23/04/2010

SALVE O DRAGÃO!


Aproveito o dia de São Jorge, para louvar o Dragão com uma cândida fábula de minha autoria (crio minhas próprias fábulas... embora não entenda a moral...). Você não merece, e o texto é razoavelmente longo, mas é o melhor que tenho a oferecer.



Natrix Natrix - Santiago Nazarian

Mataram o Dragão. E o rio de lava voltou a fluir fresco e turquesa. A floresta de carvão refloresceu em cores e frutos. O céu cinza desembrulhou-se azul e todos na vila abriram suas portas sentindo um novo ar a se respirar. O Dragão estava morto.


O alívio tranqüilo que se sentia logo foi substituído por euforia e comemoração. Era preciso festejar. Comer e beber todos os frutos que agora podiam ser colhidos. Virar em dia a noite que não precisava mais ser temida. Dançar sem poupar energias para a luta e cantar alto porque a fera não poderia mais ser despertada. Nada mais seria necessário conter.


As mulheres podiam voltar a ter filhos. As crianças poderiam crescer além das fronteiras. Braços e pernas poderiam se reestender para dentro de rios e lagos, subindo árvores e esfolando os joelhos. Ninguém precisaria temer a gota de sangue que caísse sobre a terra. Não era mais alarde o cheiro de suor suspenso no ar. O Dragão nada iria farejar. E o sexo poderia ser vigoroso. Os prazeres todos derramados. Todas as possibilidades possíveis, todas as alternativas alternadas.


Nos pés do vilarejo, as uvas em vinho foram rapidamente esmagadas. Velhos vestidos estendidos ao sol para recuperarem o ar. Na clareira, as mulheres resgatavam as maçãs coradas de suas bochechas; homens faziam a barba e velhos voltavam a sorrir. Preparavam-se todos para a grande festa, a grande oportunidade, a primeira vez que muitas moças veriam quem eram os meninos, seus futuros maridos, a vida eterna que se reiniciava.


Desde o começo da tarde, em toda a vila, o cheiro de torta assada. Conversas animadas por trás das portas, janelas escancaradas. Vizinhos se cumprimentando, indo e voltando, carregando sacos de farinha, tábuas de madeira, um palco sendo montado. E poeira foi soprada para fora das flautas. Tambores e violinos reafinados. Os jovens poderiam sonhar novamente que o sonho de artista era possível, pois era possível dormir e sonhar.


De noite, a festa. Música alta e cantoria. Naquela noite, ninguém dormiria. As crianças corriam ao redor da fogueira. Os homens comportavam-se como crianças. Um ou outro escândalo - ou atrevimento - alguém que bebera além da conta. Um beijo proibido atrás da igreja. Uma mão num peito, ou um olhar insinuante. Fazia parte. Aquilo era comemorar, e faltava a todos a prática. Mas aprenderiam, aprenderiam; aquela seria a primeira noite de uma eterna vida.

Então os homens em roda comemoravam – e comemoravam – comemoravam o quê? Então as mulheres sentadas riam – e comemoravam – comemoravam o quê? As crianças e os velhos, os músicos tocando, o discurso de comemoração – o que comemoravam? Ah, o Dragão estava morto! E ergueram mais um brinde, porque o Dragão nada mais bebia.


Mas... quem matara o Dragão?

A floresta voltou a dar frutos e o rio voltou a correr líquido, mas ninguém se perguntou: e quem matou o Dragão? O fogo deixou de descer a montanha e nunca mais se ouviu seus rugidos, e ninguém se perguntou: mas quem matou o Dragão? O Dragão estava morto – os pássaros criavam novos ninhos – mas ninguém se perguntou ou agradeceu, ninguém subia ao palco da vila para agradecer os louros da fama, o ouro, os presentes, as medalhas, a festa que, de fato, era feita para ele. Quem matara o Dragão?


E os homens em roda se perguntaram: quem matara o Dragão? E as mulheres sentadas se perguntaram. E os velhos e as crianças, as mães com as baias da saia puxada pelos filhos: “Quem matou o Dragão?” Todos se perguntaram. E a pergunta ecoou pela festa como uma dúvida em uníssono. Estavam todos comemorando, mas, afinal, quem era o homenageado?


E os homens de bíceps grossos abaixaram os olhos envergonhados. As mulheres orgulhosas de seus maridos os encararam decepcionadas. Os velhos que tudo sabiam, e as crianças que acham tudo possível, todos trocaram olhares furtivos de negação confirmando: “não fui eu.”


“Ele mora no final da floresta, depois do lago, ao pé da montanha,” se ouviu. Aparentemente, alguém sabia o endereço do matador do Dragão. No final da floresta, depois do rio, ao pé da montanha, ele morava. O palpite ecoava como certeza, se propagava, e logo todos refestelavam-se com a certeza. Mataram o Dragão. E eu sei quem foi.


E entre as rodas dos homens se comentava: O cara no final da floresta, conheço, grande personalidade. E as mulheres sentadas diziam: Ahhh, que herói, e tão sozinho, lá no pé da montanha. E os velhos e as crianças, as mães com as barras da saia puxadas, todos comentavam o feito do herói anônimo, e todos tinham algo a acrescentar.


Mas... e os louros, e o ouro, onde está esse herói que não sobe ao palco para comemorar?


E os homens nas rodas concordavam que era tarde e que a cidade ficava longe. Um matador de Dragões já deveriam estar dormindo, cansado, não era pessoa de farrear. E as mulheres sentadas pensavam que “ele sim,” olhando seus homens que se embedavam, ele sim, o matador de Dragão, devia ser homem sempre a dormir cedo, acordar cedo para trabalhar. E os velhos, as crianças, todos na vila seguiram com a noite, sabendo que o Salvador dormia tranqüilo. Não seriam eles que lhe iriam acordar. Apesar da música alta, risadas e cantoria...


Assim o dia seguinte nem acordou em ressaca. Não. A cidade despertou sorrindo, sem saber direito para onde seguir, mas com a certeza de que: sim! Este é um novo dia! E todos acordaram ansiosos em saber o que seria do seu Salvador. Ele merece uma medalha: sim! A chave da cidade: sim! E os homens, as mulheres, e os velhos, as crianças disseram: sim! Ele merece uma estátua! Um monumento de bronze, no meio da praça. Era só encomendar. A questão é que ninguém sabia ao certo descrever como era o Salvador...


“É um homem como todos nós, normal, poderia se passar por qualquer um.”


“Tem cachos loiros, longos, lábios carnudos e uma pele de príncipe, com olhos que poderia hipnotizar até um Dragão.”

“Besteira, é um herói. Com as mãos ásperas e a cara cansada. Uma barba espessa, levemente grisalha. Mais alto, mais pesado e maior do que jamais se viu.”


E os homens, as mulheres, velhos e crianças perceberam que ninguém sabia exatamente quem e como era o matador do Dragão.


Bem... ainda precisariam levar a medalha... Ainda precisariam lhe entregar a chave da cidade. É claro que teriam que agradecer o ato heróico. Era só questão de tempo. Iriam até o fim da floresta, depois do lago, ao pé da montanha, agradecer. E o convidariam para uma nova festa. E lhe fariam uma cerimônia solene. E lhe entregariam os louros e o ouro, tudo o que ele quisesse; afinal, esse homem não livrara a vila de um dragão?


Assim, os velhos se reuniram. Reuniram-se os ricos e sábios. Os senhores mais respeitosos da vila se juntaram e disseram: “nós vamos.” Afinal, eles eram os anciões. Se alguém tinha de prestar homenagem eram eles, os velhos reverenciando as novas gerações. Juntaram-se os senhores da vila e anunciaram: “estamos indo agradecer ao Salvador.”


Escreveram-lhe um longo discurso. Preparam um diploma e um certificado. Ensaiaram a devida solenidade a ser encenada na porta de sua casa. O Salvador seria agraciado com toda a pompa.

Carregaram-se de todas as homenagens. Despediram-se e se encaminharam pela estrada. Agora não havia mais medo, no caminho pela floresta só havia os inofensivos animais selvagens. O Salvador matara o Dragão.


Depois da floresta, além do lago, ao pé da montanha, chegaram em sua casa. Os anciões da vila repletos de louvores. Pigarrearam silenciando-se e bateram timidamente em sua porta. Suspense. Uma quietude se prolongando. Um leve farfalhar lá de dentro. Será que o Salvador está dormindo? Então ouviram uma voz perguntando:


“Quem é?”

E os anciões da vila se entreolharam tímidos. E disseram que eram os anciões da vila. E vieram carregados de homenagens. Queriam agradecê-lo por ter matado o Dragão. Que admiravam sua humildade. E que nenhum tributo que lhe prestassem seria o bastante.


“Vocês não têm nada a me agradecer. Vão embora.”

E os velhos da vila se entreolharam desconcertados. E acrescentaram que seria só um minuto. Que sabiam que ele era homem ocupado. Mas vieram de longe, eram velhos, e estavam cansados. Ficariam só um minuto, fariam um discurso e voltariam à vila.

“Vão embora.”


E o Salvador nada mais respondeu nem abriu a porta. Desconsolados, os velhos estenderam as mãos para o céu e viram que não poderiam mais nada fazer. Teriam de caminhar carregados com suas homenagens pela floresta, além do lago, longe da montanha, de volta para vila.
Ao chegarem lá, foram recebidos com ansiedade pelos homens, as mulheres, as crianças.

“Como foi o discurso?”


Ele é bonito?”

“Queremos saber tudo; ele ensinou como é que se mata um dragão?”

E os velhos frustraram a todos tendo de contar que foram recebidos com uma porta fechada e do mesmo modo partiram, sem nem ao menos serem recebidos pelo seu Salvador.

“Ah, mas o quê um matador como ele iria querer com esses velhos?”

“Um guerreiro destemido não se importa com homenagens!”

“Erramos nós, ao não levar um prêmio que ele realmente merecesse!”

Assim, se juntaram os homens. Reuniram-se os mais fortes e bravos. Os jovens heróis da vila se adiantaram e disseram: “deixem que nós vamos!” Afinal, eles também eram heróis. Podem ter matado apenas raposas comedoras de galinhas, enfrentado peixes que se debatiam no anzol, mas eram o que a vila tinha de melhor. E poderiam trocar experiências com o que Salvador tivesse a dizer. Não teriam melindres ao bater-lhe a porta. Juntaram-se os heróis da vila e anunciaram: “estamos indo comemorar com o Salvador.”

Coletaram riquezas como presente. Reuniram doações de jóias e ouro. Iriam presentear o Salvador com dinheiro – e também levaram comida e cerveja. Beijaram suas mulheres. Afagaram suas crianças. Tranqüilizaram os velhos. Encaminharam-se para a floresta e prometeram voltar logo, ainda antes do anoitecer.

Depois da floresta, além do lago, ao pé da montanha, chegaram à casa. Os grandes heróis da vila, carregados de ouro. Assobiaram pedindo silêncio a todos e bateram com força na porta de madeira. Ficaram de ouvido. Segundos depois, um leve farfalhar. Uma voz rouca, lá de dentro, perguntando:

“Quem é?”

E os heróis da vila falaram todos ao mesmo tempo. E disseram que, como ele, eram os heróis da região. Que reconheciam nele um herói, vinham trazendo presentes, ouro, cerveja. Queriam festejar com ele por ter matado o Dragão. Admiravam sua valentia. Se ele apenas abrisse a porta, festejariam e agradeceriam, generosamente, agradeceriam.

“Vocês não têm nada a me agradecer. Vão embora.”

E os da homens da vila se entreolharam intrigados. E acrescentaram que ele já tinha feito sua parte, agora não havia por que não festejar. Que tal só uma cerveja? Ou então deixariam o ouro. Mas eles também tinham um belo carneiro assado e seria um desperdício; com certeza ele não precisaria ser tão rígido, ele podia se permitir um dia de farra.

“Vão embora.”

E o Salvador nada mais respondeu nem abriu a porta. Ofendidos, os homens deram de ombros e viram que não poderiam fazer mais nada. Resolveram repartir lá mesmo o carneiro, dividiram entre si a cerveja. Voltaram pela floresta, para além do lago, longe da montanha, para a vila, bebendo.

Na chegada, esperavam ansiosos os velhos, mulheres e crianças.

“Voltaram logo...”

“Afinal, como é o Salvador?”

“Conte-nos tudo; ele gostou do carneiro que preparamos?”

E os homens abaixaram a cabeça envergonhados, pois tinham bebido toda a cerveja, comido todo o carneiro, voltado com todo o ouro e jóias, sem nem conseguir ver o rosto do Salvador.

“Ah! Vocês nem tentaram realmente, foi só uma desculpa para beber!”

“Vocês falam, falam, mas só ficaram de farra pela floresta!”

“Foi culpa nossa, de deixar essa tarefa na mão de imprestáveis. Agora é nossa vez!”

E dessa vez, se juntaram as mulheres. Pegaram as jóias, pegaram o dinheiro, as homenagens. Arrumaram-se com seus melhores vestidos e se encaminharam pela estrada. Os homens se entreolharam receosos. Aquele bando de mulheres, na porta da casa de um bárbaro... Bem, certamente ele abriria. Aquele era um cortejo que ele não poderia recusar. E ainda que temessem que uma mulher ou outra não voltasse, cada um deles pensava: “Não seria a minha, ah, não, não será a minha. Há mulheres muito melhores aí para ele escolher...”

Cruzando a floresta, além do lago, ao pé da montanha, as mulheres chegaram. Não tinham tantos presentes ou homenagens como outrora, mas eram mulheres. E conversando animadas, rindo e cochichando, bateram na porta e bateram palmas: ó-de-casa. Escutaram atentamente. E em pouco tempo o Salvador novamente perguntava, cada vez mais impaciente:

“Quem é agora?”

E criou-se uma balbúrdia entre as mulheres. Falaram todas ao mesmo tempo e nada podia ser compreendido. Tentavam pedir para ele abrir a porta, tentavam falar de mansinho. Investiram em seus sons mais sedutores – mesmos as mais gordas, as mais velhas, as menos atraentes adotaram tons de loucutora. Mas entre suas próprias palavras escutaram a voz ríspida do outro lado da porta:

“Não, não, não há o que agradecer. Vão embora!”

E as mulheres da vila se silenciaram. Olharam umas às outras por um instante, então voltaram a falar. Todas ao mesmo tempo. Em altos brados. Dessa vez, não eram tão sedutoras, nem tinham voz mansa. “Abra logo essa porta, quem você pensa que é?” “Viemos de longe, estamos cansadas.” “Que tipo de homem é esse que se recusa a receber homenagens da mulheres?” Mas não adiantou nada que disseram. Só ouviram o tom ronco, mais uma vez, de um Salvador que parecia muito cansado.

“Vão embora.”

Depois ele ficou quieto, e não as recebeu. Ofendidas, as mulheres cuspiram na porta, chutaram,

deram meia volta e voltaram para vila discutindo. Para além do lago, atravessando a floresta, com a montanha ao longe, reclamavam de dores no pé, nas costas, varizes. Mas o que mais lhes constrangia era chegar de volta à vila de mãos abanando. Ou melhor, o contrário, mãos carregadas, ainda cheias de ouro, jóias, homenagens...

“E então?” perguntavam na cidade os velhos, os homens, as crianças. As mulheres nem precisaram responder, com seus semblantes decepcionados. Os homens bateram o pé. Os velhos coçaram a barba. As crianças abriram o berreiro. A vila toda estava desconsolada.

“Já fomos nós com homenagens,” pensaram os velhos.

“E nós com ouro e comida,” disseram os homens.

“Nós levamos tudo o que tínhamos,” acrescentaram as mulheres. “O que nos falta?”

E todos se entreolharam, e olharam para as crianças... Já tinham mandado os velhos, os homens, as mulheres... As crianças pareciam entusiasmadas em tentar. As crianças também queriam conhecer o Salvador. Os meninos na pré-adolescência enchiam o pé exclamando: “deixem conosco” e a vila toda ponderava que não custava tentar...

“Mas que diabos! Quem esse homem pensa que é? Já mandamos nossos velhos, nossos homens, nossas mulheres e todo tipo de homenagens. Agora vamos mandar nossos filhos?” E eles deram ouvidos à voz da razão.

“Agora chega de boa-vontade, não vamos levar mais nada!”

“Vamos todos juntos, ele vai ter de nos receber!”

“Se não for por bem, vai ser por mal. Botamos aquela porta abaixo!”

E os homens, as mulheres, os velhos e as crianças se juntaram todos numa grande passeata, atravessando a floresta, além do lago, ao pé da montanha, até a porta daquela casa. Iam carregados com tochas, enxadas, espetos. Se não fosse por bem, seria por mal; botariam aquela porta abaixo. Mas antes, dariam mais uma chance. Silenciaram-se num “psiu” estrondoso. Esperaram todos se alinharem em frente à porta e bateram suavemente.

“Quem é?”

Responderam de mansinho. “Viemos mais uma vez agradecer por ter matado o Dragão.” “A vila toda está aqui.” “Abra a porta, por favor, vamos apenas cumprimentar as mãos e logo vamos embora.” Mas a voz do outro lado respondeu rouca, estafada e inflexível.

“Já disse que não há o que agradecer. Vão embora.”

E a vila toda perdeu a paciência. E perderam a paciência todos de uma vez. E puseram a gritar, espernear, esmurrar a porta. “Abra a porta seu orgulhoso desgraçado!” “Você se acha melhor do que a gente? Dê as caras e nós vamos ver!” “Estamos avisando, abra essa porta agora ou a botamos abaixo.”

Mas não houve mais nenhuma resposta lá de dentro. E mesmo que houvesse, os aldeões não ouviriam. Já estavam arrebentando a porta, com punhos e paus, cabeçadas e chutes. Foi fácil. Em poucos segundos a porta cedia em frangalhos enquanto o povo caía uns sobre os outros.

“Agora você vai ver o que é bom pra tosse!”

“Acha que pode humilhar nossos homens, mulheres e idosos?”

“Ninguém decepciona nossas crianças!”

E ao erguerem o rosto, dentro da casa, procurando o Salvador, compreenderam tudo. Espremido naquele espaço restrito, com a cabeça batendo no teto, com os olhos inchados de quem há muito estava dormindo, estava ele, o próprio Dragão. Não havia Salvador.

Num abrir e fechar de mandíbulas, a vila se foi. Sem o menor esforço ou luta. O Dragão apenas avançou numa bocada. E engoliu homens, mulheres, velhos e crianças.

(c) Santiago Nazarian, 2010.

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