24/01/2014
A ARTE DE FAZER UMA ORELHA
A orelha é um órgão essencial do ser humano. Auxilia não apenas na orientação, estética e escuta, mas também é alça indispensável na formação ética e responsável do indivíduo, através da qual progenitoras podem puxar suas crias em reprimenda diante de falta grave.
Em livro, sua função é mais discutível e sua presença é opcional. Não só há livros sem orelhas como há orelhas sem ouvido, orelhas (literalmente) de abano, as que estão lá apenas para ostentar bijuterias, as repletas de cera.
Para mim, a boa orelha é uma peça publicitária. Informa o conteúdo do livro, resumo, breve contexto na obra do autor, encerra com um convite instigante e enaltecedor à obra. São três parágrafos, algo mais ou menos assim:
Uma orelha pode esconder muito mais do que cera. Nos labirintos recônditos do canal auricular, Boni, um besouro frustrado e existencialista busca refúgio da sociedade detritivora que o repele tanto quanto chinelos humanos e a indústria de inseticidas. Aparentemente isolado do mundo, ele revê sua história de vida - do rastejar na lama às asas, e de volta à lama - alheio aos percalços de seu hospedeiro.
Greg, um jovem estudante de biologia vive seus próprios dilemas e conflitos familiares. Em sua crise pós-adolescente, não dá importância à sua labirintite crescente, e recorre a psicotrópicos para encontrar o sentido de uma vida sem sentido. Revendo os dogmas cristãos com os quais foi criado, Greg nem imagina que ele próprio pode ser o Deus de um universo muito particular, abrigado dentro de seu corpo.
Em seu primeiro romance, Thomas Schimidt nos traz uma deliciosa alegoria da busca divina, com um humor sarcástico e uma inteligência delirante. Uma grata surpresa que já revela um nome de peso da "Geração 10". Deite-se confortavelmente, mantenha a cabeça aberta, O Labirinto de Deus vai desestabilizar seus conceitos de onde a nova literatura brasileira pode chegar.
(Esse livro não existe, ok? Foi uma orelha criada apenas para fins didáticos...)
Acho que a estrutura é mais ou menos essa...
Já perdi a conta de quantas orelhas escrevi, assinadas ou não (a começar por todas as minhas). Marcelino Freire, Cristiane Lisbôa, Mayra Dias Gomes, Ana Paula Maia (duas vezes), Rafael Primot, Hugo Guimarães, Mauro Nunes, Elisa Nazarian foram alguns dos autores para quem assinei orelha, algumas se tornaram prefácios; além dos autores estrangeiros, de Simon Van Booy a Agatha Christie.
Ao meu ver, a orelha assinada tem a mesma função da orelha "release", a diferença apenas é que a opinião sobre o livro se torna mais pessoal, há uma associação imediata da obra com o assinante. A escolha de quem assina a orelha também já traz uma indicação do autor de parentesco e afinidade de sua obra - ainda que o parentesco muitas vezes seja bastardo, só por afinidade, de décimo grau.
No caso de O Labirinto de Deus, se fosse uma orelha assinada eu só modificaria, talvez, de leve, o último parágrafo:
Em seu primeiro romance, Thomas Schimidt nos traz uma deliciosa alegoria da busca divina, com um humor sarcástico e uma inteligência delirante. Desequilibrado como sou, tive de me deitar cuidadosamente, abrir a cabeça (e limpar as orelhas) para me deixar perder no universo fascinante desse novo autor. O Labirinto de Deus revela um talento divino, que deixará sequelas irreparáveis na literatura brasileira.
Santiago Nazarian
O perigo da orelha assinada é que o autor convidado muitas vezes tem uma percepção diferente de como o autor quer apresentar o livro. Escreve um texto em que o autor não se reconhece, e que por isso não quer que faça parte de seu produto final.
Por pretensão do assinante, a orelha assinada muitas vezes também adota um tom de análise profunda da obra. Não é o local. A orelha é uma peça para ser lida em pé em livraria - para o leitor que está folheando entre Dan Brown e Zíbia Gaspareto saber do que se trata o livro. Tem menos ainda a função de crítica, apontar pontos negativos - você não expõe os defeitos na embalagem de um produto.
Centralizador como sou, costumo cuidar de TODAS as etapas da produção do livro - incluindo capa e release - e sempre tenho receio de convidar assinantes, por achar que a função não será cumprida. Também nessa cruzada solitária que sigo, não consigo encontrar verdadeiros parentescos entre os autores ao meu redor. Acho curioso gente que fala em "grupo literário", talvez um eufemismo, talvez uma interpretação mais positiva de "panelinha".
Minha única orelha assinada de fato foi a nova edição de Mastigando Humanos, pelo Michel Melamed, não só por admirá-lo e acreditar que o livro tem seu parentesco com ele, mas também por ser um livro já conhecido, a orelha não tinha tanto a função de apresentar o livro (e de qualquer forma a quarta capa cumpriu a função publicitária, com sinopses e comentários da imprensa).
De todo modo, andei pensando bem nisso ultimamente, por ter cogitado assinatura de orelha no meu livro novo (o que desisti) e por ter ajudado um "jovem autor carioca" esta semana a editar sua própria orelha (que estava absurdamente longa e pretendia contar a história toda do livro).
Vai fazer a orelha do seu próprio livro? Sinopse, breve análise de estilo, contexto na sua carreira e adjetivos positivos à obra. - Ok, acho que pesei a mão na primeira orelha de O Labirinto de Deus, o próprio autor fazer sua orelha e colocar "um nome de peso da Geração 10" é um pouco de pretensão demais - até para um jovem autor. Vai aí um parágrafo final mais comedido:
Em seu primeiro romance, Thomas Schimidt nos traz uma deliciosa alegoria da busca divina, com um humor sarcástico e uma inteligência delirante. Uma grata surpresa entre o realismo que impera entre nossos autores. Deite-se confortavelmente, mantenha a cabeça aberta, O Labirinto de Deus vai desestabilizar seus conceitos sobre literatura contemporânea.
Vai assinar orelha? Aqui: sinopse, breve análise de estilo, contexto na obra do autor e elogios exaltados. Se topou assinar a orelha é porque gostou do livro, gosta do autor, então tem de procurar os pontos mais fortes para exaltar. Para mim, isso não é difícil e não me considero generoso ao fazer isso; se a obra merece, ela já te deu algo em troca (isso sem comentar que muitas vezes a editora está pagando por sua orelha). Tantos autores (e atores, e músicos, e cineastas) eu exalto seguidamente por aqui, porque eles já estão me dando algo em troca. E espero (muitas vezes em vão) que eles ajam da mesma forma, comigo e com os que vêm a seguir.