Minha casa está me expulsando...
Acho que muitos brasileiros tiveram essa sensação, com o resultado das eleições de 2018. A exclusão que era sentida por muitos foi oficializada, outros tiveram o primeiro choque de realidade. Não queriam gays, pretos, indígenas, esquerdistas, artistas... Votaram num presidente contra isso. Foi uma verdadeira facada – em alguns pelas costas – de famílias que até “nos aceitavam”, mas preferiam que não existíssemos...
Mas eu não ia falar disso.
Ia falar do meu apartamento, minha casa, é uma velha bolsonarista. E eu moro sozinho.
A moça do IBGE veio ontem de manhã aqui. Eu não queria recebê-la. Tava fodido tentando entregar uns trabalhos de tradução, de preparação de texto, trabalhos que exigem domínio profundo da escrita em duas línguas, e pagam “500 conto”, para estruturar textos de ricaços semianalfabetos. (A educação é uma mentira, te digo, ao menos que você estude “autoconhecimento”, “planejamento financeiro”...).
Mas enfim, veio a moça do IBGE... E depois eu li que você pode até ser multado por não receber o IBGE. Mas não foi por isso que eu a recebi.
A moça do IBGE era uma gatinha pós-púbere. Que teve de entrar sozinha no apartamento de um quarentão pós-cult, como tantos outros, talvez mais trevoso, pedir licença, pedir desculpas e perguntar quem morava aqui.
"Só eu, acho.”
Nesse momento, teve um estrondo na cozinha.
“Tem um coelho também”, eu disse, certo de que aquele barulho não viera do coelho.
Ela continuou me perguntando amenidades, fugindo do meu cabelo ensebado, se deparando com o tamanho dos meus pés descalços, e eu meio culpado por gostar de vê-la desconfortável, porque eu precisava voltar a trabalhar.
“Alguém faleceu aqui entre janeiro e julho de 2022?” (Juro que ela perguntou.)
“Se eu respondesse com honestidade, não te deixaria sair” (Juro que respondi).
Ela ainda conseguiu sorrir, constrangida: “É por causa da pandemia...” explicou. Eu me esforcei para que ela fosse embora em paz.
Depois, constatei que um vaso (meu ÚNICO vaso), havia se espatifado na área de serviço, por sorte não pegou o coelho. Daí que veio o barulho... Do vento?
De noite, enquanto eu assistia a “Barbarians”, acabou a luz. Fui dormir. Acordei de madrugada, do nada, com uma prateleira de livros chumbada à parede literalmente despencando no meu quarto.
Minha casa não quer meus livros. Minha casa não me quer aqui. Minha casa é uma velha bolsonarista e precisamos exorcizá-la.