"Minhas cicatrizes contam uma história. Mais bonita quando lida em braile."
Tenho preferido me relacionar com analfabetos. Só eles são capazes de aproveitar o que tenho a oferecer sem me devolver um email no dia seguinte com algo do tipo: "Eu também escrevo. Quando tiver tempo, dê uma olhada."
Detesto essa gente instruída, argh, detesto gente com aspirações. O meteoro já tá caindo, meu amor, vamos desistir de subir e nos deitar. E nos amar. Oh!
Mas até para isso é preciso se elevar...
Os analfabetos também têm a conveniência de não perguntarem sobre meu "Ex", nem sobre nenhuma outra letra tatuada no meu corpo. Eles interpretam tudo como desenhos e às vezes até confundem tatuagens e cicatrizes e acham que é tudo a mesma coisa e não entendem o que significa. Outro dia sentava-se no meu colo um assim. Analfabeto porque:
a) Era uma criança inocente
b) Um estivador inocente
c) Um dislexo rebelde
d) Um cego enrustido
e) Um estivador mirim dislexo e cego. Porém culpado.
E ele apontava para minhas cicatrizes tentando entender o significado, como o das tatuagens. Listras indie no braço, queimadas pelo forno aceso. Unha preta à lá emo, esmagada pela porta do carro. Hematoma-chupão no pescoço, de picada de aranha. E, antes que ele encontrasse, encostei seu dedo entre meus cabelos, no alto da cabeça para mostrar a protuberância que - não, não era um chifre - foi a porta do congelador, quando eu tirava o rosto de dentro da geladeira.
(Por ele ser analfabeto, nem precisei explicar que eu estava com a cara na geladeira como uma releitura glacial do suicídio de Silvia Plath)
Mas só depois de tudo explicar comecei a perceber que minha casa andava muito agressiva comigo. E que não bastavam os vazamentos e panes elétricas e ataque-cardíaco do meu computador, agora o apartamento também queria acabar com minha raaaaaaaça!
E me dá uma preguiça, porque isso já me inspirou uma novela de um cara trancado num apartamento, e um conto de um garoto que vai apodrecendo, e um romance de uma mulher que se suicida várias vezes; então percebo que chega, que é hora de mudar de tema, e que meu ambiente, por favor, se torne um environment.
Cheguei até a comprar um computador novo, há mais de uma semana, mas ele não quer vir para esse lar amaldiçoado, fica se embonecando na casa dos padrinhos e, quando eu ligo, manda dizer que não está.
"Stratford, não estamos nos entendendo..."
Para tentar ser uma pessoa mais integrada - ao menos ao mundo dos humanos visualmente lidos - fui hoje ao desfile da Fábia Bercsek no SPFW. Psicodelia indiana, estampas de cogumelos, tons violetas, brilho e glamur. E eu - maldito alfabetizado - não saberia exatamente explicar em palavras (também não li com os dedos, não-não). Só achei tudo muito suave e muito pacífico e nenhuma fivela de cinto me atacou, e nenhum pedaço de tecido me enforcou, e até a cadeirinha arriscada de papelão da primeira fila suportou muito bem meus 68kg e foi boa comigo.
Veja só, como no mundo da moda, tudo é tão lindo.
E você diz que tem um conto pra me mostrar?
Ps- Ilustração lá de cima parece sim com a capa de "A Morte Sem Nome", porque foi feita também por Guilherme de Faria, que foi casado durante a era hippie com Elisa Nazarian, e que junto a ela deu origem a toda essa maldição.