24/06/2016

HORA EXTRA DE MIM MESMO


Da minha janela, os prédios, o shopping, a janela para a Blooks e o Gendai. 



Tenho feito jus ao inverno. Há umas boas semanas estou trancado aqui em casa, quase sem sair, saindo para quase nada. Da janela da sala eu vejo os fundos do Shopping Frei Caneca e entrando pelos fundos eu vou até o supermercado, no subsolo; não chego a emergir. O inverno favorece isso - tem sido um inverno atípico, pelo frio típico de inverno. (Você vê, meus oximoros encontram representação real no mundo, não são só punhetas estilísticas...)

Aconchegando-me ao clima e maneirando na cafeína até consigo evitar o tédio, embora não a melancolia. Não tenho mesmo ganas de sair. Meu plano de academia venceu há dois meses e ensaio para renovar. Lembro-me das épocas em que a necessidade de exercício físico era imperativa, agora acordo agradecendo por não haver nada que me obrigue. 

A barba vai crescendo, os fios brancos, o cabelo continua longo e farto e tenho de agradecer ao deus da genética por isso - se há algo que permanece bem é o cabelo,. Não posso dizer o mesmo do resto do corpo. Bem, ao menos a vaidade hoje está sob controle...

Gaia. 

Com Murilo fora da cidade a coelha é minha única companhia. Animal doméstico é sempre uma projeção de carência, claro, mas o que importa é que corresponde e faz toda a diferença. Eu acordo sabendo que há alguém (ou algo) esperando por mim... ou por minha comida. Eu me viro do computador para encontrá-la deitada no sofá de olho em mim. Tenho de brigar com ela quando a vejo comendo uma entrevista com o Glauco Mattoso. Assisto a um documentário dividindo com ela uma mexerica. 

Há muito que não uso telefone. Meu celular é o mesmo há cinco anos (um iPhone 4, veja só, que ainda funciona razoavelmente) e na maior parte do tempo está no silencioso, fora do alcance; quando o encontro descubro que está há alguns dias sem bateria; recarrego só para encontrar mensagens de contas atrasadas. 

Os emails também só chegam na categoria de spam, mas junto das dívidas até me oferecem dinheiro: "Ganhe R$ 5 mil por mês sem sair de casa", me diz um deles. Isso eu já consigo, o difícil é algo mais. Me interno neste apartamento porque ao menos tenho uma longa fila de textos e traduções. Só dependo de mim mesmo. Entrando pela madrugada consigo quase pagar todas as contas, mês sim, mês não. 

Ao menos não tem sido nada de imbecilizante, nada de imbecilizante. Os trabalhos deste ano têm sido densos, difíceis e importantes. Termino de traduzir as memórias de um sobrevivente do genocídio armênio, começo um clássico inglês do século XIX. Já me absolvi do dever de ler metade da minha pilha de colegas-contemporâneos. Eles não estão fazendo isso por mim. Por prazer revisito clássicos e reencontro curiosidades que baixei há tempos no Kindle - nem preciso sair de casa para ter novos livros (embora a Blooks da Frei Caneca também possa ser vista aqui da minha sala...). 

Minhas leituras são interrompidas vez ou outra pela Folha, que me paga por isso. Pedem urgência num livro de 700 páginas, entregam na minha casa, mas demoram dois meses para soltar a resenha (e o pagamento). Ainda assim compensa. Leio então para mim mesmo O Jantar, do Herman Koch, que começa melhor do que termina. (Gostei muito da impressão inicial de que o narrador era um imbecil, apesar de ele acreditar que os imbecis são os outros, mas o jogo perde um pouco a graça quando fica claro que o autor quer de fato colocá-lo como imbecil - preferia que fosse uma impressão exclusiva minha. E enquanto a narração do jantar em si - com o livro dividido em entrada, prato principal, sobremesa - é muito inteligente, as frequentes digressões diluem um pouco a força do livro. Bem, eu sempre prefiro as narrativas contidas...).

Com Alex Hacke (e Fábia e Ambooleg), no começo do milênio. 

A trilha do momento tem sido Einstürzende Neubauten, banda industrial alemã que conheci pessoalmente em 2000. Não só vi um show inesquecível como saí para beber com os caras, por essas relações com a cena gótica. Recentemente resolvi me reatualizar sobre o que andam fazendo, e encontrei essa aqui, que nem é tão nova mas fez efeito:  


Da minha escrita vivo o momento de pai cujos filhos saíram de casa. Entreguei romance novo há algumas semanas e espero a programação, as considerações (e o pagamento) para só fazer os ajustes finais. Há muito já não tenho a ilusão de que minha escrita mudará o mundo, há pouco não acredito nem que mudará a minha vida. Com oito livros publicados minha vida já está intrinsicamente ligada à minha escrita - não acho que seja a melhor vida que eu poderia ter, mas certamente é a vida que mais pertence a mim. Se há algo de que posso me orgulhar nesta carreira e de ter feito sempre somente o que acredito. 

Apesar de tudo, mantenho minha meta de conhecer um país novo por ano. Este ano está apertado, e não vejo muito sentido como turista se o Murilo não puder ir comigo. Mas ainda há boas chances de uma pequena turnê de lançamento de um livro na Europa, boas traduções saindo por aí. Isso é lindo, mas nem chega a ser uma mudança. Chegando aos quarenta não vejo muito o que ainda há para mudar, além de degradar...



Eu, hoje. 

NESTE SÁBADO!