Com lama até
os joelhos, Vinícius revira galhos, gravetos, pedras e raízes que
momentaneamente se fazem passar por caranguejos. Ele não costumava se enganar.
Mas a camada ocre que tudo cobre faz com que tudo seja partículas da mesma
coisa. Partículas de nada. Vinícius permanece ajoelhado, buscando um movimento,
o animal reptício que escapou-lhe entre os dedos, e o movimento que capta são
galhos estalando, raízes voltando ao lugar, o lodo borbulhando após a investida
do próprio Vinícius. O caranguejo não, o caranguejo não se move. Mais imóvel do
que os galhos, as folhas, o vento e a respiração, nas mesmas formas, coberto do
mesmo lodo, a mesma cor, afinal em mimetismo é no que esses animais se
especializaram, e Vinícius não se especializou em nada. Vinícius não é
especialista em nada.
Vinícius
é um retardado. Ou quase. Vinícius é um pouco lerdo, e em circunstâncias
normais seria chamado de retardado. Talvez em nossa sociedade atual seja apenas
diagnosticado com um leve distúrbio, um leve autismo, DDA, monomania, síndrome
de asperger. Na realidade, nessa cidade,
Vinícius é apenas um pouco lerdo. Tão integrado em suas limitações como todos
os outros em seus desinteresses. Filho mais velho, aos vinte e oito anos, já
deveria ser capaz de catar caranguejos sozinho. Vinícius é capaz. E tantas vezes foi com o pai, com os irmãos,
na saída da lagoinha, catar caranguejos para vender para os vizinhos, para os
turistas. Vinícius foi campeão. Os bichos rastejando no quintal de casa, a mãe
contando, e dando o veredicto a Vinícius, aquele que mais conseguiu catar. Ele
sabe, sabe sim, embora tenha escutado a própria mãe, atrás de si, enquanto ele
deixava a casa com rede e balde na mão. “Você vai deixar o Vinícius ir sozinho
lá no mangue? Juarez, isso não vai dar certo, eu já te falei que...” E a
conversa morrendo atrás como o cheiro de churrasco, enquanto partia para a caça
o filho retardado.
Agora Vinícius
examina os pés descalços. Um corte que acho que sangra, misturando à lama, é
difícil identificar o vermelho de um possível fluxo que escorre. Identificando
um aracnídeo que corre, Vinícius reexamina entre os dedos, e agora encontra uma
aranha esmagada. Os pés doem. Entre calos, frieiras, rachaduras, talvez uma
picada. Começa a ficar mais difícil saber o que é lama, o que são aranhas, o
que são caranguejos imóveis e dedos do pé rachados, raízes pneumatóforas. Vinícius
olha o balde. E os caranguejos já colocados parecem ainda mais imóveis, talvez
já mortos. Talvez ele devesse voltar. Mas ainda não há nem uma dúzia. E seu pai
fora incisivo: “Entre vinte e trinta, hein? Entre vinte e trinta.”
Vinícius levanta
o olhar, a cabeça, o nariz ao vento e tenta farejar os vinte e trinta
caranguejos que podem estar espalhados ao seu redor. Fecha os olhos. Fareja o
ar. O ar cheira à mesma lama, raízes, húmus que cobre tudo mais, cobre a ele,
cobre os caranguejos. Vinícius abaixa o nariz e sorri. Enfia os dedos (das
mãos) entre o barro denso e sente-se tão parte daquilo... como jamais se
sentiu. Sorri. Então para de sorrir, sentindo-se idiota, retardado, como todos
os outros o sentiriam.Vinícius olha o balde logo atrás de si e o imagina preenchendo com uma dúzia, duas dúzias, quantas dúzias são mais de trinta?
Transbordando de caranguejos que voltam ao mangue.
Vinícius
se vê sentado afundado na lama. Vinícius pode enxergar a si mesmo, caído no
lodo – claro, ele é apenas lerdinho – sorrindo, e sabe o quão idiota, o quão
retardado aparenta ser. Ele não deveria estar ali. O que ele está fazendo ali?
Ele não costumava ir tão fundo. Durante o verão, só a saída da lagoinha, a
entrada do mangue, já rendia uma cambada de caranguejos. Não era preciso muito
esforço, não era preciso tanto esforço. Agora ele estava fundo demais no mangue
– afundado- longe demais da lagoinha, os pés picados e o balde ainda vazio.
Vinícius
não é um retardado. Não, Vinícius não é um retardado. Ele tem plena consciência
de suas limitações. Ele sabe que não pode muito e ainda tem certo rancor por
sua família que pode e não tenta nada mais. Mas agora, caído na lama, perdido
entre crustáceos saprófagos ele se questiona se não é esse se lugar. E ele
chora, ele geme em meio ao mangue, sem lágrimas reais. Então percebe que não há
lágrimas e volta a rir. E volta a se concentrar. Volta a buscar entre as raízes
o movimento dos caranguejos. E agarra um galho que se retorce. E agarra uma
raiz que respira. E sufoca um grito. E se pergunta se todos esses sufocos não o
fazem parecer um retardado, lá, caído em meio à lama, caranguejos escapando
entre as pernas.
“Você
é um rapaz muito sensível, Vinícius, você é especial,” ele escuta a voz rouca
da jovem professora que tenta aumentar sua auto-estima com adjetivos que só sublinham
suas deficiências. Ela lhe aponta um destino diferente, diz que ele pode ir
mais longe, quando Vinícius gostaria de ser só mais um na sala de aula. Ele é o
aluno retardado. Ela tenta ajudá-lo, redescobri-lo, afastá-lo ainda mais das
possibilidades da cidadezinha, indicando que, num outro contexto, outro
cenário, ele poderia agarrar novas oportunidades.
Agarrou!
Vinícius afunda a mão no mangue esmagando um caranguejo que fugia. Merda. Vinícius
levanta a mão e vê que o interior do exoesqueleto escorre mais amarelado do que
qualquer coisa que há por lá. Não há dúvidas de que é um líquido estranho,
externo, interno, que não se camufla como o sangue, o lodo, o mangue e tudo o
que há por lá. Vinícius observa o crustáceo quebrado no chão, e sabe que não
pode colocá-lo no balde. Ainda estamos no menos de meia dúzia, ele balança a
cabeça. Então vê que há outro caranguejo, pequeno, movendo-se por lá. Claro que
há, sempre há, encontrar caranguejos no mangue é como encontrar baratas num
bueiro, uma praga. Os turistas comem, nós comemos, todos comem, mas como
considerar isso uma iguaria para a qual é preciso certo sacrifício, certo
esforço? Vinícius pondera.
Cata
o caranguejo pequeno e o joga no balde. Ainda vivo. Muito bem, mais um, mas
ainda é pouco, e tão pequeno... Vinícius
escuta um trovão e vê o céu carregado, com nuvens prestes a despencar.
Levanta-se com o balde. Melhor andar com isso, melhor correr com isso. Com as
nuvens se fechando, sua família deve estar olhando preocupada para o relógio e
em breve um deles irá chegar lá. Um deles, de seus irmãos mais novos, irá lhe
buscar e todos terão de admitir, ele admitir a si mesmo, que ele é mesmo um
incapaz. Voltar com aquele balde vazio ele não vai, de jeito nenhum. Voltar com
aquele balde com meia dúzia de cinco, para ouvir de chacota dos irmãos: “Você
não sabe contar?” Vinícius conta melhor do que os irmãos, ele sabe muito bem
disso. Mas os irmãos se aproveitam de cada uma de suas deficiências para
ressaltar sua inferioridade.
Vinícius
lava os pés numa poça. Seus pés não ficam lá muito limpos. A poça já é turva
como tudo mais, e Vinícius mete os pés nela novamente. É turva, mas mais
profunda do que Vinícius esperava. Sente a lama penetrando entre os dedos dos
pés, então algo fugidio, deslizante, perfurando seu tornozelo e escapando em
debatidas - um peixe? Um galho? Uma serpente? Assustado, Vinícius perde o
equilíbrio, recuando com os pés ainda metidos na lama. Cai com as nádegas na
terra, e antes que possa inspecionar a poça em busca do que o atacou percebe
alguém atrás de si, então uma mão estendendo-lhe , ajudando-o a ficar de pé. Vinícius a toma....