29/06/2016
NENHUM CAVALO FOI MOLESTADO DURANTE A ESCRITA DESTE POST
Acompanhava ontem essa discussão no Facebook. Bia Carvalho, autora de livros de "dark romântico", voltados ao público juvenil, indignava-se com textos pornográficos hardcore postados no Wattpad, uma plataforma de compartilhamento gratuito de textos.
O post havia sido compartilhado por minha amiga Tammy Luciano, autora de romances açucarados, que ia além na indignação e falava em CRIME por parte do autor dos textos
Não acesso o Wattpad, não conheço os textos citados (até porque foram excluídos) e imagino que não sejam grande coisa e nem que possam ser chamados de "literatura", mas defendo até a morte a liberdade na FICÇÃO.
O Wattpad tem suas pólices, pode proibir pornografia no site e excluir os textos, é direito deles. Agora decidir o que alguém pode ou não escrever em ficção é perigoso, principalmente nesse tempo neoconservador evangelicuzinho coió em que estamos...
Alguns seguidores concordavam com Bia e Tammy falando em apologia, palavrinha mais do que perniciosa. Por essa lógica, se narrar sexo com menores de idade é apologia à pedofilia, narrar o consumo de drogas é apologia ao uso, narrar um roubo de banco é apologia ao crime, e por aí vai...
Ficção existe para isso. Para se fazer o que não se pode no mundo real. Se quem escreve esse tipo de coisa realmente é pedófilo, não podemos saber. Mas ter fantasias em si não é crime, desde que elas não se concretizem. Eu inclusive acredito no poder de sublimação desses textos.
Muitos desejos e fantasias permanecem apenas nesse terreno. É possível erotizar a relação de uma mulher com um cavalo, e isso não significa o desejo de realizar essa fantasia. Na ficção ela toma outros contornos, pode ser idealizada de uma forma que não encontra correspondente no mundo real (o texto do Wattpad, ao que parece, idealizava de forma que a menina de 4 anos já era sexualizada e curtia o ato). Um exemplo didático disso são as versões eróticas de desenhos animados clássicos: Dos Simpsons aos Flinstones e Tom e Jerry. Só fazem sentido como fantasia. Há também as clássicas (e cafonas) fantasias de casal, o marido se vestindo de bandido e amarrando a esposa. Isso não significa que ela de fato queira ser estuprada por um desconhecido.
No começo de carreira, trabalhei por cerca de um ano com pornografia, vocês sabem (bom, tive de contar essa histórias nas quatro vezes que fui ao Programa do Jô), escrevia as histórias de disk-sexo para uma operadora de celular. Narrava todo tipo de fantasia, hétero, lésbica, gay, com bombeiro, padeiro, veterinária... Passava longe do que excitava de fato a mim. A produtora tinha suas pólices, e se eu colocava um aluno transando com a professora, por exemplo, tinha de deixar claro que o aluno era maior de idade (mesmo que se comportasse como criança). Era uma pólice da produtora para evitar conflitos. Mas era uma escolha deles.
Tais narrativas são comuns em sites de contos pornográficos estrangeiros. Há até alguns com categorias: "Menores", "Estupro", "Zoofilia", "Necrofilia", etc. São comuns inclusive fanfics com celebridades (inclusive celebridades mirins - dá para imaginar a quantidade de contos eróticos envolvendo Harry Potter e seus professores ou mesmo Justin Bieber, desde o começo de carreira). Nesse caso, quando está se mexendo com a identidade de pessoas reais, acho que é justo abrir espaço para se discutir um processo judicial. Entram aí coisas como constrangimento ilegal.
A discussão também é comum no cinema. Um dos casos mais recentes foi com o "Serbian Film", que continha cenas de estupro de recém nascido e de criança. Embora as cenas sejam obviamente fakes, havia atores mirins interpretando (no caso do bebê acho que era um boneco), então já há uma margem maior para se condenar a real exposição de crianças nesse contexto (ainda que o sexo em tela seja sugerido, não explícito). E vira e mexe a discussão surge também nos games, com as senhorinhas condenando jogos que "estimulam a violência", como GTA e afins.
Eu pessoalmente adoro autores que conseguem lidar com os desejos mais perversos, que só poderiam ser encontrados entre páginas. De Sade a Glauco Mattoso, Hilda Hilst, Dennis Cooper e Hugo Guimarães. Todos conseguem extrair certa poesia de situações sórdidas que eu não gostaria de encontrar fora daquelas páginas.
Milito sempre a favor da diversidade na literatura, e acho importante que haja também autores mais comerciais como Bia, Tammy e tantos outros. Mas as boas vendas desse segmentos às vezes dão a ilusão a esses autores de que eles podem ditar o que é certo, que só o caminho deles (das vendas) é o válido (como Raphael Draccon, que respondeu a um artigo meu na Folha apresentando suas vendagens como argumento de qualidade; ele que diz só trabalha com "autor ficha limpa"- provavelmente drogados, malditos e mulheres que não depilam o sovaco estão de fora). Para eles, a literatura tem um compromisso com a moral e os bons costumes.
Bem, por aqui continuamos trabalhando no lado negro da força.