PRESENTINHO DE NATAL
Aproveitando a época cristã e de viagens, mando continho meu, quase inédito (foi distribuído em formato de cordel pelos organizadores da Freeporto ao público de lá, no Recife, em novembro deste ano). É dos meus contos novos mais curtos (por isso torna-se viável colocar aqui) e entrará no meu primeiro livro de contos a ser lançado em 2011, pela Record.
Taí:
VOCÊ É MEU CRISTO REDENTOR
Eu estou sempre viajando. Eu nunca conheço um lugar a fundo. Eu olho para você, vestindo as meias, e sinto em seu olhar fugidio a decepção. Você não pode se apaixonar. Por isso veio para cá. Por isso se entregou na primeira noite. Você sabe que sou um turista, que nosso amor é condenado, por isso fez sexo comigo. E agora que seus hormônios foram decantados, seu colo do útero preenchido, sobra apenas a decepção de não poder e nem querer nada mais. Uma mulher como você não foi feita para isso. Você veste as meias sentindo a decepção daquele vazio. Eu nunca vou poder te preencher.
Mas eu também não me satisfiz. Sou apenas um turista. Visito as cidades e passo por você. Passo por cima. Você é meu ponto turístico. Mas não te conheço a fundo, nem depois de pernas abertas, nem depois de ânimos e hormônios decantados. A gente pode visitar uma cidade e se hospedar num hotel. A gente pode visitar museus e comprar souvenires. A gente pode até penetrar numa moradora local. Mas só se sente realmente em casa quando experimenta uma vida inteira, e uma morte por lá.
Por isso eu mato.
Você é minha Torre de Pisa.
Trouxe você há poucas horas, durou pouco. Você não sabia, mas eu bem sei, bem sei que o sexo é apenas uma ponte para chegar lá. Uma forma de te conquistar. Uma desculpa para nos trancarmos entre essas quatro paredes, ficarmos a sós, sairmos da vista dos outros turistas, dos flashes dos orientais, as filas que não levam a lugar algum. Viemos rápido para cá. E este é meu lar tanto quanto seu, um quarto de hotel. Nada pessoal. Você observa ao redor sem nada a captar sobre mim. Eu não moro aqui.
Você nunca me leva para casa. Você nunca me mostra o lugar onde mora. Seria interessante aprender onde vive, como vive, onde vive a mulher que eu vou matar. Mas não é seguro. Nem pra mim nem pra você. Decidimos que o melhor é irmos a um quarto de hotel, meu quarto de hotel. Eu também não moro aqui, mas este quarto é mais meu.
Preciso perder esse péssimo hábito de beber as garrafas d’água do frigobar, encher com água da torneira e colocar de volta. Por que faço isso, afinal? Eu não vou mesmo pagar. Sempre deixo os hotéis antes que a camareira possa entrar. Tenho pena dela. Tenho pena da camareira. Faço uma baita sujeira. Queria ser um homem mais limpo. Queria a polidez dos habitantes locais. Queria um estrangulamento rápido e seco. Mas faço uma sujeira danada, e sangue, e facada, e bato a cabeça da mulher na parede, e na pia, no espelho, no banheiro, a mulher vomita. É uma nojeira. É sempre assim. Eu nunca consigo. Eu sempre me empolgo. Deve ser como o sexo. O sexo estético e inodoro dos filmes pornôs ruins, e o que a gente faz nessa casa, nesse lençol. Por mais que eu tome banho, por mais que eu prenda a respiração, há sempre o cheiro fétido, orgânico, persistente do ser humano.
Que nojo.
Não, deve ser como o sexo. Deve ser como o sexo, depois de satisfeito. Bate aquele arrependimento. E você não quer nem mais olhar, dormir com sua Mona Lisa do Louvre . Sente nojo dos seus pelos. Nojo, dos seus pelos. Deve ser como isso, o sexo como a morte. Deve ser por isso que, depois de feito, eu sempre me arrependo. Eu sempre acho que nunca precisarei mais. Um chaveirinho no corcovado. Mas com os hormônios repostos, lá vou eu novamente. Fazendo turismo sobre você.
Você é meu porto desejado.
Espero você virar o rosto e dizer. “Quando você parte mesmo?” Espero que você se importe. Que insista um pouco mais, mesmo sabendo que eu vou partir, que pergunte até que dia, se tem mais uma chance, se pode mais uma vez, para que eu também possa passear mais uma vez sobre você. Comer novamente aquele peixe de água doce. Dar mais uma volta na roda-gigante. Um último mergulho na praia, antes da balsa partir. E você não pergunta. Você não pergunta? Se perguntar uma única vez, talvez eu possa deixar você partir. Se você quiser saber um pouco mais, talvez também se aprofundar na minha gruta do diabo, eu possa deixar você sair, e voltar. Mas você, como sempre, nunca pergunta.
É que não foi tão bom assim. Eu sei. Você foi minha estação de esqui - interditada. Podemos nos aconchegar no hotel, podemos aproveitar o fondue e a lareira, mas não estamos fazendo o que viemos realmente fazer, não fazemos o que realmente queremos. Minha tempestade de neve. Não posso dissimular em sexo o que eu realmente queria de você. Queria penetrar ainda mais dentro, me aprofundar ainda mais fundo. A gente nunca conhece realmente uma pessoa, a não ser que passe uma vida inteira juntos...
Você se prepara para levantar. Colocou as meias, a saia, o tailleur. Está de costas para mim. Coloca os brincos. Você não vai me perguntar? Eu continuo nu, deitado na cama, eu não te mandei sair. Sou apenas um turista, um viajante, não tenho nada para fazer. Esses cenários não me interessam realmente. Os seus museus não me trouxeram até aqui. Pode me dar mais uma dica de restaurante? Talvez me convidar para jantar com você? Quando você sair, se você sair, eu ficarei só com a programação da TV. Ficarei ouvindo os estalos dos outros quartos, casais se preparando para o teatro, e eu me perguntando o que vim mesmo fazer aqui. O que vim mesmo fazer aqui? Se eu deixar você sair...
Quero ouvir a última frase que tem a dizer. Quero saber. Quero ouvir seu sotaque, e qual seria a última coisa que você diria, acreditando que eu a deixaria sair. Mas tenho medo. Sempre espero até o último momento, para ouvir como você vai se despedir; talvez dar uma última chance, uma única chance, talvez a chance de você querer me rever; mas você não diz; você não diz o que eu quero ouvir; e às vezes eu me arrependo de ter esperado tanto tempo só por um “boa viagem”, “aproveite”, “preciso ir”. Tudo o que ouvi já tantas vezes, na mesma inflexão, com o mesmo dialeto. Às vezes tenho medo de você fugir. Espero demais, e às vezes, às vezes... uma ou duas vezes, na verdade, você apenas abre a porta e sai, sem se despedir. Nem me dá tempo. Então tenho medo de esperar o que estiver por vir. Tenho medo de esperar por essa última frase e ela nunca chegar, você ir embora antes, batendo a porta em mim. Preciso ser mais cauteloso. Preciso esperar o momento certo. Preciso agir antes que tenha passado o momento, antes de dar chance de você fugir...
Suas costas são dunas para meu buggy capotar.
E na verdade têm o mesmo gosto, o mesmo dorso, o mesmo cheiro de uma mulher da Escandinávia, com um perfume da Itália, salgada pelo Atlântico. Todos os pontos turísticos são iguais, se você é o mesmo a visitar...
Isso está se tornando cansativo. Me pergunto qual é o objetivo afinal dessa viagem. Como uma excursão a Roma-Madrid, Bruxelas-Bruges, Paris-Antuérpia-Amsterdã-Eurodisney, tudo em quinze dias. Como posso conhecer seu mundo a fundo, se você já está assim, já indo? Seu tom pode ser mais pálido. Sua pele pode ser mais fina. Sua curvatura pode ser um pouco mais sinuosa, insinuante ou um pouco mais contínua, mas na verdade tem o mesmo gosto, o mesmo dorso, a mesma fotografia impressa em minha retina.
Quem me dera poder escrever um guia de viagem com a verdade implícita. Vasculho meus guias de viagem, procurando a verdade implícita. Entre as páginas, por trás do serviço, talvez algum autor-viajante tenha encontrado o que eu procuro. O que eu procuro? A verdade implícita. Talvez algum autor-viajante tenha encontrado. Vasculho por entre as páginas e penso se alguma mancha de sangue pode ter laqueado o que eu preciso. Mas não posso consultar isso enquanto ainda estou aqui, com você, enquanto ainda estamos no pós-coito, os semens flutuando pelo quarto, e a manipulação das páginas afiadas de um guia só seriam vistas por você como mera insegurança e inaptidão de um turista.
Ah... Você é minha Polícia da Imigração.
Todas as fronteiras estão abertas para mim. Você sabe, eles só temem aqueles que querem ficar. Os carimbos de ida e vinda, entrada e saída, depõem, estranhamente, a meu favor. Perceba, eles não querem mesmo que eu fique com você. Raízes seriam como algemas, há toda uma política interna a me libertar. Quanto mais eu fujo, mais me empurram para longe, mais varrem a sujeira para baixo do tapete, como se nosso sêmen, nosso sangue, não fosse problema deles.
Você é meu aquecimento global.
Você se levanta. E senta. Cata as roupas dispersas pelo quarto – como um incômodo. Os saltos. O sutiã. A camisa. Eu só posso assistir.
Os canais a cabo nunca mostram o que eu preciso. Os mesmos filmes, em todos os lugares; séries em progresso, que eu nunca vou conseguir resgatar o sentido. Não importa para onde eu fuja, aonde me abrigue, onde quer que eu me esconda, as novelas serão mexicanas e os filmes de Hollywood...
Aperto o controle remoto. A televisão não acende. Aperto o controle remoto. Droga, não funciona. Sempre é bom ligar a televisão – programas de picar e fatiar vegetais em minutos – sempre é bom ter o ruído dos infomerciais para camuflar eventuais gritos. Preciso conter seu suspiro. Em seus soluços sentir-me seguro. Silêncio. Droga. Controle remoto sem pilhas.
Você se vira. “Se precisar de alguma coisa, tem meu telefone, não?”
Sim. Eu tenho. Você me anotou. Então é isso? É essa a despedida. É realmente uma despedida. Você está mesmo indo embora? É essa mesmo a última frase? É isso e depois a porta? Eu tenho seu telefone, você anotou para mim; mas você anotou antes do sexo, talvez agora esteja decepcionada. Talvez não queira mesmo que eu ligue. Talvez nunca quisesse, fosse só uma gentileza. Talvez você queira, e apenas deixe assim uma dica implícita, blasé. Como posso saber? Quais são os costumes locais? Qual é o guia de viagem sobre você? Me diga, como posso saber? Como posso ler em seus olhos, assim, puxados, estrábicos, claros, orientais, índigos-indianos, indígenas e moribundos? Como posso deixá-la sair assim, agora, com essa dúvida, se nem posso perguntar?
Você se vira novamente para frente. Costas para mim. Vai se levantar. Rápido. Eu. Rápido. Avanço sobre você com o cinto que se contorcia em minhas mãos e – uma volta, duas voltas – rápido, em volta de seu pescoço. Aperto.
Agora você se deu conta, minha Grande Esfinge de Gizé.
Você abre a boca para verbalizar, o que quer que seja. O que quer que seja, talvez você esteja apenas perdendo o ar. Eu aperto o cinto ainda mais forte, e ainda mais forte, e sinto a vida desprendendo-se toda de você. As cataratas do Niágara. Você abana as mãos tentando se prender ainda a ela, prende-la ainda em você.
Você é minha aurora boreal.
É rápido e fácil. Fácil e limpo. Eu falo, eu consigo. Em alguns segundos sua resistência cede, como seu corpo, fica sobre a cama. Eu relaxo o aperto e solto o cinto. Meus músculos flexores doem pelo esforço. Observo você – agora não mais – caída sobre a cama.
Agora estou sozinho...
Será que posso pedir serviço de quarto? Acho que vou ficar por aqui. Posso ligar para a recepção – deixe-me ver o cardápio – posso pedir um prato típico, a especialidade da casa. Mas os pratos de hotel são todos iguais...
O mensageiro nem iria perceber seu corpo morto sobre a cama. O mensageiro não iria querer bisbilhotar uma dama que dorme. Acabou de acontecer e seu corpo ainda é quente, morno. Suas maçãs ainda vermelhas, roxas. Posso pedir um jantar para nós dois. Uma garrafa de champagne ou um drinque típico. Mas os drinques são todos iguais... Estou tão cansado...
Algo pinga no banheiro aceso. Quartos ao lado abrem suas portas, batem. Pessoas chegam e partem, seguem para os espetáculos da noite. Acho que hoje vou ficar por aqui. Já perambulei demais por essa cidade. Se eu quiser serviço de quarto, preciso pedir agora.
(Em tempo: mesmo com o êxodo do Orkut, a comunidade Santiago Nazarian chegou lá aos 1000 membros, então estou sorteando um kit completo com todos meus livros. Você também pode participar. As instruções estão lá.)