Texto que publiquei na Ilustríssima da Folha desse domingo:
Os números são sempre
desanimadores. Num país com 27% de analfabetos, nem os alfabetizados têm o
costume de ler. Nesse contexto, o que sobra para o autor brasileiro
contemporâneo, esse ser tão marginalizado?
No meio literário, mantém-se o palpite nem tão
sarcástico de que o número total de leitores de literatura brasileira
contemporânea seja o mesmo da media das tiragens: três mil. Desses, a imensa
maioria é formada pelos próprios autores, editores, jornalistas. Mesmo dentro
do cenário acadêmico, nas faculdades de letras, não se conhece bem a literatura
produzida hoje no país. Se é uma falácia dizer que escritores não são lidos por
seus pares, por aqui é mais correto dizer que os escritores são lidos apenas por seus pares.
“Eu também escrevo.”
Provavelmente é a frase que um autor mais ouve de seus leitores. Sendo uma
arte de conhecimentos técnicos discutíveis, diferentemente da música, por
exemplo, em teoria qualquer alfabetizado pode ser escritor. E como parece ser
um consenso a ideia de que um grande escritor deve ser um grande leitor,
qualquer apaixonado pela leitura se sente compelido a fazer o salto da autoria.
“Conhece algum leitor
de literatura brasileira contemporânea sem pretensões literárias?”, iniciando
essa pesquisa, perguntei à minha amiga escritora Simone Campos, como décadas
atrás perguntava “sabe quem está vendendo pó?” (O pó sempre foi mais fácil de se
encontrar.) Procurando leitores anônimos, cheguei a abordar uma colega de
academia (de ginástica, não se engane), que eu sempre via com um livro. “Quais
autores brasileiros atuais você lê?” Ela pensou por um tempo, procurando nomes.
“Comprei o livro do Julián Fuks... mas me roubaram”, foi tudo o que conseguiu
achar (ou perder). Na ocasião, ela lia Elena Ferrante.
Mas
não haveria um pequeno percentual que lê avidamente a literatura brasileira
contemporânea, não escreve, ou ao menos não trabalha (ainda) com isso? Uma boa
resposta tem vindo das redes sociais. Hoje, um escritor ativo no Facebook já
identifica meia dúzia de nomes que estão sempre lá, divulgando lançamentos,
comentando as resenhas e discutindo com os próprios autores, mas que ainda não
têm um papel definido dentro do meio. São os leitores perfeitos... ou quase.
Estamos
falando de ficção literária, literatura de densidade. Na literatura comercial
brasileira já se tornou comum ver milhares e milhares de fãs joveníssimos que
formam filas em bienais e acompanham seus autores favoritos como ídolos pop.
O estudante Iuri Keffer
é um desses; aos vinte anos está fazendo a migração da literatura juvenil e
comercial para obras mais densas. Começou a ler por ser fã de terror e através
da literatura de gênero encontrou jovens autores que se promoviam nas redes sociais.
Essa possibilidade de proximidade foi o que o seduziu à literatura brasileira.
Morando em Vitória, no Espírito Santo, nunca encontrou uma cena local
efervescente, então chegou a viajar para o Rio de Janeiro para estar presente
no lançamento da autora de “Young Adult” Tammy Luciano, uma de suas favoritas.
Querendo se desenvolver também como autor, atualmente mergulhas nas obras mais profundas
de jovens autores como Luisa Geisler, Sheyla Smanioto e Rafael Gallo, todos
vencedores do Prêmio Sesc. Tornou-se amigo de vários autores pelas redes
sociais, e participa das discussões, mas mantém perante essa literatura ainda uma
posição de humildade. “Às vezes pego passagens do livro da Luisa e não entendo
nada. Mas deixo guardado para quando for um leitor mais experiente”, brinca.
Pouco
mais velho do que Iuri, o carioca Mateus Pinheiro, de 22 anos, estudante de
jornalismo, já é quase onipresente nas discussões sobre literatura brasileira
contemporânea nas redes sociais e figura carimbada nos lançamentos e debates do
Rio de Janeiro. De passagem por São Paulo, conseguiu marcar encontros com
alguns de seus autores favoritos, como Antonio Xerxenesky e Ricardo Lísias. Nessa
ocasião, quando eu o encontrei no começo de dezembro passado, ele já havia lido
85 livros em 2016, “mas chego fácil aos 100 até o final do ano”, disse ele a
três semanas da virada. Mateus tem uma opinião bem veemente sobre o que gosta e
o que não gosta e a expressa apaixonadamente pela rede. Criou inclusive uma
página de pequenas resenhas no Facebook, a “Resenha de Bolso”
(facebook.com/resenhadebolso), em que analisa obras atuais em poucas linhas e
dá sua nota.
Essa é, aliás, outra
fronteira pouco delimitada da cena literária atual: a crítica e o leitor. Com a
extinção progressiva dos suplementos literários (e da mídia impressa como um
todo), a maior parte das resenhas está na mão de “amadores”, ou leitores
apaixonados que criam blogs e vlogs ou usam a rede social de leitores Skoob para
discutir sobre seus livros favoritos, muitas vezes de maneira absolutamente
pessoal e pouco consistente.
Não parece ser o caso
de Mateus, que conseguiu uma curiosa posição de destaque no meio literário,
como leitor, por demonstrar entender tanto do que está lendo e do que está
comentando. Não tendo vindo de uma família de leitores, passou a ler na
adolescência por conta do bullying que sofria no colégio, o que o levou a se
isolar. Começou pela literatura policial e, descobrindo Rubem Fonseca, migrou
para a literatura brasileira contemporânea. Outros de seus autores favoritos
hoje são Victor Heringer, Elvira Vigna e Vanessa Bárbara.
São nomes compartilhados
por Arthur Tertuliano, 29 anos, nascido no Recife e residente há dois anos em
São Paulo. Formado em Direito, fez mestrado em Estudos Literários, por sua
paixão pela literatura. Na capital paulista, seu primeiro emprego foi de
vendedor da Livraria Cultura, que poderia ser uma vaga feita para grandes
leitores, mas que cada vez mais é preenchida por gente totalmente afastada da
leitura. “Eu aproveitava as folgas, o horário de almoço para ler e outros
vendedores todos estranhavam. Diziam que quando não estavam trabalhando não
queriam nem ver livro.”
Arthur afirma ter lido
“poucos” livros em 2016, foram 101 até o começo de dezembro. “Li 349 em 2015”, diz,
contando juvenis e infantis, de leitura mais rápida. Mesmo sendo um ávido
leitor, Arthur não tem nenhum romance na gaveta. Já pensou em ser escritor,
publicou resenhas e escreve para o site Posfácio (www.posfacio.com.br), mas atualmente não
tem grandes pretensões no meio. “É tão bom ser apenas leitor, sem precisar
frequentar eventos literários.”
Já em Quatigá, no
interior do Paraná, a professora de ensino médio Sandriele Bueno, de 27 anos,
foi uma rara estudante de Letras seduzida pela literatura brasileira
contemporânea. “Até começar a graduação eu nunca tinha lido um livro”, diz ela,
que escolheu o curso de Letras pela facilidade com o inglês. Lá, conheceu
“Contos Negreiros”, de Marcelino Freire, que a fisgou pela proximidade da
língua. Aprofundando-se na obra de Marcelino, ela foi atrás dos “amigos” do
escritor pernambucano, o que basicamente estendeu a ela todos os autores vivos
do país. Entre seus favoritos encontram-se hoje Paulo Lins, Milton Hatoum e
João Anzanello Carrascoza.
Personagem difícil de
encontrar, totalmente fora do meio, é a paulista Viviane Wakuda, de 29 anos,
grande revelação como confeiteira (inclusive capa da Ilustrada no final do ano).
Fã de autores como Neil Gaiman, fez a migração para a literatura brasileira
através de nomes como Ana Paula Maia e João Gilberto Noll. Ao prestigiar as
noites de autógrafo, presenteia os autores não com originais de livros, mas com
deliciosos bolos e macarons. “Não escrevo. Só tenho o hábito de ler mesmo. Se
for para lançar um livro, será de receitas”, diz ela, a leitora ideal.
Na minha busca por
esses “leitores perfeitos” encontrei mais um punhado de personagens... apenas
um punhado. Pensei em muita gente que, pesquisando melhor, já publicou um livro
de contos, uma coletânea de poemas. Muitos colegas escritores me indicaram bons
nomes, que eram grandes leitores, mas que liam apenas um ou outro nome de literatura
nacional. Quem dera encontrar um leitor pipoqueiro, um traficante, um pastor
evangélico... Mas talvez isso seja tarefa para um jornalista mais hábil. Ou
utópico.
De toda forma, esses perfis
deixam claro que, de alguma forma, a literatura brasileira ainda resiste, e
existe. Que grandes leitores se tornem autores não é algo a se queixar, haverá
espaço para todos, se o meio continuar se lendo. Porém eu, pessoalmente,
prefiro sempre que a literatura alcance novos meios, novos cenários.
Não por acaso, acabei
me casando com um desses animais raros, o chef de cozinha Murilo de Oliveira,
28 anos, de Londrina, ávido leitor dos contemporâneos. Quando o conheci há
quatro anos, ele mesmo nunca havia lido um dos meus, mas disse assim que
descobriu que eu escrevia: “Sou fã do João Paulo Cuenca.” (Bem, ninguém é
perfeito.)