31/03/2022

SOBRE A TECLA SAP


Esta semana de Oscar me fez repensar no valor da tradução, da dublagem, da legendagem...
“Só quem pode avaliar o trabalho de um tradutor é quem não precisa dele”, é uma máxima (não lembro de quem) não totalmente verdadeira, porque uma má tradução emperra, atravanca e soa estranha, mesmo para quem não domina a língua original.

Vi o Oscar com meu namorado, que tem um inglês mediano, mas desistimos da tradução simultânea, não tanto por imprecisões, mas pelo excesso de comentários desnecessários. No trecho de cada filme, nas homenagens, os comentaristas faziam questão de explicar, dar sua opinião. Me fartei durante a homenagem ao 007, que no original só mostrava cenas dos filmes, mas os comentaristas brasileiros (da TNT) faziam questão de pontuar cada cena. Um saco.

Porém o Oscar é um caso específico, dos raros casos de tradução simultânea hoje em dia. Mais problemático tenho achado toda essa defesa e essa campanha pela dublagem – inclusive de veículos e pessoas de peso. Não sei muito de onde isso vem, a quem interessa. “A dublagem do Brasil é a melhor do mundo, blábláblá”; pode ser, mas continua ainda sendo... dublagem. Pense num ator que ficou meses se preparando para o papel, dominou um sotaque, gravou a cena trocentas vezes, teve sua interpretação baseada no calor do momento, na interação com outros atores, com o ambiente. Como dá para comparar a performance vocal dessa pessoa com alguém que entrou num estúdio, gravou dúzias de falas num dia, sem contracenar com outros atores, sem cenário, e geralmente sem nem disfarçar seu sotaque (carioca, invariavelmente) carregado? Como comparar a entrega vocal de uma Meryl Streep com uma Maria das Couves?

Entendo que, num país tão desigual, a dublagem seja uma forma de inclusão, mas deve ser encarada como tal, uma muleta, por nosso ensino deficitário. O ideal era que o povo conseguisse ler legendas, conseguisse dominar outras línguas... Dublagem é uma gambiarra.
 
“Ah, mas tem coisa que é melhor dublada do que o original” – talvez, se o original for muito ruim ou se for originalmente dublado, como os desenhos animados. Daí acho que faz sentido. A merda maior dessa campanha atual pela dublagem é que mesmos nos streamings (principalmente Amazon Prime), já se encontra uma caralhada de filmes APENAS DUBLADOS (sinceramente não entendo por que se dão ao trabalho de dublar, mas não disponibilizam o áudio original, mesmo sem legendas). Parece os velhos tempos de televisão aberta, sem tecla SAP.
 
Dito isso, a legendagem também está longe de ser uma arte perfeita.

Já traduzi para legendas (para dublagem, nunca). É preciso sintetizar para caber na tela, no ritmo da fala e da leitura. Então já é uma simplificação. Mas para mim é muito mais válido do que a dublagem. Primeiro porque dá para cotejar, você tem o áudio original e pode pescar divergências, mesmo que não tenha um inglês perfeito. Depois, porque mesmo que você não entenda nada da língua original, você ainda tem o tom, o timbre, o ritmo, e toda a sonoridade da atuação original, que não fica comprometida.

Já ouvi argumentos de que a legenda tira a atenção do foco da tela, da imagem. Isso não consigo avaliar, porque leio legendas desde pequeno, e hoje preciso cada vez menos delas. Talvez seja mesmo uma questão de hábito. Para mim, dublagem me tira muito mais o foco da cena...

A merda das legendas.... e da tradução em geral, é que vem sendo cada vez mais sucateada, desprofissionalizada. Os filmes caem em torrents com legendas amadoras, de gente que traduz com inglês básico e Google tradutor. Dói de ler. E com tanta gente fazendo de graça, claro que o trabalho do tradutor profissional é desvalorizado. (Eu mesmo não traduzo legendas há aaaaanos).
 
Falando da tradução literária, que é minha principal atividade, também acho sempre melhor ler no original, claro. Mas muitos dos meus favoritos são de línguas que eu não domino: Thomas Mann, Kafka, Hesse, Moravia. De toda forma, o ritmo de trabalho da tradução literária é muito menos industrial do que a tradução audiovisual... ou era, também vem sendo sucateada, com prazos cada vez mais apertados, valores por lauda cada vez menores, gente recorrendo ao Google Tradutor.
 
É vergonhoso o que se ganha – pensando em toda a experiência, o estudo, a vivência que precisa se ter para se traduzir; não é só conhecimento das línguas, tem muito, muito de conhecimentos gerais, é preciso entender do que se está falando, ou pesquisar... Coisa que não se tem tempo em tradução de audiovisual, e cada vez menos na tradução literária.
 
Por essas, eu, como tradutor, sempre defendo: Leia, veja, escute o original.

Meu namorado está há um ano comigo. E nesse ano deu um salto e já consegue acompanhar numa boa filmes com legendas no inglês original ou em espanhol – próximo passo é sem legendas. Aprende-se a ler legenda lendo legenda. Aprende-se inglês ouvindo inglês, lendo em inglês, muito mais do que em curso na Cultura Inglesa. É preciso ir tirando aos poucos as muletas, não dar uma cadeira de rodas...

28/03/2022

GARIMPO DE MIM MESMO



Aproveitei a manhã de segunda no centro para garimpar meus próprios livros nos sebos. Nesses tempos de pobreza absoluta, tenho que vender o que posso, e tem sempre gente pedindo, perguntando pelos livros mais antigos.

Procurar a si mesmo num sebo sempre desperta sentimentos conflitantes. ‘Fui largado nessas prateleiras empoeiradas, sou leitura de segunda mão.” Mas também, quando não me encontro, sinto que não fiz história. Hoje teve de tudo.

No começo, não estava encontrando nada. “Ninguém quer se desfazer de mim”, eu me consolava. Não é bem assim que funciona. Embora o destino do sebo pareça certo abandono, quanto mais um livro vende, mais fácil encontrá-lo revendido. Não à toa, logo comecei a encontrar vários “Mastigando Humanos”, em diversos níveis de conservação – que foi um livro que chegou até a ser leitura de vestibular (hoje em dia seria impensável...). Também encontrei “Feriado de Mim Mesmo”, que foi um livro que vendeu razoavelmente; BIOFOBIA; Pornofantasma; e nada dos dois primeiros (que sempre alguém me pede).

Nesse garimpo, é importante não olhar muito para os lados – porque o intuito é não gastar mais dinheiro do que se pode recuperar. Concentro-me no N, mas sempre encontro velhos amigos, colegas de alfabeto: Pedro Nava (que não cheguei a conhecer), Raduan Nassar; o saudoso e querido Noll; o Eric Novello; e até minha mãe, Elisa Nazarian, que publicou pouco, mas bonito.

Em alguns livros, reconheço meu próprio autógrafo: “Para João, grande leitor, espero que te assombre”, encontrei hoje num BIOFOBIA (não lembro que João seria, mas a assinatura com certeza é minha). Tenho histórias curiosas com autógrafos em sebo, por sinal.
Anos atrás, o grande Evandro Affonso Ferreira, que tinha um sebo em Pinheiros, me ligou porque tinha um presente para mim. Era o meu primeiro livro, “Olívio”, rabiscado e comentado pelo Bernardo Carvalho. Ele escreveu uma crítica bacana no lançamento (acho que na TRIP), mas o livro tinha trechos marcados com “PÉSSIMO!” (e um ou outro com “ÓTIMO”). Estou guardando o livro aqui, para algum dia leiloá-lo como raridade.

Também encontrei décadas atrás, num sebo, uma primeira edição de “Morangos Mofados”, assinada pelo próprio Caio, com coraçõezinhos, para um rapaz com nome incomum. Eu conhecia um homônimo e sondei com ele se ele teria perdido a edição – se fosse uma perda sentida, eu o presentearia de volta -; mas ele não parecia sentir falta. Fiquei com o livro para mim, assinado para ele.

Anos depois, numa palestra no Recife, uma leitora me traz meu primeiro livro para eu autografar. “Achei num sebo, já tem um autógrafo. Mas coloca também meu nome?”, ela pediu. Quando abri o livro, era autografado para quem? EXATAMENTE o mesmo leitor perdido do Caio. Histórica verídica, ainda que sem graça.

Já eu, nunca me desfaço. Tenho algo de acumulador. Não à toa os livros transbordam das prateleiras da minha casa. Alguém precisa alimentar as traças. Só vendo mesmo os meus... por absoluta necessidade.

Então fui colocar os novos-velhos livros à venda nas minhas redes. Tinha alguns lacrados, alguns mais antigos, edições estrangeiras, mas todos em excelente estado, porque os que estavam capengas (ou caros), obviamente não comprei. (Tinha por sinal um “O Prédio, o Tédio e o Menino Cego” que parecia até ter páginas grudadas... Fiquei de certa forma lisonjeado.)

Tinha colocado a lista aqui, abaixo. Mas em poucas horas vendi TODOS pelo Facebook e Instagram. Já são umas migalhas pro meu almoço. Valeu a todos. Volto no próximo garimpo. 





“FERIADO DE MIM MESMO” (2005): Um thriller minimalista em que um solitário tradutor acha que tem seu apartamento invadido. Tenho a primeiríssima edição e a segunda. (R$60).

“MASTIGANDO HUMANOS” (2006): Um improvável romance narrado por um jacaré de esgoto. Meu grande “hit”. Essa é a edição original da Nova Fronteira, com ilustrações. (R$60)

“BIOFOBIA” (2014): Um thriller de um decadente cantor de rock, um emo velho, em conflito com a natureza. R$60.

“PORNOFANTASMA” (2011): Meu único livro de contos. Histórias longas de morte e sexo. (R$60)

“NEVE NEGRA” (2017): Na noite mais fria do ano, na cidade mais fria do Brasil, um pai ausente começa a duvidar da identidade do filho. Pós-terror de criança do capeta. (R$60)

“FÉ NO INFERNO” (2020): Um romance sobre o Genocídio Armênio e os genocídios do Brasil atual. Finalista do Jabuti e do Oceanos. (R$80)

“A MORTE SEM NOME” (2017): A bela edição sérvia (que provavelmente ninguém vai conseguir ler, mas serve para colecionadores). (R$100)

“MASTICANDO UMANI” (2013): A edição italiana. (R$100).

“GERAÇÂO ZERO ZERO” (2011): A antologia organizada por Nelson de Oliveira, que mapeou os escritores surgidos no começo do milênio. Eu participo só com um conto, mas tem muita gente melhor por lá: Galera, del Fuego, Scott, Mutarelli, Stigger e por aí vai. (R$60).





04/03/2022

LEMBRANÇAS DA RÚSSIA (NOTAS SOBRE UM NOVO APOCALIPSE)


Rússia com os filtros de 2011. 

Esse poderia ser outro “notas sobre o apocalipse”, um novo apocalipse que se avizinha, enquanto o anterior nem acabou. Sempre há novas maneiras de morrer (e escrevo isso desde “A Morte Sem Nome”...), oportunidade é o que não falta. Mas tenho lido tanta gente comentando sobre a Rússia, condenando a Rússia, falando sobre a guerra, e eu não tenho nada a falar, porque estou longe de ser especialista. Só tenho lembranças... intensas das duas vezes que estive por lá, há dez anos.


Outubro de 2011. 

Acho a Rússia um país fascinante e assustador, seja na literatura, na música, nos costumes... e nos meninos. Os meninos mais lindos do mundo.

Lembro a segunda vez que cheguei em São Petersburgo, receoso de pegar táxi – porque lá eles te extorquem sem o sorriso do brasileiro – e resolvi ir a pé até o hotel, como eu já conhecia o caminho. Atravessando uma ponte cruzei com um pelotão imenso de soldadinhos, todos lindoooos, todos olhando feio para mim...

Isso é algo que me chamou muito a atenção. Todo mundo te encara na rua. De cara fechada.

As duas vezes eu fui de trem, quando estava morando na Finlândia, que dá pouco mais de três horas. No lado finlandês eu via os bosques, as casinhas, tudo parecendo contos de fadas. Ao atravessar para o lado russo dava com construções destruídas, muros pixados, arame farpado.

O controle de passaporte era dentro do próprio trem – lembro de duas oficiais carrancudas que abriram minhas malas, me revistaram, sem falar uma palavra de inglês; ninguém fala inglês, nem no guichê de informações turísticas da estação. (Me pergunto se não passasse pela imigração – me mandariam de volta no mesmo trem?)

Dezembro sem neve em São Petersburgo. 

São Petersburgo é uma cidade linda (e cara), dá para caminhar bem a pé. Peguei um frio bem razoável, tanto em outubro quanto em dezembro, um pouco acima de zero, o que é sempre imprevisível. Visitei o famoso museu Hermitage – que é incrível, mas um pouco excessivo demais pro meu gosto. E ainda vi um show do Suede, que estava preparando repertório para um disco novo e tocou 7 músicas novas, 5 das quais nunca foram lançadas.

Brett ainda estava com as letras na mão. 

Também conheci a cena gay – dez anos atrás ainda havia cena gay; a lei “antipropaganda” estava prestes a ser aprovada, e dava para encontrar um punhado de bares, saunas e boates gays em São Petersburgo. Uma delas, a Cabaré, era divertidíssima, tinha pista de dança, karaokê, show de drag (com uma versão russa de “Tico-Tico no Fubá”); lembro também da Central Station, com garçonzinhos delícia de cueca e gravata borboleta.  

Era um perigo fotografar nas boates. Um segurança quase confiscou minha máquina. 



Eu sentia como se tivesse viajado no tempo – para uma versão alternativa dos anos 80, numa Rússia capitalista. Todo mundo fumava em todo lugar, a gente pedia uma vodca num restaurante e te traziam uma garrafa inteira... Ah, e comi o estrogonofe. Tinha gosto de... estrogonofe. Isso de que é completamente diferente do daqui é lenda; só não tem arroz e batata palha (me serviram com purê de batata).

Hermitage. 

É triste pensar que um país tão rico culturalmente esteja sendo destruído por seu próprio governante, mas não é o mesmo que está acontecendo aqui? A gente pode culpar o Putin, o Bozo, mas no fim os governantes são reflexo do povo, mesmo governantes que se mantém no poder de maneiras não tão democráticas...

Para Ucrânia nunca fui; adoraria, em outros tempos; conheci Estônia e Armênia, da ex União Soviética; adoro aqueles lados, mas acho cada vez mais difícil viajar, não só pelos conflitos, pela guerra, também pela pandemia, pobreza, desânimo, por tudo isso... O mundo está acabando mesmo, pelo menos para mim.

NESTE SÁBADO!