Resenha minha na Folha, final de semana passado:
Após meia dúzia de romances publicados e duas décadas de carreira, Lionel Shriver finalmente conquistou sucesso como autora com Precisamos Falar Sobre o Kevin, misto de drama familiar e thriller, que lhe conferiu o prêmio Orange em 2005 e foi adaptado para o cinema em 2011.
O romance trazia uma atípica visão da maternidade, pelos olhos da mãe de um adolescente que provocara um massacre em sua escola.
A forma antissentimental com que Shriver expôs os laços familiares foi o verdadeiro trunfo do romance. E é uma marca que ela reafirma com sucesso em Grande Irmão.
Pandora é uma empresária bem-sucedida, bem casada e com uma boa relação com os enteados. Porém, ao receber a visita do irmão músico, que não via há anos, o frágil equilíbrio de sua vida se desfaz completa e literalmente. Outrora bonito e efervescente, Edison se tornou um obeso mórbido, comedor compulsivo, que não consegue mais se apresentar nos palcos, perdeu todos os seus pertences e não tem mais onde morar. Sentindo-se responsável pelo irmão, Pandora coloca o casamento (e a própria saúde) em risco e adota como desafio pessoal resgatar a boa forma de Edison.
Num relato em primeira pessoa cheio de dúvidas, a narradora expõe pontos de vista muito particulares (e discutíveis) sobre laços fraternos, alimentação e carreira artística, que podem fazer parte de uma autoanálise da autora. (Além de ter passado por percalços como escritora e ser casada com um músico, Shriver também teve um irmão que morreu por complicações da obesidade.)
A forma como os temas são apresentados podem incomodar tanto obesos quanto artistas; em geral, nota-se uma opinião muito negativa da vida. Entretanto, é essa visão parcial que torna a protagonista tão humana e sua história mais rica e sujeita a interpretações. Muito mais do que um livro de autoajuda para gordos, Grande irmão é cruel, incorreto e fascinante, como um romance de peso deve ser.
Avaliação: Ótimo.
(Ao ler esse livro, desenterrei também a resenha de Precisamos Falar Sobre o Kevin - que escrevi para a revista Metáfora há alguns anos. Abaixo.)
Estreia nos
próximos meses, nos cinemas brasileiros Precisamos
Falar Sobre o Kevin, elogiado filme da escocesa Lynne Ramsay, que rendeu
a Tilda Swinton uma indicação ao Globo de Ouro de melhor atriz (que acabou
sendo faturado por Meryl Streep em A Dama
de Ferro). O filme é baseado no romance homônimo fictício de Lionel
Shriver, que traz uma instigante premissa: a visão de um massacre numa escola,
à la Columbine, pelos olhos da mãe do assassino.
No livro, Eva
Katchadourian, uma americana de origem armênia, revê todo seu histórico de mãe,
tentando compreender como o filho de quinze anos foi capaz de assassinar onze
pessoas. Em longas cartas ao marido, Eva promove um acerto de contas com ele e
consigo mesma, na esperança de identificar de onde surgiu “a gênese do mal”.
O livro traz uma
visão bastante particular da maternidade. A protagonista é
uma mulher eternamente resistente à ideia de ser mãe, que vê a chegada do filho
primogênito (o “Kevin” do título) como uma invasão em sua relação com o marido
– um ponto de vista ciumento, que talvez seja mais comum aos pais do que às
mães. Mesmo ao pegar o bebê pela primeira vez no colo, Eva não é tomada de um
amor “instintivo e incondicional”, do qual tanto se houve falar. O bebê desde o
início lhe causa estranhamento.
Não é de se
surpreender que a autora, Lionel Shriver, hoje com 54 anos, não tenha filhos e
confesse que jamais desejou ser mãe. Precisamos
Falar Sobre o Kevin é um corajoso debate feminino sobre esse tema.
Entretanto, se o
ponto de vista materno é o grande diferencial do livro, a construção da
identidade do filho psicopata deixa a desejar. Em grandes tragédias como essa,
a pergunta que fica no ar é “por quê”.
E por mais que um romance de ficção não pretenda cumprir a função de um tratado
psicológico, provavelmente o leitor atraído pelo tema está em busca de possibilidades de uma resposta. Precisamos Falar sobre o Kevin não
oferece isso. Não apenas não dá respostas e não cria uma empatia e compreensão
sobre os motivos do assassino, como o caracteriza de maneira mais próxima aos
filmes B de terror e suspense. Kevin está mais próximo de moleques diabólicos
de filmes como Halloween, O Anjo Malvado e A Profecia do que da dupla de dupla de adolescentes do filme Elefante (de Gus Van Sant, 2003).
Isso faz com que
pareça que a autora conseguiu cumprir 50% da proposta de seu livro. Consegue se
aprofundar e dar uma visão diferenciada sobre a maternidade, mas foca de
maneira terrivelmente superficial o massacre. Além disso, a estrutura da
narrativa – toda baseada em cartas – por vezes parece falsa, recheada de detalhes
e descrições que interessa ao público leitor, mas que seriam desnecessárias para
um destinatário que viveu a história com ela – o pai. (Por que, contando sua
versão dos fatos ao marido, ela precisaria, por exemplo, descrever com detalhes
a casa em que os dois viveram juntos?)
De todo modo, Precisamos Falar Sobre o Kevin é uma
leitura perturbadora, que mantém o ritmo e traz diversas surpresas em suas
quase quinhentas páginas. Vendeu mais de um milhão de cópias lá fora e rendeu a
Lionel Shriver, em 2005, o prestigioso Orange, prêmio britânico para mulheres
escritoras. No Brasil, o livro foi publicado originalmente em 2007 pela editora
Intrínseca, que agora lança uma nova edição com capa remetendo ao filme.