ENTREVISTA
(Publicada esta semana na capa do caderno de cultura do Jornal "O Popular," de Goiânia. Gracias ao leitor André, que colocou o texto na íntegra lá na comunidade do Orkut)
Caminhos de Santiago
Rogério Borges
Santiago Nazarian é um escritor jovem, prestigiado e que está entre as estrelas da nova geração da literatura brasileira. Aos 32 anos, ele acaba de lançar seu quinto livro – O Prédio, O Tédio e O Menino Cego (Ed. Record) –, um romance em que elenca personagens envoltos em metáforas que, numa fase difícil da vida, mostram como bons e maus sentimentos podem interagir e até se complementar. O que marca, porém, este novo trabalho de Nazarian não é a temática, mas o que o autor faz com ela. Aí está a diferença entre quem sabe escrever e quem pensa que sabe. Nazarian sabe e seu maior talento é imprimir um ritmo seguro e atraente às narrativas. É assim neste mais recente livro e foi assim em seus títulos anteriores, como Feriado de Mim Mesmo e Mastigando Humanos. Tocando em feridas sem ser panfletário, abordando assuntos polêmicos sem transformar sua literatura em bandeira de grupo, criticando a intolerância sem se isolar em guetos, o autor vem construindo uma obra consistente e interessante. Nesta entrevista ao POPULAR, Santiago Nazarian dá sua visão sobre a arte de escrever ficção, informa quais são suas fontes de inspiração, opina sobre inadaptabilidade e preconceito e revela que não tem saudades da infância.
Muitos de seus personagens caracterizam-se por não se enquadrar em padrões, por ser marginalizados. Como é criar seres que não querem ou não conseguem se adaptar?
Meu tema básico – de todos meus livros – é a construção e a preservação da identidade. O indivíduo tentando sobreviver numa sociedade massificada e imbecilizada pelo cotidiano (como nos três primeiros livros) ou por ataques de dinossauros ou zumbis (que surgiram como uma alegoria pop desse embrutecimento, nos dois últimos romances). Acho que essa visão do outsider é bastante natural para um escritor – que já é um excluído e pertence a uma minoria por princípio. Eu ainda tenho outros potencializadores dessa diferença por ser gay, por ter valores um pouco diferentes da maioria... Mas a verdade é que todo mundo pertence a algum tipo de minoria, todo mundo tem seu grau de marginalização – por ser gordo, por ser negro, por ser pobre, homossexual. A questão é que a maioria das pessoas – talvez muitos dos escritores, inclusive – busque os pontos em comum, busque o que nos aproxima, não o que nos diferencia. Eu sempre procurei ressaltar e expor as diferenças, o individualismo, a identidade. E isso se deve basicamente à minha criação, onde a diferença era verbalmente ressaltada. Todos na minha família próxima – pais e irmãos – são artistas. Então sempre houve essa valorização da diferença. Mas ao mesmo tempo, eu não posso me considerar marginal no quesito socioeconômico. Nunca estudei em escola pública, cresci em casa com piscina, fui pra Disney... Se isso tem um lado alienante, tem o outro de estar ouvindo sobre Kafka na sala de jantar.
Nas suas narrativas há a denúncia da intolerância entre as pessoas. Vivemos em tempos inóspitos?
Por incrível que pareça, eu tenho uma visão bastante otimista nesse campo. Acho que hoje há muito mais espaço para a diferença, com toda essa segmentação, a internet, centenas de canais a cabo. Na minha adolescência, os diferentes ainda estavam isolados. Hoje o moleque esquisito do interior do Mato Grosso pode montar um fotolog, postar vídeos no Youtube, escrever um blog e virar uma celebridade alternativa em São Paulo, encontrar “sua tribo”. Mas não foi com essa realidade que eu cresci, talvez então por isso uma intolerância se reflita nos meus textos. Eu não estou escrevendo especificamente sobre hoje, não estou escrevendo sobre ontem. Estou escrevendo sobre um tempo e um universo próprios, reflexo de tudo isso que vejo, que vivo e que vivi.
Narrativas que falam das dúvidas e decisões de adolescentes e jovens costumam ser associadas ao gênero romance de formação. Como você situa seu último trabalho neste sentido?
Eu gosto do romance de formação. E uma das grandes influências desse meu livro novo é um romance de formação clássico: A Fábrica da Violência, do Jan Guillou. Mas eu também tenho um pé forte no pop, no trash. Então prefiro definir como “existencialismo bizarro”.
Estilo direto de narrativa, mas com muitas subversões. Como é trabalhar estes níveis da criação literária, mesclando inovações do estilo com algumas tradições?
Eu me sinto muito confortável nesse universo. Escrevo com prazer, então é tudo muito natural. E eu deixo fluir todas as minhas maiores influências. Eu não tenho filtros – como acho que já tive – de pensar: “ah, não, talvez isso não seja tão literário” ou “talvez isso seja literário demais, talvez seja um pouco pedante”. Nos três primeiros romances eu ainda quis tornar flagrante minha densidade e consistência, então não havia muito espaço para o humor, para as referências, para a brincadeira. Em Mastigando Humanos foi o contrário, eu quis tentar ser o mais lisérgico, debochado e pop possível. Agora acho que estou chegando a um equilíbrio. E um equilíbrio formado por todo meu repertório, tudo o que me constitui.
O que você guarda dos tempos de adolescência? Aquelas experiências o inspiram a escrever?
Não tenho a menor saudade. Principalmente, não tenho saudades da infância. Não passei fome, não sofri grandes traumas, mas era uma criança muito tímida, não socializava, não gostava das coisas de que os meninos gostavam... Acho muito cruel essa fase da infância, de não poder ser quem realmente é, de ter de se enquadrar; até porque você não tem plena consciência ainda da sua identidade e cumpre um papel que esperam de você – e, claro, você não pode arcar com sua própria vida. Na adolescência, principalmente uma adolescência mais avançada, você já começa a assumir sua identidade. Por isso considero essa uma fase mais especial, ainda que dolorosa e difícil. Mas acho que a juventude, quando você já mora sozinho, pode arcar com sua própria vida, e ainda está em plena forma física, é a melhor fase da vida.
Você é um autor reconhecido por seus livros, mas que não abdicou de escrever em seu blog. Como avalia esta relação entre suportes diferentes para a criação literária? Blogs podem ser literatura? O livro de papel vai acabar?
Literatura de blog pode ser literatura, mas no meu blog não é. Lá eu falo de livros que li, de filmes a que assisti, de eventos em que vou participar, de coisas que escreveram sobre meus livros. E, na verdade, minha história com a internet – ou com o blog – veio depois da minha história com a literatura. Eu criei o blog depois de publicar A Morte Sem Nome porque achei que precisava desse espaço para divulgar meus lançamentos, ter esse veículo independente de expressão e, por que não, autopromoção. Acho importante para o escritor de hoje. É uma forma de o leitor o achar, saber mais sobre você, seu universo e seus livros, antes de comprar. Mas eu uso o blog principalmente para isso, não o contrário. Já recusei fazer matérias e participar de exposições sobre blogs porque meu interesse principal é que o blog leve as pessoas aos meus livros (e aos livros, filmes, músicas, peças de que gosto). Quanto a se o livro vai acabar, não creio. Acho que há espaço para literatura em papel e na tela.
Seu trabalho desperta o interesse de grandes editoras, fazendo-as disputarem seu passe. Como é trabalhar com este respaldo e com esta responsabilidade?
Normal. Na verdade, desde o segundo livro publico por grandes editoras (Planeta e Nova Fronteira). E as editoras não interferem no texto. Inclusive elas não querem ter esse trabalho, elas querem o mais pronto possível, para diagramar e distribuir. Não considero “uma responsabilidade” publicar por uma grande editora. Meu texto está lá, já escrito. Se ela comprou, é porque acha que tem possibilidades comerciais. Eu ajudo no que for possível, mas vender é responsabilidade da editora. A minha é escrever; e quando assino um contrato de um livro, já cumpri essa minha parte.
Já ouvi gente dizendo que seus livros são melancólicos. Você concorda? Você é melancólico?
Sim. Talvez seja até uma coisa meio classe média, esse tédio, esse ar blasé. Não posso fugir disso. Eu gostaria de ser mais hardcore, de ser mais pesado talvez, mas consigo me aproximar mais de uma apatia, de uma melancolia. Acho que isso funcionou bem em Feriado de Mim Mesmo, que é um livro muito calcado no tédio. Eu sou muito entediado, até por ser hiperativo. O mundo corre muito lento pra mim.
Os autores brasileiros costumavam reclamar que não era possível viver de literatura. Hoje, alguns deles declaram que o cenário já mudou. Você vive de sua literatura?
Sim. Acho que hoje o escritor é visto como um “detentor de conteúdo espontâneo” que permite que ele sobreviva. Por exemplo, uma revista mensal queria fazer uma matéria sobre a Hebe Camargo, mas a Hebe não queria dar entrevista. “Chame o Santiago, que ele pode escrever sobre a Hebe sem nem falar com a Hebe!” Eu vejo isso de forma muito positiva. Eu acho que o escritor tem uma função diferente do jornalista, até do cronista; ele pode escrever sobre o que não está lá, sobre o que não existe. E as pessoas, os veículos estão cada vez mais carentes desse conteúdo. A informação está por todos os lados, as pessoas precisam de algo além. Isso amplia as possibilidades de trabalho para o escritor. Eu vivo dessas coisas e muito de tradução, que também é um trabalho intimamente ligado com minha literatura, me ensina muito e que eu gosto.
Um escritor jovem desperta curiosidade ou desconfiança?
Ambos. Talvez eu esteja chegando na fase ideal; não sou mais um moleque, então já há mais respeito, e ainda tenho certo frescor... Eu não posso reclamar do reconhecimento que já tive, mas quero sempre mais. Ainda há prêmios a ganhar, e leitores a colonizar.