13/02/2017

ANIMAIS RAROS

Texto que publiquei na Ilustríssima da Folha desse domingo: 

Os números são sempre desanimadores. Num país com 27% de analfabetos, nem os alfabetizados têm o costume de ler. Nesse contexto, o que sobra para o autor brasileiro contemporâneo, esse ser tão marginalizado?
 No meio literário, mantém-se o palpite nem tão sarcástico de que o número total de leitores de literatura brasileira contemporânea seja o mesmo da media das tiragens: três mil. Desses, a imensa maioria é formada pelos próprios autores, editores, jornalistas. Mesmo dentro do cenário acadêmico, nas faculdades de letras, não se conhece bem a literatura produzida hoje no país. Se é uma falácia dizer que escritores não são lidos por seus pares, por aqui é mais correto dizer que os escritores são lidos apenas por seus pares.
“Eu também escrevo.” Provavelmente é a frase que um autor mais ouve de seus leitores. Sendo uma arte de conhecimentos técnicos discutíveis, diferentemente da música, por exemplo, em teoria qualquer alfabetizado pode ser escritor. E como parece ser um consenso a ideia de que um grande escritor deve ser um grande leitor, qualquer apaixonado pela leitura se sente compelido a fazer o salto da autoria.                
“Conhece algum leitor de literatura brasileira contemporânea sem pretensões literárias?”, iniciando essa pesquisa, perguntei à minha amiga escritora Simone Campos, como décadas atrás perguntava “sabe quem está vendendo pó?” (O pó sempre foi mais fácil de se encontrar.) Procurando leitores anônimos, cheguei a abordar uma colega de academia (de ginástica, não se engane), que eu sempre via com um livro. “Quais autores brasileiros atuais você lê?” Ela pensou por um tempo, procurando nomes. “Comprei o livro do Julián Fuks... mas me roubaram”, foi tudo o que conseguiu achar (ou perder). Na ocasião, ela lia Elena Ferrante.
                Mas não haveria um pequeno percentual que lê avidamente a literatura brasileira contemporânea, não escreve, ou ao menos não trabalha (ainda) com isso? Uma boa resposta tem vindo das redes sociais. Hoje, um escritor ativo no Facebook já identifica meia dúzia de nomes que estão sempre lá, divulgando lançamentos, comentando as resenhas e discutindo com os próprios autores, mas que ainda não têm um papel definido dentro do meio. São os leitores perfeitos... ou quase.
                Estamos falando de ficção literária, literatura de densidade. Na literatura comercial brasileira já se tornou comum ver milhares e milhares de fãs joveníssimos que formam filas em bienais e acompanham seus autores favoritos como ídolos pop.
O estudante Iuri Keffer é um desses; aos vinte anos está fazendo a migração da literatura juvenil e comercial para obras mais densas. Começou a ler por ser fã de terror e através da literatura de gênero encontrou jovens autores que se promoviam nas redes sociais. Essa possibilidade de proximidade foi o que o seduziu à literatura brasileira. Morando em Vitória, no Espírito Santo, nunca encontrou uma cena local efervescente, então chegou a viajar para o Rio de Janeiro para estar presente no lançamento da autora de “Young Adult” Tammy Luciano, uma de suas favoritas. Querendo se desenvolver também como autor, atualmente mergulhas nas obras mais profundas de jovens autores como Luisa Geisler, Sheyla Smanioto e Rafael Gallo, todos vencedores do Prêmio Sesc. Tornou-se amigo de vários autores pelas redes sociais, e participa das discussões, mas mantém perante essa literatura ainda uma posição de humildade. “Às vezes pego passagens do livro da Luisa e não entendo nada. Mas deixo guardado para quando for um leitor mais experiente”, brinca.
                Pouco mais velho do que Iuri, o carioca Mateus Pinheiro, de 22 anos, estudante de jornalismo, já é quase onipresente nas discussões sobre literatura brasileira contemporânea nas redes sociais e figura carimbada nos lançamentos e debates do Rio de Janeiro. De passagem por São Paulo, conseguiu marcar encontros com alguns de seus autores favoritos, como Antonio Xerxenesky e Ricardo Lísias. Nessa ocasião, quando eu o encontrei no começo de dezembro passado, ele já havia lido 85 livros em 2016, “mas chego fácil aos 100 até o final do ano”, disse ele a três semanas da virada. Mateus tem uma opinião bem veemente sobre o que gosta e o que não gosta e a expressa apaixonadamente pela rede. Criou inclusive uma página de pequenas resenhas no Facebook, a “Resenha de Bolso” (facebook.com/resenhadebolso), em que analisa obras atuais em poucas linhas e dá sua nota.
Essa é, aliás, outra fronteira pouco delimitada da cena literária atual: a crítica e o leitor. Com a extinção progressiva dos suplementos literários (e da mídia impressa como um todo), a maior parte das resenhas está na mão de “amadores”, ou leitores apaixonados que criam blogs e vlogs ou usam a rede social de leitores Skoob para discutir sobre seus livros favoritos, muitas vezes de maneira absolutamente pessoal e pouco consistente.
Não parece ser o caso de Mateus, que conseguiu uma curiosa posição de destaque no meio literário, como leitor, por demonstrar entender tanto do que está lendo e do que está comentando. Não tendo vindo de uma família de leitores, passou a ler na adolescência por conta do bullying que sofria no colégio, o que o levou a se isolar. Começou pela literatura policial e, descobrindo Rubem Fonseca, migrou para a literatura brasileira contemporânea. Outros de seus autores favoritos hoje são Victor Heringer, Elvira Vigna e Vanessa Bárbara.
São nomes compartilhados por Arthur Tertuliano, 29 anos, nascido no Recife e residente há dois anos em São Paulo. Formado em Direito, fez mestrado em Estudos Literários, por sua paixão pela literatura. Na capital paulista, seu primeiro emprego foi de vendedor da Livraria Cultura, que poderia ser uma vaga feita para grandes leitores, mas que cada vez mais é preenchida por gente totalmente afastada da leitura. “Eu aproveitava as folgas, o horário de almoço para ler e outros vendedores todos estranhavam. Diziam que quando não estavam trabalhando não queriam nem ver livro.”
Arthur afirma ter lido “poucos” livros em 2016, foram 101 até o começo de dezembro. “Li 349 em 2015”, diz, contando juvenis e infantis, de leitura mais rápida. Mesmo sendo um ávido leitor, Arthur não tem nenhum romance na gaveta. Já pensou em ser escritor, publicou resenhas e escreve para o site Posfácio (www.posfacio.com.br), mas atualmente não tem grandes pretensões no meio. “É tão bom ser apenas leitor, sem precisar frequentar eventos literários.”
Já em Quatigá, no interior do Paraná, a professora de ensino médio Sandriele Bueno, de 27 anos, foi uma rara estudante de Letras seduzida pela literatura brasileira contemporânea. “Até começar a graduação eu nunca tinha lido um livro”, diz ela, que escolheu o curso de Letras pela facilidade com o inglês. Lá, conheceu “Contos Negreiros”, de Marcelino Freire, que a fisgou pela proximidade da língua. Aprofundando-se na obra de Marcelino, ela foi atrás dos “amigos” do escritor pernambucano, o que basicamente estendeu a ela todos os autores vivos do país. Entre seus favoritos encontram-se hoje Paulo Lins, Milton Hatoum e João Anzanello Carrascoza.
Personagem difícil de encontrar, totalmente fora do meio, é a paulista Viviane Wakuda, de 29 anos, grande revelação como confeiteira (inclusive capa da Ilustrada no final do ano). Fã de autores como Neil Gaiman, fez a migração para a literatura brasileira através de nomes como Ana Paula Maia e João Gilberto Noll. Ao prestigiar as noites de autógrafo, presenteia os autores não com originais de livros, mas com deliciosos bolos e macarons. “Não escrevo. Só tenho o hábito de ler mesmo. Se for para lançar um livro, será de receitas”, diz ela, a leitora ideal.
Na minha busca por esses “leitores perfeitos” encontrei mais um punhado de personagens... apenas um punhado. Pensei em muita gente que, pesquisando melhor, já publicou um livro de contos, uma coletânea de poemas. Muitos colegas escritores me indicaram bons nomes, que eram grandes leitores, mas que liam apenas um ou outro nome de literatura nacional. Quem dera encontrar um leitor pipoqueiro, um traficante, um pastor evangélico... Mas talvez isso seja tarefa para um jornalista mais hábil. Ou utópico.
De toda forma, esses perfis deixam claro que, de alguma forma, a literatura brasileira ainda resiste, e existe. Que grandes leitores se tornem autores não é algo a se queixar, haverá espaço para todos, se o meio continuar se lendo. Porém eu, pessoalmente, prefiro sempre que a literatura alcance novos meios, novos cenários.

Não por acaso, acabei me casando com um desses animais raros, o chef de cozinha Murilo de Oliveira, 28 anos, de Londrina, ávido leitor dos contemporâneos. Quando o conheci há quatro anos, ele mesmo nunca havia lido um dos meus, mas disse assim que descobriu que eu escrevia: “Sou fã do João Paulo Cuenca.” (Bem, ninguém é perfeito.) 

07/02/2017

MINHA MÚSICA






A banda Sasha Grey as Wife acaba de lançar disco novo, com o pomposo nome de “Ashtar Sherran I: Terra”. A banda é projeto de um homem só, Júlio Victor, de Volta Redonda, com participação de mais de trinta músicos e artistas, eu entre eles.

Júlio. 

Não conhecia o som dele, mas ano passado ele aparece na minha caixa de mensagens do Facebook me pedindo uns versos e uma locução para uma das faixas do disco a ser lançado, baseada em BIOFOBIA. Me mandou uma demo, gostei bem do que ouvi e sofri para escrever e gravar algo com minha voz sofrida.

Das cinzas ao pó
Do pó se brota
Sementes irrompendo da terra
Cogumelo rompendo da bosta
Se a natureza é mãe, é má
A natureza é madrasta
Para se adestrar a mata
É preciso poder, é preciso podar
Derramar sangue, suor e ter fé
Fé no Inferno

 “Biofobia – Freak Fiction” é apenas uma das onze faixas que fazem parte desse novo trabalho, que mistura pós-punk, shoegazer e metal com spoken Word. E o álbum é ÓTIMO.

Além de grande guitarrista e compositor, Júlio Victor é um poeta. Se pouco se pode compreender do que ele canta em inglês, as declamações em português são incríveis, como em “Iphone Simulator 97” em que ele despeja rajadas sobre uma ex-pretendente ou em "Trans Crux" em que ele faz uma crítica mordaz à religião em crônicas cotidianas. 

Fiquei orgulhoso de fazer parte do disco. Mais do que ser reconhecido pelos consagrados, é lindo ver que estou ecoando em novos talentos. Significa que a coisa permanece e pode ir além...

O disco pode ser ouvido na íntegra aqui: Sasha Grey


Não é a primeira vez que participo de uma dessas. Minhas parcerias com amigos queridos da MPB (Arthur Nogueira, Thiago Pethit, Filipe Catto), nunca saíram do papel, mas já tive boas experiências no meio alternativo, como letra e locução no disco da extinta banda de metal Last Pain (“Drama Queen”) e, claro, a letra de “Mastigando Humanos”, para o primeiro disco solo do pós-emo Daniel Peixoto, que acabou sendo batizado por mim.

Engolindo o underground
de Artur Alvim a Ana Rosa
se a morte é inevitável
que então seja saborosa

Lipídios, glicídios, suicídios na minha janta
Mendigos, meninos, bem-vindos à garganta.

Mastigando Humanos
Mastigando, hermanos
Mastigando, manos
Mastigando

Se o crime é arriscado,
mesmo pra forrar despensa
Abra a boca e feche os olhos
no fim, o creme compensa

Já dizia titio Freud,
tudo é sexo, tudo é oral
Para um réptil como eu
rastejar não é tão mal

Lipídios, glicídios, suicídios na lancheira
Carpaccio, cachaça, canudos na carreira.

Mastigando Humanos
Mastigando, hermanos
Mastigando, manos
Mastigando




Minha relação com a música é mais profunda do que meu talento musical, infelizmente. Estudei piano na adolescência, e cheguei a tocar teclado numa banda de glam rock no final dos 90, entre os 19 e os 21 anos. Lá eu só compunha melodias – mas a banda estava longe de ser boa, é claro. Depois segui num projeto solo, uma espécie de proto-Tetine, que era pior ainda. Mas me orgulho das gambiarras que fazia na época. Com um teclado Yamaha, vários cabos e um gravador analógico em K7, eu conseguia gravar músicas com vários canais vocais... bem, se é que se podia chamar aquilo de “músicas”.

Eu, pianinho. 

Minha experiência mais profissional na música foi como compositor de jingles. Ao menos, fui pago por isso e as músicas foram ao ar nas maiores rádios do Rio Grande do Sul. Quando trabalhava como redator publicitário em Porto Alegre (entre 2000 e 2002) criei algumas dezenas de letras de jingles para Zero Hora, Telefônica Celular, Leite Elegê. Era o que me dava mais prazer naquele trabalho, apesar de todas as limitações do formato. Ainda tenho os jingles em MP3.  Eles entram como merchans no shuffle do meu iPod.

O mundo não para quando você está de férias
Cultura, economia, diversão e coisas sérias
No carro, na praia ou na beira da piscina
No litoral gaúcho ou de Santa Catarina

O mundo gira, não dá pra ficar de fora
O mundo viaja com a sua Zero Hora
O mundo gira, não dá pra ficar de fora
O mundo viaja coma sua Zero Hora

Locução: Neste verão, receba Zero Hora também no Litoral.
Ligue XXXXXXXX e assine.

Ou

Não se sinta só se está sozinho
Se estou longe estou a caminho
Perto, estou bem acompanhado
Sempre caminhando ao seu lado

Nunca é tarde se há um segundo
Temos todo o tempo e todo o mundo
Conversando mesmo sem assunto
Divertindo ou trabalhando juntos

Olha pra mim, se não me vê
Estou a um alô de estar com você
Olha pra mim, se não me vê
Estou a um alô de estar com você

Locução: Telefônica Celular, a sua melhor companhia.

E tem o melhor de todos... que acho que encerrou minha carreira:

O bezerro pasta, mas é o pardal que voa triste
Por não poder mamar e viver comendo alpiste
O caranguejo tem desejo de viver como um cão
Pra tomar leite contente mas não é cachorro não

O peixinho dourado não quer ser só enfeite
Quer ser livre como um gato e poder tomar seu leite
Quem não chora não mama, quem não mama quer beber
Um copo, dois copos, três copos de leite Elegê.


Locução: Leite Elegê, até quem não é mamífero gosta. 


Tenho vontade de trabalhar mais com música. Comprar um teclado novo só para brincar. Escrever algumas letras. Mas nos tempos atuais a gente se concentra mais no que vai pagar o almoço de amanhã...

Sim, isso é real. Sim, isso foi publicado. 

02/02/2017

MINHA VIDA COM SAMARA


Em 2002, logo após assistir ao primeiro “O Chamado” no cinema, fui pesquisar mais pela internet. Os tempos eram outros, e muitas das informações sobre o filme vinham de blogs falsos, que diziam que a trama era baseada numa história real (ou numa lenda urbana). Um dos blogs dizia ter as imagens originais da fita que inspirou o filme – e alertava para o risco de assistir.

Eu naturalmente assisti. Era um vídeo parecido, mas diferente do que tinha visto no cinema, mais curto, com uma pegada mais oriental. E quando o vídeo acabou, o telefone tocou.

Eram três horas da madrugada.



Eu estava na casa da minha mãe, ela atendeu no quarto dela. No dia seguinte, perguntei se o telefone tinha mesmo tocado. Ela confirmou, e disse que ninguém falou nada do outro lado.

Mais do que uma crença na maldição, na época fiquei me perguntando se haveria possibilidade de o próprio site fazer uma coisa dessas, hackear o número de quem havia dado play. Por via das dúvidas, passei o vídeo para frente, claro.

Sete dias depois, ninguém morreu.



Não só por isso, “O Chamado” permaneceu para sempre como um dos meus filmes de terror favoritos. Cheguei a comprar a versão original japonesa, mas, talvez por ter assistido depois, não teve o mesmo impacto (ao menos descobri que dela é que havia sido tirado o estranho vídeo que assisti naquela madrugada). A versão americana tem suas falhas, claro; acho a maior delas mostrar o rosto infantil da Samara, que deveria ter sido guardado apenas para a cena demoníaca final. Mas o clima, a fotografia, a fita e a investigação são imbatíveis.

Comprei também o romance que deu origem a tudo (traduzido para o inglês), de Koji Suzuki. É mais uma ficção científica metafísica do que terror; tem toda uma explicação sobre as ondas de vídeo, os males que causam. Além disso Sadako (a Samara japonesa) é uma ADOLESCENTE HERMAFRODITA, não uma criança demoníaca. É ler para crer. 
Minha edição americana de "Ring", de Koji Suzuki.

A continuação de 2005 não me empolgou em nada. Detestei que abandonaram a premissa da fita e a ideia de que “Samara só precisa de uma mãe”. As sequências orientais eu nunca assisti.



Agora chegamos ao terceiro filme americano, que está sendo adiado há quase dois anos. “Rings” (que foi anunciado aqui como “Chamados” e depois virou “O Chamado 3”) é uma bagunça. Faz jus ao seu título brasileiro final, porque parece três filmes em um. Começa com uma espécie de culto cyber de seguidores de Samara (que vão passando a maldição de um para o outro) – uma ideia interessante, que derivou de um curta lançado entre o primeiro e o segundo filme, chamado justamente de “Rings”. (Ele pode ser encontrado com o nome “Círculos” no box em DVD com os dois primeiros filmes, lançado no Brasil.)

Entretanto essa seita é apenas um ponto inicial; dela o filme migra para mais uma investigação sobre o passado de Samara, com um casalzinho totalmente sem carisma, que não descobre nada de interessante, com um roteiro tosco de doer. No terceiro ato, o filme desanda de vez com um novo vilão. Sem dar muitos spoilers, parece cópia de outro filme de terror recente e perde totalmente o rumo.

Enfim, só não é uma grande decepção porque eu já esperava algo assim... Mas acho que esse consegue ser pior do que o segundo.

Alguns até eu me recuso...

Falta agora uma nova grande franquia para o terror americano. Nunca consegui me entusiasmar por “Atividade Paranormal” e menos ainda por “The Conjuring” e seus derivados. “A Entidade” era um que prometia, mas que também desandou na sequência. Quanto à Samara, parece que as sucessivas cópias desgastaram de vez sua imagem. 

Volta pro fundo do poço, menina...

NESTE SÁBADO!