25/10/2012


COMO ESCREVER UM ROMANCE



Se eu tivesse a fórmula, montaria uma oficina. Como não tenho, escrevo mais um.

Entrei naquele processo prazeroso de engrenar de fato numa história, que vai se completando mesmo longe da página, longe do computador. Enquanto caminho pelas ruas, quando vou ao teatro e ao cinema, vão surgindo novas passagens para um livro que ganha vida paralela à minha.

Cada livro que escrevi foi feito de forma diferente. Alguns tiveram uma estrutura toda montada de antemão, outros foram fluindo naturalmente. Feriado de Mim Mesmo foi escrito em 20 dias, O Prédio, o Tédio e o Menino Cego durante 3 anos. A Morte Sem Nome foi escrito sem o menor planejamento, cada capítulo de forma independente, ao ponto de eu poder reorganizá-los, trocá-los de lugar. O romance que estou escrevendo agora está sendo feito assim. Tenho já uma dúzia de capítulos abertos, poucos deles finalizados. Pretendo mudar alguns de lugar, preencher espaços entre eles com outros, aos poucos vou visualizando uma estrutura adequada.

Diferentemente de A Morte Sem Nome, para este eu já tenho a história inteira, derivada de um conto de vinte páginas. O exercício é fragmentá-la e remontá-la como um romance, um romance fragmentado.

Já escrevi romances absolutamente lineares (Olívio, Feriado de Mim Mesmo, Garotos Malditos) e ainda acho que é mais difícil. O romance linear oferece menos liberdade na auto-edição, até onde contar, onde cortar e retomar a história; a trama precisa ser mais objetiva e mais precisa, é mais difícil blefar. Claro que um romance linear não precisa (ou não deve?) ser escrito linearmente. Sempre pode se voltar ao começo, ajustar o primeiro capítulo para que ele se encaixe melhor no que você chegou ao final. O leitor não deve perceber. A mágica é ele acreditar que a primeira página que ele está lendo é a primeira que você escreveu. E que quando escreveu essa página você já sabia exatamente como aquela história iria terminar.

Em geral eu sei como a história vai terminar, pelo menos a última cena, mas sobram perguntas de como chegar até lá. Se você tem um argumento de vinte páginas (como eu tenho agora), vão surgir desvios, atalhos e distrações, e será preciso contornar muitos obstáculos para chegar ao destino programado.

O importante é que consegui recuperar o prazer de fazer isso. Ter optado por resgatar uma narrativa fragmentada foi essencial. Escrever apenas o que eu quero escrever. Poder me sentir o mais livre possível para eu exercitar minha técnica. Fazer piruetas. Recuperar aquele virtuosismo dos meus livros menos comerciais (A Morte Sem Nome e O Prédio. Isso, eu situaria esse novo romance entre esses dois).

E estou levando a fragmentação alguns passos além, não apenas na ordenação dos capítulos. Hoje, me questionando sobre questões de continuidade e cronologia, decidi abandonar a cronologia de vez. Um fato pode acontecer simultaneamente antes e depois de outro. Um personagem pode fazer referência a algo que ainda vai acontecer, como se já tivesse acontecido. Vou ter de escancarar isso mesmo, para depois não despertar de leitores um “ah, mas ele não pode ter visto aquilo, porque naquele dia ele já tinha morrido.” Agora pode tudo. Tudo acontece quando eu quiser que aconteça. Repetir frases e cenas, alterando apenas levemente o contexto, foi algo que eu sempre gostei de fazer, e passa por aí. Se eu gosto de duas opções de escrever a mesma coisa, eu coloco as duas. Se as duas opções se contradizem, pouco importa. (“Os marinheiros morrendo pouco a pouco. Os marinheiros morrendo todos juntos” - de "Eu Sou a Menina Deste Navio", dando apenas um pequeno exemplo).

Atualmente (além desse romance, que está programado só para 2014, e das traduções) estou escrevendo o roteiro de uma série de TV (que estreia ano que vem, então ainda não posso dizer...). E é gostoso trabalhar nos diálogos, imaginar que isso vai ser encenado e tal, mas não se compara com a liberdade que você tem como romancista.

E esse é meu maior conselho para alguém que quer começar a escrever. Exercite essa liberdade. A liberdade de poder fazer sozinho, do seu jeito, suas escolhas, o seu universo. A liberdade de não depender de orçamento – nas cenas, nos personagens, nos “efeitos especiais”. A liberdade até de não ter um público. Não se preocupar com o que pensa um poder maior, com a classe C, se vão gostar ou se vão entender. Para ganhar dinheiro com isso, primeiro você precisa fazer por prazer.




Aproveitando o post, saiu há alguns meses o livro Ficcionais, organizado pelo Schneider Carpeggiani, falando exatamente sobre isso. São grandes escritores dando o processo de escrita de alguns de seus livros. Tem Michel Laub com O Gato Disse Adeus, Andrea del Fuego com Os Malaquias, Bernardo Carvalho com O Filho da Mãe, Eliane Brum com Uma Duas, Marcelino Freire com Angu de Sangue, e muitos outros. Também estou lá, falando sobre O Prédio, o Tédio e o Menino Cego, um romance que muito pouca gente gostou, mas de que eu me orgulho por ter sido muito bem arquitetado. (Por sinal, acho que o problema do romance foi esse, unir um universo pop-adolescente com uma estrutura narrativa muito complexa. Muita gente ficou perdida). 

O que fica mais legal do Ficcionais é essa pluralidade de processos, e essa diversidade de escrita. Não dá para aprender a fazer com ninguém, mas dá para encontrar o seu jeito. Como confirma Antonio Carlos Viana: 

"Para aprimorar meus conhecimentos, fiz mestrado em Teoria Literária; anos depois, doutorado em Literatura Comparada. A facilidade do início de carreira, fruto da ingenuidade, foi sendo substituída pela complexidade do fazer literário, resultado da leitura de teóricos [...]. Confesso que, desde então, escrever se tornou uma tortura. [...] Saber teoria não melhora a produção literária, a não ser que você esqueça tudo na hora do trabalho. Perder a inocência faz mal ao escritor"

Assino embaixo. 

21/10/2012

BEAUTIFUL


Suede. 

Foi exatamente como esperado. E foi lindo. Suede tocou ontem no Planeta Terra durante apenas uma hora, apenas os hits, um atrás do outro, sem pausas, com Brett Anderson energético como sempre. 


Antes do show.

O show começou pouco depois das 18h, e estava razoavelmente vazio. Foi bom porque deu para ver de perto sem esforço, mas eu acharia mais lindo uma massa de fã cantando junto. Fui com irmãozinho Nico, e com certeza a gente era os mais empolgados cantando, de onde a gente estava. 


Durante o show

A comunicação com o público foi limitada a um "Oi, São Paulo", "obrigado" e uma despedida. Brett Anderson também se deixou agarrar em "Saturday Night", mas não parecia particularmente feliz. O conhecido "calor do público brasileiro" não o sensibilizou, até porque foi um público miado. Deve ser muito frustrante também você estar abrindo para bandas que estavam começando e abriam para você, quando você estava no auge.


Uma amostra, com a música que abriu o show (e Brett surtando com o roadie). 

Geralmente Suede termina com "The Beautiful Ones", dedicando à plateia "Because you're beautiful", diz Brett Anderson. Mas brinquei com o Nico que, vendo a plateia, Brett diria. "Bem, geralmente dedicamos a última música a plateia... Então vamos tocar "We are the Pigs" de novo." Hahaha

We are the pigs. (as capas dos álbuns e singles eram projetadas durante o show)

Fiquei ressentido em ver a coisa completamente lotada e o público mais empolgado com o Garbage, que é uma banda que até simpatizo, mas é bandinha de produtor, sem dúvida. Mas é isso aí, melhor ter nossos ídolos exclusivos. Minha veneração pelo Suede também me deixa mais confortável (ou resignado) com minha posição de underdog na literatura.  A gente não precisa ser o maior nome, ganhar os maiores prêmios e ser unanimidade para ser o mais importante para alguém. E nos últimos meses tive amostras comoventes de leitoras (sempre meninas). Ontem por sinal tinha uma menina com Mastigando Humanos na bolsa, para eu autografar. "Porque eu sabia que ia te encontrar aqui." Lindinha. 


Apesar de eu ter visto Suede algumas outras vezes (o show da Rússia, por exemplo, eu gostei mais), foi especial vê-los no Brasil (inclusive na coletiva de sexta), assistir o show com amigos (com os aditivos certos), ter esse universo Suede no meu habitat. Agora espero que eles voltem para um show menor, num lugar menor, com o disco novo. 

Setlist


She 
Trash
Filmstar
Animal Nitrate
We Are the Pigs
The Wild Ones
The Drowners
Kiling of a Flashboy
Can´t Get Enough
Everything will Flow
So Young
Metal Mickey
Heroine
Saturday Night
New Generation
Beautiful Ones


The Beautiful ones.



Quanto aos outros shows do festival, só vi mesmo o Garbage (competente) e o Gossip, de que não gosto do som, mas tive de tirar o chapeu (literalmente) para a vocalista Beth Ditto. Uma fofa, em todos os sentidos, foi a mais comunicativa com o público, a que mais se jogou, entrou no palco cantando "Oi, oi, oi" (aquela da Avenida Brasil), tomou caipirinha o show inteiro, tentou falar português, se enrolou na bandeira do Brasil e terminou agarrando e beijando o público da grade na boca. 

Agora deixo os próximos shows para vocês. Madonna, Lady Gaga não me empolgam. Lollapalooza também não (o que eu mais gosto lá são bandas de amigos, como Ludov e Stop Play Moon). Das bandas da minha vida, Blondie está devendo bem um show no Brasil. Nunca assisti. E Debbie Harry já está lá com seus setenta (!) anos. É agora ou nunca...

Depois do show. 




19/10/2012

VIDA DE FÃ

Na coletiva do Suede. 


“Legal essa banda, o que é?” Daniel perguntara. E no começo só tinha coragem de ouvir em fones de ouvido. As vozes andróginas, conotações ambíguas, guitarras rasgadas e paixões miadas diziam tanto sobre ele que ele nem sabia, não queria que os pais soubessem. - de "Marshmallow Queimado" @ Pornofantasma.



Suede está no Brasil, finalmente, pela primeira vez. Vieram para show curtinho no Terra, junto a uma caralhada de bandas que não me interessa. Eles devem tocar apenas os hits - se é que se pode dizer que eles têm hits aqui no Brasil, mas não importa. Eu não poderia perder. Suede é a banda da minha adolescência, da minha vida, que diz muito do que eu sou. 


Vendo da grade, em 2002. 

Descobri lá pelos 16, quando eles estavam no auge. Eu tinha acabado de voltar da Inglaterra, e as "guitarras rasgadas, paixões miadas," me seduziam e me intimidavam. Ganhei o primeiro CD de aniversário da minha namorada do ensino médio (que naquela época era chamado de "Colegial"), logo virei fanático. 

Com Simon, baterista (2002). 

Acompanhei single a single - ainda tenho todos. Quando a internet ainda rastejava, lia sobre as novidades da banda nas revistas importadas, nos semanários britânicos. Em 2002, quando morei em Londres, assisti dois shows da turnê "A New Morning", um com orquestra, outro num festival, da grade. Conheci o baterista, Simon; bati altos papos com o primeiro (e melhor) guitarrista, Bernard Butler; cumprimentei o vocalista Brett Anderson numa festa. 


Com Bernard Butler e David McAlmont (2002). 

Nunca deixei de gostar, nunca deixei de escutar, embora seja um fã com espírito crítico; não amo tudo, mas não gosto de pouca coisa. Continuei acompanhando a carreira solo de Brett Anderson, gosto muito do último álbum, "Black Rainbows", e me empolguei quando soube que o Suede iria voltar, em 2010. 

Em São Petersburgo, dezembro passado. 

Ano passado, assisti um show deles na Rússia. Para mim foi ainda mais especial por terem tocado 7 músicas inéditas. Não é a mesma banda de 1993, mas ainda é minha banda favorita. 

Hoje de manhã, aqui em São Paulo, fui na coletiva de imprensa deles, num pub britânico. Estava meio triste, uma dúzia de gatos pingados jornalistas, mostrando que a banda não atrai tanta atenção. Não pude deixar de tietar, me assumir como fã, dizer que já citei Suede em diversas passagens dos meus livros (como a que abre o post) e perguntei sobre as músicas inéditas do show de São Petersburgo, especialmente as que mais gostei, se entrariam no CD novo ou como B-sides. Matt (o baixista) foi muito simpático, disse que foram deletadas, mas que eu posso esperar "músicas muito melhores no novo disco."

Depois da curta coletiva com os jornalistas, abriram para os 50 fãs que estavam do lado de fora, que foi a parte mais bonitinha. Lindo ver aqui no Brasil gente tão apaixonada, empolgada, tirando fotos e tremendo ao vê-los de perto. A banda foi atenciosa respondendo perguntas, mas não deu espaço para fotos pessoais e autógrafos, compreensível. 

Eu mesmo não acho que ídolo precisa ser acessível (nem simpático), só precisa manter um relacionamento respeitoso (dos dois lados). Você admira um artista por seu trabalho, não por sua simpatia. E eu também já passei da idade de perseguir ídolo, de ir além das oportunidades oficiais. (A ocasião mais bizarra que tive como groupie/stalker foi uma noite que terminei literalmente na cama com Marilyn Manson, aos 19 anos, conversando e vendo o cara cheirar; mas isso fica pra outro post...)

Brett Anderson te despreza. 


Matt e Neil (o tecladista) foram os mais simpáticos. Algumas perguntas eles devem estar cansados de responder, como um jornalista que perguntou sobre "a saída de Bernard Butler". "Isso aconteceu há 20 anos!" disseram. E brincaram chamado Richard Oakes de "o novo guitarrista". Gostei quando perguntaram sobre bandas brasileiras, e eles citaram os queridos do Tetine, uma dupla eletrônica de amigos que também acompanho há tempos, e que está há anos radicada na Inglaterra. Isso aí, menos Caetano, mais Tetine.


Com Márcio Custódio, amigo das antigas e fã como eu, hoje na coletiva. 

Para mim, o show amanhã vai ser mais para uma celebração entre amigos, rever gente querida que não vejo há tempos, encontrar outros fãs. Confesso que o repertório só de hits não me empolga tanto. Não estive em tantos shows deles, mas já ouvi essas músicas tantas, tantas vezes, que estou muito mais ansioso por um disco novo.

Para quem ainda não decidiu se vai, ou não conhece, nunca ouviu, fica uma amostra do melhor que eles fizeram. Hoje em dia não é a mesma coisa, mas é a banda da minha vida.



Now you're over twenty one... ohhh... now your animal's gone. 



14/10/2012

O HOMEM TRAVESSEIRO
The Pillowman é a melhor peça que vi em 2012, de longe. 

Um escritor (Flávio Tolezani) é interrogado sobre uma série de assassinatos de crianças, cometidos de formas muito semelhantes às suas histórias. E contar mais do que isso seria arruinar a magia... negra do espetáculo.

É uma peça grotesca, no melhor sentido, com pitadas de um humor tenebroso e atuações insanas de Danilo Infantini, Bruno Autran, Bruno Guida e Wandré Gouveia. Direção de Bruno Guida e Dagoberto Feliz. Não conheço nenhum deles, fui sozinho (como de costume) e fiquei um pouco ressabiado ao saber que a peça tinha 2 horas e meia. Mas é daquelas raras, raras experiências teatrais que você quer que nunca acabe; eu, como ser ultra ansioso que sou, fico sempre torcendo para chegar logo ao final, nessa eu ficaria por mais horas, horas. Agora estou procurando o texto para ter em casa, para colocar na estante, para guardar para sempre.

O autor é o irlandês Martin McDonagh, que eu não conhecia. O texto é de uma crueldade e de uma genialidade absurda, que eu só posso invejar, porque está muito além da minha capacidade. E apesar de tudo (ou exatamente por isso) cheguei ao teatro melancólico e saí sorridente. Talvez por ver que ainda dá para ir muito mais longe, que coisas assim são possíveis. Ou talvez apenas por eu só me divertir com o sofrimento humano...

Engraçado também quando começam peças assim. Aquele publicozinho de teatro que faz questão de se divertir, de ser feliz, de mostrar que está gostando, que ri com qualquer expressão mais caricata ou engraçadinha dos atores. A peça começou assim. Mas aos poucos foram surgindo os risos de nervoso. A sala mais silenciosa. Percebi uma reação parecida quando fui ver o (também ótimo) Caderno Rosa de Lory Lambi, da Hilda Hilst, com a Iara Jamra, lá no final dos anos 90.

Enfim,  cumprindo minha função de DEFORMADOR DE OPINIÃO, recomendo ASSISTA The Pillowman - O Homem Travesseiro, que já está em cartaz há um bom tempo e fica só mais até o final da semana que vem, no Parlapatões (adoro esse teatro também), aqui em São Paulo. Sábados 20h, domingo 19h. 



01/10/2012

CICATRIZES CONTANDO UMA HISTÓRIA...


Eliane Brum em Guarapuava. 

Com o dedo indicador ela seca uma lágrima real que aparece no canto do olho direito. Que lágrima é aquela? A psicóloga gosta da lágrima. Então ela também gosta. Mantém a expressão angustiada e um vago ar de idiotia. Por favor, eu lhe imploro, trate o assunto com a máxima discrição. Eu não gostaria que algo assim virasse uma fofoca nos corredores do hospital. A senhora sabe, minha mãe nunca me perdoaria. E eu continuo tendo esperança de que um dia possamos nos acertar. Acho que nós, filhas, somos assim, não é? Agora ela evoca a cumplicidade da mulher mais jovem. Com certeza a psicóloga também tem problemas com a mãe. Perdoamos tudo de quem nos deu a luz, a senhora não acha? Ela gosta do que vê no rosto da psicóloga. Gosta principalmente de carimbar na imagem asséptica da mãe um rótulo de porca. Justo na mãe, que praticamente nasceu com um pano com álcool na mão e a obrigava a lavar as mãos a cada meia hora. Até hoje suas mãos lhe parecem avermelhadas pela aspereza do sabão entranhada na pele, o sabão caseiro cujo fedor nunca conseguiu arrancar de suas narinas. Ela pode tomar banho de Chanel número 5 que não vai cheirar como Marilyn Monroe. Ela exala apenas o sabão da mãe, feito para desinfetar toda a sujeira do mundo. 

Isso é de Eliane Brum, Uma Duas, romance de estreia dessa premiada jornalista gaúcha. É um embate entre mãe e filha; uma inversão de poderes quando a filha tem de se responsabilizar pela mãe, velha e incapaz. Uma relação pra lá de louca e doentia, escrita de forma delirante e intensamente livre.

Conheci Eliane recentemente, na viagem que fizemos pelo interior do Paraná à convite do Sesc. Não sei muito o que pensavam quando colocaram nós dois sob o tema "A Nova Geração de Leitores Adolescentes", já que apenas eu estava lançando um livro juvenil. Mas se o ponto de intersecção entre nós não ficou claro nem depois de três debates juntos, lendo agora o romance de Eliane se evidencia - é um parente muito próximo do meu A Morte Sem Nome. 


Me sentei na sala para fumar. Cigarro entre os dedos. Entre os dentes. Manchados de nicotina. Queimando com minha insegurança. Sumindo como fumaça. Cinzas ao chão, entre as frestas. Peguei a vassoura e a ordem, a ordem continuava a fugir de mim. Minhas pegadas me seguiam para onde quer que eu fosse. Eu não podia escapar. E minhas impressões digitais manchavam o que quer que eu tocasse. Tornavam-se cinzas, pó e mofo. Minhas mãos, meus lábios, meu pescoço e meu coração. A ser esfregada, a ser varrida, a ser escovada, nenhum banho daria conta. Minhas pegadas me seguiam aonde quer que eu fosse e minhas impressões digitais estavam sempre em meus dedos. Nos pratos sujos. No garfo e na faca. Na cozinha, meu sangue fresco escorrendo pela pia. Detergente, sabão em pó. Lavei a louça e os talheres. Espalhei milhares de cacos pelo chão. Pela cozinha. Minhas impressões em cada um deles. Minhas impressões no ralo. Minhas impressões na faca. Minhas impressões cortando a linha em volta do meu pescoço. No lixo, jogada em pedacinhos. Virei os olhos para longe de tudo o que eu não podia mais. Suco de laranja. Ossos de frango. Um coração palpitando. Que pelo menos não vaze pela casa. Que o saco plástico resista ao meu peso. 

Isso é meu, de A Morte Sem Nome, o primeiro romance, que escrevi aos 23 anos... e ainda gosto tanto. Egotrips à parte, quando a gente se identifica com um livro é porque se vê mesmo nele. Eliane não leu o meu, mas os parentescos afetivos são assim. Lendo o romance dela fiquei com saudades de mim mesmo. E geralmente é o que acontece quando leio um grande livro, me dá vontade de escrever, reforça minha crença no poder da escrita. Não, eu não sou daquelas pessoas que gosta de ler em geral, que "lê até bula de remédio", como se diz em clichê. São poucos os livros que me fazem acreditar...

O romance de Eliane tem essa força, uma força do ódio, do rancor e do anti-sentimentalismo, de que eu tanto gosto. Sinceramente, é a melhor coisa que li em muito, muito tempo. Fico feliz que tenha sido finalista do Prêmio São Paulo (infelizmente não levou), porque, por mais que eu não queira, também sou influenciado por essas bagaças. Eliane tinha me dado o livro dela, estava aqui na fila, e talvez eu levasse um bom tempo para ler. Depois de reencontrá-la semana passada na festa do Prêmio, e lembrar que ela era finalista, resolvi dar uma espiada no livro. Não larguei mais.

E agora ressinto um pouco ter tido todos esses debates com Eliane Brum antes de ter lido o romance. Talvez eu devesse ter feito a lição de casa e me preparado - embora Uma Duas não tenha nada a ver com o tema de nossos debates.

E, para ser justo, depõe contra o livro o projeto gráfico PAVOROSO, a capa medonha, o texto inteiro impresso em laranja (por quê? POR QUÊ?!!) e o título um tanto quanto inócuo. Se eu não tivesse recebido das mãos dela, jamais compraria esse livro (que foi publicado pela Leya, ótima editora - eu mesmo já traduzi quase uma dúzia de livros para eles). Sim, eu também sou desses superficiais que julgam o livro pela capa. E a Leya fodeu com o livro, me desculpem. Minha mãe, que é uma grande leitora, dessas que gostam de ler em geral, deu uma espiada ontem no livro e disse: "Ah, não consigo ler com essa letra..." Acho que vou xerocar em preto para ela.

Estou agora escrevendo meu sexto romance (oitavo livro, junto ao de contos e o juvenil). E não só o romance de Eliane, mas as várias conversas que tivemos pelas estradas do Paraná têm sido uma grande influência e me devolvido o prazer da escrita. Impressionante como uma escrita tão visceral, tão densa e pesada (como Uma Duas) pode ser lida (e escrita) com prazer.


Não é assim que eu sonhava escrever. Os livros sempre foram a janela por onde eu escapava desta mãe que agora, enquanto escrevo com o sangue pingando, me espreita atrás da porta. Desde criança, quando abro um livro não estou mais aqui. Não é uma metáfora para mim. Talvez o chefe com cauda de lagarto tenha razão. Eu não sei fazer metáforas porque não compreendo metáforas. Para mim tudo é literal. Como meus braços bordados pelas cicatrizes de todas as tentativas de me separar do corpo de minha mãe. Para mim, nunca houve uma cordão umbilical que pudesse ser cortado. Só a dor de estar confundida com o corpo da mãe, de ser carne da mãe. Este ritual que agora pinga de mim como um fracasso. Mais um. Eu corto corto corto e ainda não sei que existo. Continuo sem corpo. E ela lá fora, com medo que eu vá embora. Fingindo desconhecer que não posso partir. Nunca pude. Porque arrasto comigo o corpo dela, que  me engolfa e engole. 

Mas divago.

(de Uma Duas)

Na festa do Prêmio São Paulo, semana passada, com Paloma Vidal, Simone Campos e Michel Laub (um dos finalistas). Os premiados foram Suzana Montoro e Barlomeu Campos de Queirós - ainda não li nenhum dos dois. Mas para mim Eliane é a melhor do ano. 

NESTE SÁBADO!