13/04/2013


Com lama até os joelhos, Vinícius revira galhos, gravetos, pedras e raízes que momentaneamente se fazem passar por caranguejos. Ele não costumava se enganar. Mas a camada ocre que tudo cobre faz com que tudo seja partículas da mesma coisa. Partículas de nada. Vinícius permanece ajoelhado, buscando um movimento, o animal reptício que escapou-lhe entre os dedos, e o movimento que capta são galhos estalando, raízes voltando ao lugar, o lodo borbulhando após a investida do próprio Vinícius. O caranguejo não, o caranguejo não se move. Mais imóvel do que os galhos, as folhas, o vento e a respiração, nas mesmas formas, coberto do mesmo lodo, a mesma cor, afinal em mimetismo é no que esses animais se especializaram, e Vinícius não se especializou em nada. Vinícius não é especialista em nada.
                Vinícius é um retardado. Ou quase. Vinícius é um pouco lerdo, e em circunstâncias normais seria chamado de retardado. Talvez em nossa sociedade atual seja apenas diagnosticado com um leve distúrbio, um leve autismo, DDA, monomania, síndrome de asperger.  Na realidade, nessa cidade, Vinícius é apenas um pouco lerdo. Tão integrado em suas limitações como todos os outros em seus desinteresses. Filho mais velho, aos vinte e oito anos, já deveria ser capaz de catar caranguejos sozinho. Vinícius é capaz.  E tantas vezes foi com o pai, com os irmãos, na saída da lagoinha, catar caranguejos para vender para os vizinhos, para os turistas. Vinícius foi campeão. Os bichos rastejando no quintal de casa, a mãe contando, e dando o veredicto a Vinícius, aquele que mais conseguiu catar. Ele sabe, sabe sim, embora tenha escutado a própria mãe, atrás de si, enquanto ele deixava a casa com rede e balde na mão. “Você vai deixar o Vinícius ir sozinho lá no mangue? Juarez, isso não vai dar certo, eu já te falei que...” E a conversa morrendo atrás como o cheiro de churrasco, enquanto partia para a caça o filho retardado.
Agora Vinícius examina os pés descalços. Um corte que acho que sangra, misturando à lama, é difícil identificar o vermelho de um possível fluxo que escorre. Identificando um aracnídeo que corre, Vinícius reexamina entre os dedos, e agora encontra uma aranha esmagada. Os pés doem. Entre calos, frieiras, rachaduras, talvez uma picada. Começa a ficar mais difícil saber o que é lama, o que são aranhas, o que são caranguejos imóveis e dedos do pé rachados, raízes pneumatóforas. Vinícius olha o balde. E os caranguejos já colocados parecem ainda mais imóveis, talvez já mortos. Talvez ele devesse voltar. Mas ainda não há nem uma dúzia. E seu pai fora incisivo: “Entre vinte e trinta, hein? Entre vinte e trinta.”
Vinícius levanta o olhar, a cabeça, o nariz ao vento e tenta farejar os vinte e trinta caranguejos que podem estar espalhados ao seu redor. Fecha os olhos. Fareja o ar. O ar cheira à mesma lama, raízes, húmus que cobre tudo mais, cobre a ele, cobre os caranguejos. Vinícius abaixa o nariz e sorri. Enfia os dedos (das mãos) entre o barro denso e sente-se tão parte daquilo... como jamais se sentiu. Sorri. Então para de sorrir, sentindo-se idiota, retardado, como todos os outros o sentiriam.Vinícius olha o balde logo atrás de si e o imagina preenchendo com uma dúzia, duas dúzias, quantas dúzias são mais de trinta? Transbordando de caranguejos que voltam ao mangue.
                Vinícius se vê sentado afundado na lama. Vinícius pode enxergar a si mesmo, caído no lodo – claro, ele é apenas lerdinho – sorrindo, e sabe o quão idiota, o quão retardado aparenta ser. Ele não deveria estar ali. O que ele está fazendo ali? Ele não costumava ir tão fundo. Durante o verão, só a saída da lagoinha, a entrada do mangue, já rendia uma cambada de caranguejos. Não era preciso muito esforço, não era preciso tanto esforço. Agora ele estava fundo demais no mangue – afundado- longe demais da lagoinha, os pés picados e o balde ainda vazio.
                Vinícius não é um retardado. Não, Vinícius não é um retardado. Ele tem plena consciência de suas limitações. Ele sabe que não pode muito e ainda tem certo rancor por sua família que pode e não tenta nada mais. Mas agora, caído na lama, perdido entre crustáceos saprófagos ele se questiona se não é esse se lugar. E ele chora, ele geme em meio ao mangue, sem lágrimas reais. Então percebe que não há lágrimas e volta a rir. E volta a se concentrar. Volta a buscar entre as raízes o movimento dos caranguejos. E agarra um galho que se retorce. E agarra uma raiz que respira. E sufoca um grito. E se pergunta se todos esses sufocos não o fazem parecer um retardado, lá, caído em meio à lama, caranguejos escapando entre as pernas.
                “Você é um rapaz muito sensível, Vinícius, você é especial,” ele escuta a voz rouca da jovem professora que tenta aumentar sua auto-estima com adjetivos que só sublinham suas deficiências. Ela lhe aponta um destino diferente, diz que ele pode ir mais longe, quando Vinícius gostaria de ser só mais um na sala de aula. Ele é o aluno retardado. Ela tenta ajudá-lo, redescobri-lo, afastá-lo ainda mais das possibilidades da cidadezinha, indicando que, num outro contexto, outro cenário, ele poderia agarrar novas oportunidades.
                Agarrou! Vinícius afunda a mão no mangue esmagando um caranguejo que fugia. Merda. Vinícius levanta a mão e vê que o interior do exoesqueleto escorre mais amarelado do que qualquer coisa que há por lá. Não há dúvidas de que é um líquido estranho, externo, interno, que não se camufla como o sangue, o lodo, o mangue e tudo o que há por lá. Vinícius observa o crustáceo quebrado no chão, e sabe que não pode colocá-lo no balde. Ainda estamos no menos de meia dúzia, ele balança a cabeça. Então vê que há outro caranguejo, pequeno, movendo-se por lá. Claro que há, sempre há, encontrar caranguejos no mangue é como encontrar baratas num bueiro, uma praga. Os turistas comem, nós comemos, todos comem, mas como considerar isso uma iguaria para a qual é preciso certo sacrifício, certo esforço? Vinícius pondera.
                Cata o caranguejo pequeno e o joga no balde. Ainda vivo. Muito bem, mais um, mas ainda é pouco, e tão pequeno...  Vinícius escuta um trovão e vê o céu carregado, com nuvens prestes a despencar. Levanta-se com o balde. Melhor andar com isso, melhor correr com isso. Com as nuvens se fechando, sua família deve estar olhando preocupada para o relógio e em breve um deles irá chegar lá. Um deles, de seus irmãos mais novos, irá lhe buscar e todos terão de admitir, ele admitir a si mesmo, que ele é mesmo um incapaz. Voltar com aquele balde vazio ele não vai, de jeito nenhum. Voltar com aquele balde com meia dúzia de cinco, para ouvir de chacota dos irmãos: “Você não sabe contar?” Vinícius conta melhor do que os irmãos, ele sabe muito bem disso. Mas os irmãos se aproveitam de cada uma de suas deficiências para ressaltar sua inferioridade.
                Vinícius lava os pés numa poça. Seus pés não ficam lá muito limpos. A poça já é turva como tudo mais, e Vinícius mete os pés nela novamente. É turva, mas mais profunda do que Vinícius esperava. Sente a lama penetrando entre os dedos dos pés, então algo fugidio, deslizante, perfurando seu tornozelo e escapando em debatidas - um peixe? Um galho? Uma serpente? Assustado, Vinícius perde o equilíbrio, recuando com os pés ainda metidos na lama. Cai com as nádegas na terra, e antes que possa inspecionar a poça em busca do que o atacou percebe alguém atrás de si, então uma mão estendendo-lhe , ajudando-o a ficar de  pé. Vinícius a toma....

NESTE SÁBADO!