Ilustração de Marcos Garuti para meu conto, na Revista E. |
Na
noite de 28 de março de 2017, o escritor gaúcho João Gilberto Noll teve um acidente
vascular cerebral. A caminho da porta, de saída para uma oficina literária,
esqueceu-se por alguns instantes para onde estava indo, e a lembrança retornou
através de um tsunami de sangue e incertezas que inundou seu cérebro,
deixando-o de se concentrar no ato seguinte para concentrar todos os esforços
em se manter vivo. O corpo veio abaixo. A cabeça bateu numa quina. E Noll foi
puxado pela gravidade ao carpete onde permaneceria inconsciente por mais alguns
minutos, até definitivamente deixar de estar. Foi encontrado poucas horas
depois por sua sobrinha, já tarde demais.
Nessa
mesma noite, no Largo do Arouche, o bancário Jair Varella teve um infarto. Seu
corpo também despencou, mas sobre um chão de tacos, o que causou um baque que
pôde ser ouvido por sua vizinha de baixo. Ela bateu à sua porta, avisou o
porteiro, e depois de muito insistir conseguiu que abrissem a porta do
apartamento, encontrando Jair já morto.
Na
frente do computador, na Frei Caneca, Leandro Kimura morria com a corda no
pescoço, estimulando-se por asfixia com um filme erótico. A prática de risco
oscilou entre o acidente e o suicídio, e seu corpo teria sido encontrado suspeitamente
confeitado, não fosse pela meia dúzia de gatos que ele abrigava. Menos de um
dia depois, sem alimento, os gatos sumiram na cama, lamberam o creme, comeram o
corpo. A carcaça foi encontrada pela faxineira três dias depois, ainda em
atitude suspeita, mas sem vergonhas visíveis-risíveis. Os gatos esparramados
pelo quarto, gordos.
Quanto
a mim, não tinha gato, nem sobrinha, nem vizinhos. Todos meus relacionamentos
deixados muitos anos atrás. Minha sexualidade há muito neutralizada. Morava
nessa casa isolada, no fim da rua, espremida entre prédios, esquecida pelo
mundo. Minha única companhia sorrateira e silenciosa, em patas acolchoadas, uma
coelha. Não emitia som, não alertava vizinhos, não verbalizava queixas nem
completava as aspas de uma conversa. Mas precisava de mim. Espiava-me
sorrateira na porta do quarto, fugia para longe quando me aproximava; era
preciso muita imaginação para eu me sentir amado, mas não é sempre assim?
Projetar carências para completar silêncios. Tomar uma aproximação como sinal
de carinho. Não humanizamos os sentimentos dos animais mais do que
interpretamos os sentimentos de nosso semelhante de acordo com nossos próprios
interesses.
Comprei
a coelha por isso. Numa passada inconsequente por uma petshop. Cansado de
conversar com minhas meias, com meus botões, ensaiava arrumar um aquário de
peixes para que meu monólogo ao menos ecoasse em borbulhas de um ser vivo. Pensava
em ter um cachorro. Resistia em adotar um gato. Coelho me pareceu um bom meio
termo, não dá nada de trabalho, me garantiu o vendedor. Levei o animal a pé
para casa numa caixa de papelão. Chegando em casa a caixa já se desfazia em arranhões.
Separei um pote com água, uma bandeja com feno, uma tigela de ração, enquanto a
coelha se escondia atrás da geladeira. Permaneceu assim. Só sei que comia porque a tigela se
esvaziava, a bandeja se enchia de bolotas sem cheiro. Alimentava-se escondida
de mim.
Tarde
da noite, zapeando entre canais, lendo um romance mal traduzido, olhando
perdido para a rachadura na parede, esperava pela aproximação. Vez ou outra
surgia sua cabeça, me espiava curiosa, ansiosa para que eu me retirasse, nunca se
aproximava. Eu psilava, assobiava, estalava os dedos. Nunca se sentou no sofá
comigo, nunca roeu as páginas da minha vida. Nossa relação era essa
não-relação, mas era. Ter um animal que não me aceitava era melhor do que não
ter nada.
Um
bicho de estimação é um exercício de síndrome de Estocolmo. Ela não precisava
de mim, eu não gerava empatia, e sentia que fracassava miseravelmente como seqüestrador.
Perguntava-me se para a síndrome se estabelecer era preciso um mínimo de charme
por parte do perpetrador, um mínimo de ameaça, transgressão, juventude, coisas
que eu não tinha, e a coelha sentia. A coelha sentia falta.
Certa
vez a levei para dar uma volta na praça. Achei que um bom tempo fora poderia
ser bom para nos aproximar. Mais do que isso, achei que um tempo fora com um
animal de estimação poderia ser o suficiente para outros seres humanos se
aproximarem de mim – não é isso o que dizem, que os animais unem os solitários?
Agachei-me embaixo da geladeira, estiquei-me para agarrá-la, encurralei-a no
banheiro. Senti todas as juntas que ainda tinha. Só o esforço para colocá-la
debaixo do braço já me extenuava, e ainda tínhamos de sair. Na falta de um cachorro,
passeava com coelho; não foi uma boa ideia. Coelhos são presas, animais
assustados, não sabem aproveitar a liberdade, tem medo. A praça tinha um
cercado para as crianças, ou um cercado para os cachorros, um cercado para os
cachorros não entrarem, um cercado para as crianças não fugirem, como minha
coelha. Eu a soltei lá. Poucas dezenas de metros circulares. Foi o suficiente
para se manter longe de mim. Aprender o quanto poderia correr. Eu aprender o
quanto não podia mais. As pessoas olhando com certo horror um velho perseguindo
uma coelha. Quando ela enfim se cansou, um estranho solícito de meia idade e
braços peludos a apanhou para mim, entregou-me com pena, sem nunca cruzar
olhares. Voltei para casa colocando-a no chão, com dor no peito.
Há
muito tempo que vinha me sentindo mal, e começava a pensar se era efeito da
solidão, psicossomático. A queimação na garganta, a dor de cabeça, as juntas
duras. Por mais que não queiramos precisar do outro, precisamos. O corpo impõe,
ao menos um checkup eventual, na minha idade. Eu não tinha médico, nem plano de
saúde, adiava a consulta para quando se fizesse realmente necessária,
imperativa, indispensável, quando não pudesse mais suportar, respirar, quando
não conseguisse nem mesmo me arrastar até um posto de saúde.
Era
o mesmo com minha casa, degradada. Os fios dos eletrodomésticos roídos pela
coelha. Os móveis carcomidos. O pó de cupim a que eu fazia vista grossa, porque
seres tão diminutos nunca seriam capazes de acabar com a casa antes de mim,
antes de a coelha acabar comigo. Eu remendava os fios com fita isolante, tomava
um analgésico, eu dormia, e esperava que o tempo apagasse os sintomas quando o
tempo terminasse para mim, arrastando-me enquanto eu sobrevivia.
Naquela
tarde, naquela noite, naquele ultimo final de tarde, em algum horário entre
isso, deitei-me para descansar do passeio com a coelha. E nunca mais me
levantei. É o que chamam de uma morte pacífica, ainda que tenha acontecido em
meio a pesadelos, como são perturbados os sonhos vespertinos. Dormimos ainda na
luz do dia e acordamos no escuro com um sensação terrível em nosso relógio
interno. Um descompasso, algo que foi perdido. Só que, dessa vez, eu não
acordei. E no dia seguinte, quando eu deveria, embora não devesse, também não.
Não
havia ninguém para estranhar. Ninguém para dar por minha falta. Nem mesmo a
coelha, que vivia sob o mesmo teto. Muito menos a coelha, que vivia sob a
geladeira. Ela só deve ter sentido algum incômodo quarenta e oito horas depois,
quando não tinha mais folhas verdes, água fresca, ainda a casa toda para roer. Provavelmente
encontrou no banheiro o chuveiro pingando com uma fonte interminável de
hidratação.
O
que diferencia um homem de um animal? O que diferencia um animal de um vegetal?
Eu, um homem morto, de um cacto resistindo num quarto sem luz do sol. O que
diferencia um ser morto de um vegetal vivo? Meu corpo dando frutos. Pulsante e
esquecido, a proliferar. Bactérias se multiplicando. Fungos irrompendo. O
colchão tornando-se um solo fértil embebido em fluídos de mim mesmo. Em poucos
dias meu corpo morto era o que havia de mais vivo naquela casa, o que havia de
mais vivo na minha vida, há muito tempo. Colônia de insetos, de vermes,
promessa de um terreno humilde, porém seguro, para campos de begônias e
florestas de pinheiros. Nah, nem tanto.
Com
as promessas que meu corpo oferecia à fauna, à flora, fungi, monera, também
atrairia animais mais complexos, contraditórios, homeotérmicos. Atrairia também os ratos, e eles estavam por
perto. Mas esperavam o sinal daquele rato gordo, de orelhas compridas, que
continuava evitando meu cadáver como me evitava em vida. Roedor, porém lagomorfo,
pesquisei sobre isso, os ratos não. Se tivessem discernimento para avaliar o
verdadeiro caráter da minha coelha, banquetear-se-iam
sem cerimônia de meu corpo. Quanto a ela, ainda evitava um ser que pulsava, chiava,
efervescia, mais do que nunca fui em vida. Animal sub reptício, não via
atrativo nenhum num cadáver que berrava.
Morri
num sonho em que a Coelha se alimentava de mim. Semanas, meses depois, o GATE
desbravaria a casa como posseiro algum se atrevera, invasor nenhum se
interessara. Os vizinhos todos em edifícios, em andares altos demais para me
farejarem. Fora um corretor que se cansara de apertar minha campainha. Uma
imobiliária que não tinha mais oferta nenhuma para apagar minha casa dali.
Percebiam minha casa de fato como abandonada-abandonada, assombrada-assombrada,
um estandarte de lenda urbana numa cidade já tão desprovida de fantasia. Eu era
o vaso de água parada para o aedes aegypti se proliferar. Soldados pós-púberes
invadiam minha casa em capacetes, coturnos e máscaras de gás, nenhuma pele à
mostra, não querendo inspirar nenhum traço de mim. A Coelha ainda estaria ali,
viva, morta-viva, alimentando-se de mim. Encontrariam o primeiro exemplar da
Coelha Vampira. Mas fora apenas um sonho, no qual eu morri.
Na vida real, na morte em que eu me
encontrava, a coelha demorou semanas para se aproximar do corpo. Mas então, por
fome e tédio, saltou ao meu lado no colchão. Farejou meus fungos, mordiscou
meus musgos, lambeu briófitas que brotavam de meus lábios rachados. E enfim,
sem seduzir-se por meu gosto, percebendo que eu de fato estava morto, esparramou-se
ao lado de meu corpo. E descansou.
Publicado na Revista E, do Sesc, neste mês de agosto. Por limitação de espaço, a versão da revista é um pouco mais curta.