09/06/2016

LITERATURA EM FUGA

Novos narradores iberoamericanos (Madri, 2010): Nazarian (Brasil), Hasbún (Bolívia), Azpeitia (Espanha), Lahoz (Espanha), Schweblin (Argentina). 



Ler um livro uma única vez, para mim, é como não ler nenhuma. Na maioria das vezes fica a sensação, mas pouquíssimo do texto. Frequentemente me pego conversando com alguém que fala com entusiasmo sobre um livro, comenta passagens e frases e eu não consigo de me lembrar de nada específico para deixar claro que li. Memória zoada que eu tenho para essas coisas...

Crime e Castigo, de Dostoievski, eu havia lido na faculdade, e me dei conta que isso já deveria ter uns vinte anos. Reli agora, buscando uma fuga da contemporaneidade. E fez tanto efeito quanto na época.

É um romanção no melhor sentido da palavra, denso, detalhista, ainda que estruturado sobre uma ideia simples, brilhantemente resumida no título. Para mim é daquelas obras obrigatórias, (ainda que todos considerem obrigatórias), e que fluem facilmente, longe de ser uma leitura maçante. Acima de tudo, é um livro divertido. Bem, eu sempre tive um fraco pelos russos...

Ler um romance desses não é apenas uma aula para o escritor, como também um parâmetro... talvez inatingível. Daquelas leituras que faço com inveja, sabendo que nunca conseguirei chegar a esse requinte de estrutura.



Então em seguida emendo com Distância de Resgate, da querida autora argentina Samanta Schweblin, lançada aqui pela Record. O livro de Schweblin é uma daqueles antídotos para Dostoievski, oferece uma outra possibilidade de escrita, mais minimalista e hermética, que reafirma para mim como há infinitas formas de construção, e todas são válidas quanto têm consistência. Sensação parecida só tive recentemente ao ler o livro do Edyr Augusto, Pssica, no final do ano passado.  E sempre tenho quando leio Ana Paula Maia (que a meu ver tem um parentesco forte com a Samanta e, embora esteja conquistando belas traduções lá fora, ainda precisa ser melhor reconhecida no Brasil).

Distância de Resgate beira o romance de horror, com duas mães a um toque de perderem os filhos num povoado fictício assolado por contaminações químicas. O tema da paranoia da maternidade me foi imediatamente identificável, e é bem próximo do que eu mesmo estou tratando no meu próximo romance.

No de Schweblin:

“Minha mãe disse que alguma coisa ruim aconteceria. Minha mãe estava certa de que, cedo ou tarde, aconteceria, e agora podia ver isso com toda a clareza, podia sentir que aquilo avançava para nós com uma fatalidade tangível, irreversível. Já não há distância de resgate, o fio está tão curto que mal consigo me mover no quarto, mal posso me afastar de Nina para chegar até o armário e buscar as últimas coisas.”

E no meu próximo:

Há algo de errado com meu filho. E não posso dizer que me surpreendo. Esperei a vida toda por isso. Desde o primeiro dia, desde antes, espero algum sinal de anomalia. A mancha vermelha na testa desapareceu, então esperamos os primeiros passos. Alvinho engatinhou e se levantou, então esperamos as primeiras palavras. Alvinho falou – acho que foi algo previsível como mamá – e esperamos as convulsões. A cada frango servido, esperava o osso da sorte a travar-lhe a garganta. Sempre que eu voltava de uma viagem, sempre que, de longe, perguntava sobre ele, esperava, temia, ansiava pela má notícia que acreditava ser inevitável recair sobre meu filho.

Coincidência ou simplesmente um tema de nossa geração que se aproxima dos quarenta, e contempla o começo e o fim das possibilidades de ter um filho. Tive a honra de dividir mesas com a Samanta, Alejandro Zambra, Daniel Alarcón em encontros de “jovens escritores latino americanos” em Madri, Bogotá, Lima, Buenos Aires... Tenho orgulho de fazer parte dessa geração.

Com Samanta na casa dela em Buenos Aires (2011). 


Revolvendo assim influências literárias, semana passada pipocou no Facebook aquela lista de “15 autores que me influenciaram”, vários autores colocando os seus, muito Machado, muito Lobato, muitos obrigatórios previsíveis. Também tenho minhas previsibilidades, então aproveito aqui para estender os 20 que mais me influenciaram, com uma breve defesa de cada. Vale para eu mesmo reafirmar o que quero fazer, aonde quero chegar...

20 autores que mais me influenciaram:

1. Oscar Wilde: Ler O Retrato de Dorian Gray na adolescência foi meu mal. Pela primeira vez num livro tive a nítida convicção: “é isso que quero fazer.” O estilo dândi e o humor sarcástico de Wilde até hoje são referências fortes para mim.

2. Franz Kafka: Não só o absurdo da narrativa, mas o minimalismo de A Metamorfose foram uma influência forte para mim. Como é possível fazer um romance fantástico, em todos os sentidos, com tão pouco.

3. Thomas Mann: Embora seja o filme “Morte em Veneza”, de Luchino Visconti, que me levou à obra de Mann, está longe de ser meu texto favorito dele (acho que prefiro o filme, na verdade). Porém serviu para me apresentar coisas brilhantes do começo de carreira dele, como Tônio Kroeger e o livro de contos Os Famintos, que norteou muito meus temas. A Montanha Mágica, apesar de ser de uma fase posterior, e de ser daqueles “romanções obrigatórios” (em alguns trechos maçante), também ecoou em mim nas passagens melancólicas e platônicas típicas do autor.


Honra dividir mesas de debate (e de restaurante) com o gênio Noll. 

4. João Gilberto Noll: Falando em melancolia, poucas coisas me tocam tanto quanto os livros do Noll, sempre recheados também de uma ambiguidade sexual e nostalgia. Fácil aqui colocar vários dos meus favoritos: “Rastros do Verão”, “Hotel Atlântico”, “Acenos e Afagos”; “O Cego e a Dançarina” é facilmente meu livro de contos favorito, e “O Meu Amigo”, meu conto favorito da VIDA.


5. Dennis Cooper: Pouco conhecido (e nunca traduzido no Brasil; eu bem que tentei...) Cooper é um autor gay ultrahardcore, que mistura pornografia, pedofilia, tortura e necrofilia com um lirismo bem incomum nesses temas. É das coisas mais pesadas que se pode ler – ao meu ver muito mais eficiente que Sade. Mas ele também tem um livro menos gráfico, menos gay, com uma violência mais psicológica: God Jr. (talvez meu favorito). Meu Pornofantasma é filhote direto dele.

6. Clive Barker: Tem certo parentesco com Cooper (talvez pela influência dos beats), porém mais calcado num horror mais convencional. O universo dele, recheado de fetiches sadomasoquistas, é uma grande influência para mim, especialmente seus “Books of Blood” (volumes de contos).

7. Stephen King: Daqueles que li com maior prazer na adolescência, especialmente It e o livro de contos Night Shift, que foram dos primeiros livros que li em inglês. Como contador de histórias, poucos o superam.

8. Alberto Morávia: Autor italiano que herdei da biblioteca da minha mãe, que rejeitou a escatologia dele, presente principalmente em Desidéria. Mas além desse ele me encantou pelo retrato da adolescência nas duas novelas “Luca” e “Agostino”, (que apesar do original em italiano eu li em inglês, acho que nunca foram publicadas em português). O “Homem que Olha” foi outro romance dele que me fisgou, anos atrás... e do qual não me lembro quase nada.

9. Irmãos Grimm: Básico, né? Tenho belas versões ilustradas da minha infância, em especial uma edição portuguesa. E recentemente comprei as obras completas. Ainda me pego lendo de vez em quando.

10. Lúcio Cardoso: Tem certo parentesco com Noll e Caio, não só pela homossexualidade, mas talvez pelo universo ambíguo derivado dela. Crônica da Casa Assassinada é a obra mais exaltada (e conhecida) dele, apesar de uma leitura difícil. Fui fisgado particularmente pelo clima soturno de O Desconhecido (republicado há alguns anos num volume com a novela “Mãos Vazias”, pela Civilização Brasileira). Há alguns anos soube também que ele foi grande amigo do meu pai.  

11. Álvares de Azevedo: Acho que a única leitura obrigatória da escola que me cativou, pelo universo romântico (e gótico), principalmente em Noite na Taverna e Macário.

Não sei se algo da minha obra ficará, mas um lugarzinho para mim já está assegurado só por tantos grandes desta época que tenho o prazer de conhecer, conversar e ser amigo. 



12. Marcelino Freire: Aqui só estou puxando o saco... Haha. Nah, além de amigo (e grande influência como amigo), foi o primeiro autor dessa nova geração que eu li, e fique fascinado pela prosa poética, musical dele. Foi o autor que me deu licença para usar as rimas – e faz isso tão bem. Com certeza tem uma escrita inconfundível. Eu tive o prazer de escrever a apresentação de Rasif, mas meu favorito dele ainda é Balé Ralé.

13. Caio Fernando Abreu: Autor obrigatório da minha adolescência. A hiper-afetividade gay dele me encantou muito na época, hoje confesso que me cansa um pouco, muito “amorzinho”, falta uma maldade aí. Ainda assim, fica o carinho por Morangos Mofados, Os Dragões Não Conhecem o Paraíso e as cartas dele.

14. Herman Hesse: Demian e O Lobo da Estepe foram obras importantes na minha adolescência, pelos discursos filosóficos e também (como sempre) a ambiguidade. Hoje, pouco me lembro das tramas em si.

15. Lionel Shriver: Das poucas autoras mulheres aqui, e a mais recente da lista. Li “Precisamos Falar Sobre Kevin” naquele meu inverno tenebroso na Finlândia, em que quase me matei. Tenho várias ressalvas sobre esse livro, mas a forma como ela apresenta o lado mais sórdido das relações familiares me inspira muito, principalmente em Grande Irmão, que resenhei para a Folha há alguns anos.

16: Yan Martel: Canadense famoso por A Vida de Pi (que gerou o filme, polêmica com Scliar... além do meu conto “As Vidas de Max), constrói alegorias fantásticas para tratar de temas filosóficos. Outro dos meus favoritos dele é Beatriz e Virgílio, que mistura ensaio e romance com um clima bizarríssimo que beira o terror. Tive o prazer de ler em primeira mão, antes da publicação, como parecerista de uma editora. Parecer obviamente positivo.

17. William Shakespeare: Ok, daqueles obrigatórios obrigatórios, que acabam sendo influência mesmo que a gente não queira. Eu ainda tive o privilégio de trabalhar na tradução/legenda de duas montagens de peças dele por companhias estrangeiras aqui em São Paulo: Cimbeline e Hamlet, então não tinha como não ter uma relação pessoal com as obras dele. Como texto teatral, nunca houve nada melhor.

18. Vladimir Nabokov: Lolita é obra obrigatória e mergulho profundo no universo masculino, mas o volume de contos Perfeição estende esse universo em histórias bem divertidas e talvez mais acessíveis. Sempre gosto de ler as obras da juventude desses “autorzões”, que tratam dos temas que os tornaram celebres, mas com uma certa ingenuidade e romantismo que se perde com o tempo.  

19. Angela Sommer Bodenburg: Harry Potter chegou tarde para mim, já era marmanjo lendo Wilde e Caio, então na minha infância a série de livros que acompanhei com mais entusiasmo foi “O Pequeno Vampiro”, dessa autora alemã. É a história de um menino nerd solitário, fã de filmes de terror, que fica amigo de um vampirinho. Não tinha como não conquistar uma criança gótica como eu.


20. João Carlos Marinho: Esse está na lista de vários amigos e me lembrei de quanto acompanhei também a série de O Gênio do Crime, em vários livros. É daqueles de que hoje pouco lembro, mas que na infância acompanhava com ansiedade. O que mais ficou para mim é o humor absurdo de O Caneco de Prata, que parecia uma obra mais surrealista, dentro da série. “O professor Giovani tinha sete filhos e comeu um macarrão” é uma das frases de que ainda me lembro... Ok, a única de que me lembro.  

NESTE SÁBADO!