítio dos meus pais. O fim de semana estava apenas começando. 

29/10/2016

OS MELHORES FILMES DE TERROR DE TODOS OS TEMPOS


Aproveitando o clima de Halloween/Eleições Municipais, resolvi fazer um post atualizado com meus filmes de terror favoritos de todos os tempos.

É aquela coisa, uma escolha absolutamente pessoal; tem muitos clássicos, um ou outro mais obscuro, vários discutíveis. Mas se há algo que posso dizer que conheço bem é esse gênero. Comecei com dez, achei que era pouco, fiz meus vinte, mas poderia facilmente chegar a trinta, quarenta, cem... Não coloquei nada tão recente, porque para esses eu preciso de mais tempo.

A lista fica mais ou menos nessa ordem...


AUDITION (Takashi Miike, Japão, 2000)

Fetiches de estimação. 
Um viúvo de meia idade decide procurar uma nova companheira; e para isso recorre a audições falsas de uma novela, buscando entre as atrizes a mulher ideal. O que segue como uma comédia romântica por dois terços do filme torna-se um horror escabroso na meia hora final, com direito a mutilações e revisões da própria trama, com uma visão mais sombria e onírica. Uma aula de cinema e uma crítica ao machismo da sociedade japonesa. Obra prima.


O MASSACRE DA SERRA ELÉTRICA (Tobe Hooper, EUA, 1974)

Estranhos sabores. 
Um grupo de jovens em viagem pelas estradas do Texas encontra a casa de uma família canibal. Se o enredo hoje parece genérico é devido as inúmeras continuações e influências que o filmes gerou. Continua pesado, insano, simples e direto. Clássico.

FUNNY GAMES (Michael Haneke, Austria, 1997)

Metalinguagem perversa. 
Dois jovens visitam uma família em férias numa casa de campo e vão gradativamente instalando torturas psicológicas e físicas. Em 2007 o diretor refilmou novamente, quadro por quadro, com um elenco americano mais conhecido (entre eles Naomi Watts e Michael Pitt), talvez para alcançar um público mais amplo. Mas a versão original austríaca continua sendo superior, talvez exatamente pela língua e pelo elenco menos conhecido. Cínico, perverso e inesquecível.


PARENTS (Bob Balaban, EUA, 1989)

Família margarina à mesa. 
Uma família aparentemente normal dos anos 60 tem estranhos hábitos alimentares, e um filho anoréxico como ovelha negra. Tem um quê de comédia, uma pegada kitsch e trilha sonora cheia de chachachá, mas é mais bizarro do que metido a engraçado. Provavelmente dos menos conhecidos desta lista, é o tipo de coisa que eu gostaria de ter escrito. Amo.

O CHAMADO (Gore Verbinski, EUA, 2002)

Há esperança no fundo do poço.
Uma fita de vídeo com imagens surrealistas traz uma maldição: quem assisti-la morrerá em sete dias. Blockbuster americano baseado em filme e romance japoneses, que também são bacanas, mas eu pessoalmente prefiro o tom mais investigativo dessa versão. E a menina saindo da TV no final do filme tornou-se das cenas mais emblemáticas do cinema de horror de todos os tempos. Já é clássico.


ANTICRISTO (Lars Von Trier, Dinamarca, 2009)

A natureza é a Igreja de Satã. 
Após a morte do filho, um casal se refugia para uma casa de campo e entra num pesadelo de delírios e paranoia com a natureza que os cerca. Provavelmente o único filme desta lista que assisti uma vez só, ainda assim foi grande inspiração para meu Biofobia. O filme por sua vez tem influência de tantos outros clássicos do gênero (Evil Dead, O Iluminado), mas Von Trier consegue sempre fazer da sua própria forma. Obra de arte.


O QUE TERÁ ACONTECIDO A BABY JANE (Robert Aldrich, EUA, 1962)

O terror do envelhecimento. 
Duas velhas atrizes irmãs repletas de rancores, frustrações e segredos do passado têm de viver juntas na mesma casa. Bette Davis está fantástica como a velha atriz mirim vivendo de sua antiga fama. (Há aqui em SP uma peça em cartaz, baseada no filme, com Eva Vilma e Nicete Bruno. Mas como a direção é do Cláudio Botelho, acho que prefiro não estragar a lembrança do filme...). Um show.

THE WOMAN (Lucky McKee, EUA, 2011)

Mulher é bicho esquisito. 
Um pai de família leva para casa uma "mulher selvagem" que encontra num bosque, e se dedica a civilizá-la, com a cooperação de sua família. Bizarro e misógino, pode também ser visto como uma grande alegoria da sociedade machista. Perturbador.

O BEBÊ DE ROSEMARY (Roman Polanski, EUA, 1968)

O filho do capeta precisa de uma mãe. 
Grávida do primeiro filho, Rosemary vai alimentando suspeitas crescentes sobre seus vizinhos e o relacionamento do marido com uma seita satanista. Obra prima de Polanski, não recomendada para gestantes. Eterno.


EVIL DEAD (Sam Raimi, EUA, 1981)

Não use drogas, amiguinho. 
Um grupo de amigos numa casa de campo enfrenta possessões demoníacas que vão tomando um a um. Enredo simples com uma equipe quase amadora, mas filmado de maneira histérica, divertidíssima e perturbadora. Alucinante.


HALLOWEEN (John Carpenter, EUA, 1978)

Uma boa faca faz de tudo. 
Na noite de Halloween, uma babysitter é perseguida por um maníaco mascarado que pouco a pouco mata seus amigos. Simples, elegante, iniciou a onda de slashers com assassinos mascarados. Obrigatório.


A SERBIAN FILM (Srdjan Spasojevic, Sérvia, 2010)

Sexy Hot is for dummies. 
Um ator pornô aposentado aceita a oferta para estrelar mais um filme, sem saber que viverá cenas reais de pedofilia, incesto e morte. Polêmico, o filme foi proibido em diversos países, inclusive no Brasil, mas além do teor de exploitation há um viés surrealista e onírico no filme, que o eleva a algo mais. Chocante.


HANNIBAL (Ridley Scott, EUA, 2001)

Masterchef nível psycho. 
Uma agente do FBI procura Hannibal Lecter, um psiquiatra condenado por canibalismo como um dos criminosos mais perigosos do mundo. Sequência de "O Silêncio dos Inocentes", que talvez seja melhor como filme, mas esse funciona melhor dentro do gênero do terror, com uma sucessão de cenas e personagens apavorantes. Adoro.


REC (Jaume Balagueró & Paco Plaza, Espanha, 2007)

Balada intensa. 
Uma equipe jornalística que grava a rotina do corpo de bombeiros durante a madrugada acaba trancada num edifício onde vai se espalhando uma epidemia zumbi. Para mim, o melhor found footage (junto a "Cloverfield") e melhor filme de zumbi já feito. A sequência final do sótão é um desses clássicos modernos. Fodástico.


A HORA DO PESADELO (Wes Craven, EUA, 1984)

O homem dos meus sonhos. 
Um grupo de adolescentes tem pesadelos com a mesma criatura: um homem de rosto queimado e luva com lâminas nos dedos. O filme que gerou Freddy Krueger certamente é o melhor da série; com um clima que permanece aterrador, apesar da pegada datada anos 80. Sou fã desde criança.


O EXORCISTA (William Friedkin, EUA, 1973)

Menarca dos Diabos. 
Tornando-se cada vez mais estranha, uma menina de doze anos leva sua cética mãe a acreditar que esteja possuída pelo demônio. Apesar de ter sido indicado a dez Oscar, não chega a ser uma obra prima que vá além do gênero; com a alegoria da entrada na puberdade mal explorada e algumas falhas de roteiro. Ainda assim, a imagem da menina tomada pelo demônio é das coisas mais fortes do cinema de horror. Emblemático.


SALÓ (Pier Paolo Pasolini, Itália, 1975)

Torture porn com classe. 
Adolescentes são sequestrados e levados por um grupo de fascistas a um castelo isolado, onde são submetidos a todo tipo de tortura. Último filme de Pasolini mistura erotismo e terror como só o Marquês de Sade poderia ter escrito. Cinema de arte.


ERASERHEAD (David Lynch, EUA, 1977)

O pesadelo da paternidade. 
Ao tentar cuidar de seu bebê por uma noite, um homem solitário enfrenta os terrores da paternidade, deparando-se literalmente com um alienígena. Estranho e inquietante, o primeiro longa de David Lynch é a representação perfeita de um pesadelo. Absurdo.


HARD CANDY (David Slade, EUA, 2005)

Flerte fatal. 
Um fotógrafo de meia idade leva para casa uma adolescente que conheceu pela internet. A natureza predatória dele é questionada quando a menina se revela menos inocente do que parecia. Ótimos diálogos e ótimas atuações seguram esse thriller minimalista. Arrepiante.


SERIAL MOM (John Waters, EUA, 1994)

Defendendo a família tradicional.


Aparentemente uma pacata dona de casa, ela é também uma assassina cruel de todos que se metem com sua família. Provavelmente o filme mais comercial de John Waters, uma comédia de horror com atuação impagável de Kathleen Turner. Divertidíssimo.


NESTE SÁBADO!