COMO ESCREVER UM ROMANCE
Se eu tivesse a fórmula, montaria uma oficina. Como não
tenho, escrevo mais um.
Entrei naquele processo prazeroso de engrenar de fato numa
história, que vai se completando mesmo longe da página, longe do computador.
Enquanto caminho pelas ruas, quando vou ao teatro e ao cinema, vão surgindo
novas passagens para um livro que ganha vida paralela à minha.
Cada livro que escrevi foi feito de forma diferente. Alguns
tiveram uma estrutura toda montada de antemão, outros foram fluindo
naturalmente. Feriado de Mim Mesmo foi
escrito em 20 dias, O Prédio, o Tédio e o
Menino Cego durante 3 anos. A Morte
Sem Nome foi escrito sem o menor planejamento, cada capítulo de forma
independente, ao ponto de eu poder reorganizá-los, trocá-los de lugar. O
romance que estou escrevendo agora está sendo feito assim. Tenho já uma dúzia
de capítulos abertos, poucos deles finalizados. Pretendo mudar alguns de lugar,
preencher espaços entre eles com outros, aos poucos vou visualizando uma
estrutura adequada.
Diferentemente de A
Morte Sem Nome, para este eu já tenho a história inteira, derivada de um
conto de vinte páginas. O exercício é fragmentá-la e remontá-la como um
romance, um romance fragmentado.
Já escrevi romances absolutamente lineares (Olívio, Feriado de Mim Mesmo, Garotos
Malditos) e ainda acho que é mais difícil. O romance linear oferece menos
liberdade na auto-edição, até onde contar, onde cortar e retomar a história; a
trama precisa ser mais objetiva e mais precisa, é mais difícil blefar. Claro
que um romance linear não precisa (ou não deve?) ser escrito linearmente.
Sempre pode se voltar ao começo, ajustar o primeiro capítulo para que ele se
encaixe melhor no que você chegou ao final. O leitor não deve perceber. A
mágica é ele acreditar que a primeira página que ele está lendo é a primeira
que você escreveu. E que quando escreveu essa página você já sabia exatamente
como aquela história iria terminar.
Em geral eu sei como a história vai terminar, pelo menos a
última cena, mas sobram perguntas de como chegar até lá. Se você tem um
argumento de vinte páginas (como eu tenho agora), vão surgir desvios, atalhos e
distrações, e será preciso contornar muitos obstáculos para chegar ao destino
programado.
O importante é que consegui recuperar o prazer de fazer
isso. Ter optado por resgatar uma narrativa fragmentada foi essencial. Escrever
apenas o que eu quero escrever. Poder me sentir o mais livre possível para eu
exercitar minha técnica. Fazer piruetas. Recuperar aquele virtuosismo dos meus
livros menos comerciais (A Morte Sem Nome e O Prédio. Isso, eu situaria esse novo
romance entre esses dois).
E estou levando a fragmentação alguns passos além, não apenas na ordenação dos capítulos. Hoje, me questionando sobre questões de continuidade e cronologia, decidi abandonar a cronologia de vez. Um fato pode acontecer simultaneamente antes e depois de outro. Um personagem pode fazer referência a algo que ainda vai acontecer, como se já tivesse acontecido. Vou ter de escancarar isso mesmo, para depois não despertar de leitores um “ah, mas ele não pode ter visto aquilo, porque naquele dia ele já tinha morrido.” Agora pode tudo. Tudo acontece quando eu quiser que aconteça. Repetir frases e cenas, alterando apenas levemente o contexto, foi algo que eu sempre gostei de fazer, e passa por aí. Se eu gosto de duas opções de escrever a mesma coisa, eu coloco as duas. Se as duas opções se contradizem, pouco importa. (“Os marinheiros morrendo pouco a pouco. Os marinheiros morrendo todos juntos” - de "Eu Sou a Menina Deste Navio", dando apenas um pequeno exemplo).
Atualmente (além desse romance, que está programado só para 2014, e das traduções) estou
escrevendo o roteiro de uma série de TV (que estreia ano que vem, então ainda
não posso dizer...). E é gostoso trabalhar nos diálogos, imaginar que isso vai
ser encenado e tal, mas não se compara com a liberdade que você tem como
romancista.
E esse é meu maior conselho para alguém que quer começar a escrever.
Exercite essa liberdade. A liberdade de poder fazer sozinho, do seu jeito, suas
escolhas, o seu universo. A liberdade de não depender de orçamento – nas cenas,
nos personagens, nos “efeitos especiais”. A liberdade até de não ter um
público. Não se preocupar com o que pensa um poder maior, com a classe C, se
vão gostar ou se vão entender. Para ganhar dinheiro com isso, primeiro você precisa fazer por prazer.
Aproveitando o post, saiu há alguns meses o livro Ficcionais, organizado pelo Schneider Carpeggiani, falando exatamente sobre isso. São grandes escritores dando o processo de escrita de alguns de seus livros. Tem Michel Laub com O Gato Disse Adeus, Andrea del Fuego com Os Malaquias, Bernardo Carvalho com O Filho da Mãe, Eliane Brum com Uma Duas, Marcelino Freire com Angu de Sangue, e muitos outros. Também estou lá, falando sobre O Prédio, o Tédio e o Menino Cego, um romance que muito pouca gente gostou, mas de que eu me orgulho por ter sido muito bem arquitetado. (Por sinal, acho que o problema do romance foi esse, unir um universo pop-adolescente com uma estrutura narrativa muito complexa. Muita gente ficou perdida).
O que fica mais legal do Ficcionais é essa pluralidade de processos, e essa diversidade de escrita. Não dá para aprender a fazer com ninguém, mas dá para encontrar o seu jeito. Como confirma Antonio Carlos Viana:
"Para aprimorar meus conhecimentos, fiz mestrado em Teoria Literária; anos depois, doutorado em Literatura Comparada. A facilidade do início de carreira, fruto da ingenuidade, foi sendo substituída pela complexidade do fazer literário, resultado da leitura de teóricos [...]. Confesso que, desde então, escrever se tornou uma tortura. [...] Saber teoria não melhora a produção literária, a não ser que você esqueça tudo na hora do trabalho. Perder a inocência faz mal ao escritor"
Assino embaixo.