CICATRIZES CONTANDO UMA HISTÓRIA...
Eliane Brum em Guarapuava.
Com o dedo indicador ela seca uma lágrima real que aparece no canto do olho direito. Que lágrima é aquela? A psicóloga gosta da lágrima. Então ela também gosta. Mantém a expressão angustiada e um vago ar de idiotia. Por favor, eu lhe imploro, trate o assunto com a máxima discrição. Eu não gostaria que algo assim virasse uma fofoca nos corredores do hospital. A senhora sabe, minha mãe nunca me perdoaria. E eu continuo tendo esperança de que um dia possamos nos acertar. Acho que nós, filhas, somos assim, não é? Agora ela evoca a cumplicidade da mulher mais jovem. Com certeza a psicóloga também tem problemas com a mãe. Perdoamos tudo de quem nos deu a luz, a senhora não acha? Ela gosta do que vê no rosto da psicóloga. Gosta principalmente de carimbar na imagem asséptica da mãe um rótulo de porca. Justo na mãe, que praticamente nasceu com um pano com álcool na mão e a obrigava a lavar as mãos a cada meia hora. Até hoje suas mãos lhe parecem avermelhadas pela aspereza do sabão entranhada na pele, o sabão caseiro cujo fedor nunca conseguiu arrancar de suas narinas. Ela pode tomar banho de Chanel número 5 que não vai cheirar como Marilyn Monroe. Ela exala apenas o sabão da mãe, feito para desinfetar toda a sujeira do mundo.
Isso é de Eliane Brum, Uma Duas, romance de estreia dessa premiada jornalista gaúcha. É um embate entre mãe e filha; uma inversão de poderes quando a filha tem de se responsabilizar pela mãe, velha e incapaz. Uma relação pra lá de louca e doentia, escrita de forma delirante e intensamente livre.
Conheci Eliane recentemente, na viagem que fizemos pelo interior do Paraná à convite do Sesc. Não sei muito o que pensavam quando colocaram nós dois sob o tema "A Nova Geração de Leitores Adolescentes", já que apenas eu estava lançando um livro juvenil. Mas se o ponto de intersecção entre nós não ficou claro nem depois de três debates juntos, lendo agora o romance de Eliane se evidencia - é um parente muito próximo do meu A Morte Sem Nome.
Me sentei na sala para fumar. Cigarro entre os dedos. Entre os dentes. Manchados de nicotina. Queimando com minha insegurança. Sumindo como fumaça. Cinzas ao chão, entre as frestas. Peguei a vassoura e a ordem, a ordem continuava a fugir de mim. Minhas pegadas me seguiam para onde quer que eu fosse. Eu não podia escapar. E minhas impressões digitais manchavam o que quer que eu tocasse. Tornavam-se cinzas, pó e mofo. Minhas mãos, meus lábios, meu pescoço e meu coração. A ser esfregada, a ser varrida, a ser escovada, nenhum banho daria conta. Minhas pegadas me seguiam aonde quer que eu fosse e minhas impressões digitais estavam sempre em meus dedos. Nos pratos sujos. No garfo e na faca. Na cozinha, meu sangue fresco escorrendo pela pia. Detergente, sabão em pó. Lavei a louça e os talheres. Espalhei milhares de cacos pelo chão. Pela cozinha. Minhas impressões em cada um deles. Minhas impressões no ralo. Minhas impressões na faca. Minhas impressões cortando a linha em volta do meu pescoço. No lixo, jogada em pedacinhos. Virei os olhos para longe de tudo o que eu não podia mais. Suco de laranja. Ossos de frango. Um coração palpitando. Que pelo menos não vaze pela casa. Que o saco plástico resista ao meu peso.
Isso é meu, de A Morte Sem Nome, o primeiro romance, que escrevi aos 23 anos... e ainda gosto tanto. Egotrips à parte, quando a gente se identifica com um livro é porque se vê mesmo nele. Eliane não leu o meu, mas os parentescos afetivos são assim. Lendo o romance dela fiquei com saudades de mim mesmo. E geralmente é o que acontece quando leio um grande livro, me dá vontade de escrever, reforça minha crença no poder da escrita. Não, eu não sou daquelas pessoas que gosta de ler em geral, que "lê até bula de remédio", como se diz em clichê. São poucos os livros que me fazem acreditar...
O romance de Eliane tem essa força, uma força do ódio, do rancor e do anti-sentimentalismo, de que eu tanto gosto. Sinceramente, é a melhor coisa que li em muito, muito tempo. Fico feliz que tenha sido finalista do Prêmio São Paulo (infelizmente não levou), porque, por mais que eu não queira, também sou influenciado por essas bagaças. Eliane tinha me dado o livro dela, estava aqui na fila, e talvez eu levasse um bom tempo para ler. Depois de reencontrá-la semana passada na festa do Prêmio, e lembrar que ela era finalista, resolvi dar uma espiada no livro. Não larguei mais.
E agora ressinto um pouco ter tido todos esses debates com Eliane Brum antes de ter lido o romance. Talvez eu devesse ter feito a lição de casa e me preparado - embora Uma Duas não tenha nada a ver com o tema de nossos debates.
E, para ser justo, depõe contra o livro o projeto gráfico PAVOROSO, a capa medonha, o texto inteiro impresso em laranja (por quê? POR QUÊ?!!) e o título um tanto quanto inócuo. Se eu não tivesse recebido das mãos dela, jamais compraria esse livro (que foi publicado pela Leya, ótima editora - eu mesmo já traduzi quase uma dúzia de livros para eles). Sim, eu também sou desses superficiais que julgam o livro pela capa. E a Leya fodeu com o livro, me desculpem. Minha mãe, que é uma grande leitora, dessas que gostam de ler em geral, deu uma espiada ontem no livro e disse: "Ah, não consigo ler com essa letra..." Acho que vou xerocar em preto para ela.
Estou agora escrevendo meu sexto romance (oitavo livro, junto ao de contos e o juvenil). E não só o romance de Eliane, mas as várias conversas que tivemos pelas estradas do Paraná têm sido uma grande influência e me devolvido o prazer da escrita. Impressionante como uma escrita tão visceral, tão densa e pesada (como Uma Duas) pode ser lida (e escrita) com prazer.
Não é assim que eu sonhava escrever. Os livros sempre foram a janela por onde eu escapava desta mãe que agora, enquanto escrevo com o sangue pingando, me espreita atrás da porta. Desde criança, quando abro um livro não estou mais aqui. Não é uma metáfora para mim. Talvez o chefe com cauda de lagarto tenha razão. Eu não sei fazer metáforas porque não compreendo metáforas. Para mim tudo é literal. Como meus braços bordados pelas cicatrizes de todas as tentativas de me separar do corpo de minha mãe. Para mim, nunca houve uma cordão umbilical que pudesse ser cortado. Só a dor de estar confundida com o corpo da mãe, de ser carne da mãe. Este ritual que agora pinga de mim como um fracasso. Mais um. Eu corto corto corto e ainda não sei que existo. Continuo sem corpo. E ela lá fora, com medo que eu vá embora. Fingindo desconhecer que não posso partir. Nunca pude. Porque arrasto comigo o corpo dela, que me engolfa e engole.
Mas divago.
(de Uma Duas)
Na festa do Prêmio São Paulo, semana passada, com Paloma Vidal, Simone Campos e Michel Laub (um dos finalistas). Os premiados foram Suzana Montoro e Barlomeu Campos de Queirós - ainda não li nenhum dos dois. Mas para mim Eliane é a melhor do ano.