30/10/2018

OS MELHORES FILMES DE TERROR DE 2018


Art, o palhaço assassino de Terrifier.

Foi difícil competir com o terror da vida real, este ano. Mas o cinema teve ótimas produções - algumas bem mainstream - e o pós-terror se consolidou.

Como sempre, faço minha listinha de melhores do ano, a tempo do Halloween. (O novo "Halloween" mesmo me decepcionou - divertidinho, até, mas naaada de novo e tem um final arrastaaaaado - então não entrou nos 10 melhores.

A lista, como sempre, é absolutamente pessoal, nem tudo é ótimo - tem coisas bem trash, mas que trazem alguma inovação ou ousadia.

Quero muito ainda ver o novo do Lars Von Trier, mas só conseguirei amanhã. Qualquer coisa reedito a lista para encaixá-lo - mas já ouvi muito mal...

Vamos então com os melhores de 2018:


MANDY


Filme de vingança com Nicolas Cage... e uma viaaaagem completa de ácido. Ele é um lenhador que mora com sua esposa na floresta, até que uma seita mucho loca sequestra e mata a mulher. Violento, ultra psicodélico, com um fiapo de roteiro. Deve ser incrível ver no cinema (ainda sem previsão), com os aditivos certos.

HEREDITÁRIO


Apesar de ser filmão mainstream (com possibilidades de Oscar), não pega leve: é impactante, perturbador com excelentes atuações (da Toni Colette, principalmente). Gosto mais de toda a latência dos primeiros atos do que da conclusão. Mas ainda assim é fodão.


A QUIET PLACE



Outro filmão hollywoodiano com um clima incrível, com a tensão mantida pelo silêncio. Consegui ver numa sala de cinema vazia (14h no meio da semana sempre é infalível), o que faz toda a diferença.

TERRIFIER



Slasher sobre um palhaço assassino que mata garotas na noite de Halloween. Tem um pé no trash, nenhuma grande novidade, mas é bem hardcore e o “monstro” é ótimo. Fico ansioso para ver mais dessa franquia (que começou com o filme-antologia “All Hollows Eve”).


NOVEMBER



Filme de arte estoniano em preto e branco, sobre uma menina que se apaixona platonicamente por um rapaz e faz um feitiço para ficar com ele. Tem muito de folclore, de contos de fadas, parece um pesadelo lindo e inquietante.


AS BOAS MANEIRAS



Os brasileiros Marco Dutra e Juliana Rojas seguem no “pós-terror”, contando a história de uma jovem supostamente grávida de um lobisomem, que só pode contar com o apoio da empregada. Um pouco longo, parece dois filmes em um, mas é corajoso e a melhor coisa do terror brasileiro em muito tempo.

STEPHANIE



Nos primeiros cinco minutos achei que seria o melhor filme da vida. Começa com uma menina pequena, sozinha em sua casa, tentando preparar seu café da manhã com todos os perigos de uma cozinha. E a primeira meia hora do filme é isso: só uma atriz mirim numa casa. O desenvolvimento como filme de epidemia não é tão recompensador, mas ainda assim é corajoso e impactante, e merecia ser mais conhecido.  (E estranhamente NÃO há nenhum trailer no youtube, só trechos como esse). 

O ANIMAL CORDIAL



Um assalto no final do expediente de um restaurante revela jogos de poder entre patrão e funcionários, numa tensão crescente. Adoro todo o clima do filme, mas meio que não vai para lugar nenhum. De todo modo, é um excelente exercício de minimalismo e mais um pós-terror nacional para se comemorar.

BOARDING SCHOOL 


A premissa é excelente, algo que eu gostaria de ter escrito: um colégio interno para freaks, enviados por pais que querem se ver livres. O protagonista também é bacana: um garotinho crossdresser. Mas o filme não desenvolve bem a trama e ficam muitas ideias jogadas... Ainda assim... vale estrelinha.

TILT


Desempregado, e com a mulher grávida, um jovem tem sentimentos crescentes de violência, que descambam para assassinato. Um terror do cotidiano, muito bem executado, com um final matador.


E um retardatário (que só consegui assistir no 01/11):

THE HOUSE THAT JACK BUILT



Das coisas mais cínicas que já assisti, engraçado, por vezes desagradável e tolinho. É um bom Lars Von Trier, (depois dos fiascos de Ninfomaníaca) para quem conseguir não levá-lo tão a sério. (E um bom Lars Von Trier vale como um ótimo [pós] terror.)

Aproveitando o post (e o Halloween): Nesta quarta 31 estarei com Marcos DeBrito e Reynaldo Damazio discutindo o pós-terror no Centro Cultural da Juventude, Deputado Emílio Carlos 3641, às 15h. 

29/10/2018

FIM DAS ELEIÇÕES

Sou um dos nomes na capa da Época desta semana. 


Perdemos. O resultado foi o pior possível. Mas talvez a única forma de se destruir Bolsonaro seja mesmo deixando-o governar. Vamos ver quem o chamará de “mito” daqui a um ano. O problema é que junto ele vai destruir o país...

Fica o orgulho por tantos amigos que se posicionaram, lutaram, compraram brigas que não eram suas. Como escritor e homossexual, foram essas pessoas que me ampararam.

Antes desse fatídico resultado, a revista Época convidou 22 escritores para fazer ficção sobre as eleições, com curadoria do Mateus Baldi. Fugindo da polarização, optei por um personagem sempre presente, sempre na retaguarda: Eymael, “o democrata cristão”.

Tem o sarcasmo e um humor que espero recuperar. Assim encerro minhas eleições de 2018.  

"O FILHO BASTARDO DE UM DEMOCRATA CRISTÃO"

Zé Maria sempre foi dos últimos da fila. Apático e tímido, não era popular entre os colegas, nem alvo preferencial de bullying. Nunca tirava as melhores notas, mas seu desempenho não chegava a ser sofrível.  Na escolha dos times, ficava entre os últimos, antepenúltimo, depois de um gordo, antes de um manco e de um zarolho. Sua presença era insignificante, sua existência tão mundana, que se tornava difícil até encontrar adjetivos para completar um parágrafo...

                (Mas afinal, não é assim a vida de tantos e tantos? De quase todos nós? É que tantos e tantos e quase nenhum de nós daria um livro, um conto, um personagem coadjuvante numa crônica de revista...)
Zé Maria, como muitos, era filho único. Criado pela mãe e pela avó. O pai, não conhecia. “Ele é um homem importante”, dizia apenas a mãe, “e tem outra família.” Zé Maria era o que chamam de “filho bastardo”, mas nem isso o destacava. Tantos como ele cresciam sem pai, sem mãe, com duas mães, no Jardim Peri Peri.
Com a mãe se recusando a revelar a identidade do pai, Zé Maria havia muito desistira. Cresceu procurando-o na televisão, nas revistas. “Um homem importante”, podia ser artista, ator, apresentador, jogador de futebol. Zé Maria examinava a fisionomia de Celso Portiolli, Padre Fábio de Melo, Humberto Martins.  Um dia, passando pelo Datena, Zé Maria se perguntou se seu pai não era Alexandre Nardoni, Goleiro Bruno, Marcinho VP.
O espelho também não lhe trazia respostas, não dizia nada de volta. Sem traços marcantes, sem marcas de nascença, tinha a pele parda da mãe, e de toda sua vizinhança. Não tinha olhos azuis, não tinha língua presa, cabelo nem liso nem crespo; se desmaiasse na hora do rush, nem sua alma saberia a que corpo retornar. 
Assim, às vésperas das eleições (à beira do precipício), Zé Maria estava com dezesseis anos, não tinha partido nem havia tirado título. Não acompanhava as discussões nem assistia aos programas políticos. Mas, enquanto esperava o Pica-pau, um jingle familiar soou na TV da sala, e sua prima mais velha comentou:
“Sabe que esse homem esteve uma vez aqui no bairro? Foi no dia daquele atentado, nos Estados Unidos. Ele passava aqui de carro. Parou no bar em que sua mãe trabalhava para assistir pela TV...”
“Que dia? Que atentado?” Zé Maria questionou.
“O onze de setembro... Faz tempo. Acho que em 2002. Você nem tinha nascido.”
Não. 11 de setembro de 2001. E Zé Maria havia nascido exatamente nove meses depois.  
De noite, sozinho no quarto, Zé Maria pesquisou o histórico do candidato. “Um homem importante”, que passara pelo bairro, tivera contato com sua mãe, nem que tenha sido como freguês do bar. O nome era mais uma coincidência, que não podia ser só coincidência. E Zé Maria lembrava-se das primeiras palavras que ouvira, pela TV, da boca de seu pai:
 “Sinais! Fortes sinais!”
Zé Maria acordou no dia seguinte como filho de presidenciável. Mulher de presidente é primeira dama – filho de presidente é o quê? Primeiro em algo? Ao menos primogênito, ele poderia, pela primeira vez? Não, seu pai já tinha filhos, netos e bisnetos. Ele permanecia filho bastardo. Mas filho bastardo de um democrata cristão.
Na escola, tentou enfim fazer parte dos debates políticos. Pregou o pai aos moleques de cabelos coloridos, as meninas bonitas que o assustavam por serem feministas, até os “minions” que defendiam o “mito”; ninguém o levava a sério. Ele vinha defender seu pai-candidato, apenas para ser descartado, posto de lado, nem ameaça nem aliado, apenas desprezível, como sempre havia sido.
De noite, cabisbaixo em casa, sua mãe chegou e bagunçou seu cabelo. “Que tá chocho assim, Zé Maria? Pisou na goiabada?” Ele respirou fundo para perguntar.
“Mãe, você precisa me dizer, eu tenho direito de saber. Meu pai é um político? Eu fui concebido no onze de setembro? Qual é o nome dele? De repente posso pedir um exame de DNA...”
A mãe suspirou e se sentou ao lado dele no sofá.
“Quem foi que te disse que ele é político? Ai, eu jurei não contar...”
Zé Maria estendeu a mão. “Mãe, eu tenho dezesseis anos, eu mereço saber.”
A mãe suspirou novamente. Engoliu fundo. As lágrimas escorreram.
“Meu filho... Se quer mesmo saber a verdade... a verdade é que não sei. Não sei o nome dele. Naquela época eu era jovem, solteira, trabalhava num bar e estava perdida; foi uma fraquejada... Teve sim uma comitiva com alguns políticos, que passou e parou por aqui. Mas... Nunca mais o vi. Nunca fui ligada em política e nunca vi seu pai em cargo nenhum... Eu queria poder dizer que ele já foi prefeito, sim, foi vereador, mas que cargo mesmo que ele ocupou eu não sei...”
“Meu pai já foi Deputado”, pavoneou-se Zé Maria. “Ele que aprovou a jornada de trabalho de 44 horas, o aviso prévio de 20 dias”, advogou com conhecimentos parcos via Wikipedia.
A mãe lhe sorriu, passou-lhe a mãe no rosto orgulhosa, como se visse diante de si o futuro da nação.
“Eu não sabia, meu filho, eu não sabia. Sei que ele é um homem importante, mas não sei por onde anda. Sei que era um bigodudo baixinho, que falava de um tal de aerotrem...”

(publicado na revista Época de 29/10/2018)

27/10/2018

A MORTE SEM NOME (2004)



Capa... ok. 


Fiquei muito feliz em ver a resposta do post da semana passada, do meu primeiro livro, saber que não era só punheta, que meu registro de começo de carreira interessava a tantos leitores, jovens escritores, jornalistas e colegas, mesmo nesses tempos... Muita gente me escreveu comentando, curtindo. Obrigado mesmo, porque a gente que escreve não tem aplauso, não tem palco. A gente tem que se contentar com esses elogios que flutuam até nós. Assim sigo com a série.


Só com o sangue derramado foi que percebi o quanto o chão estava sujo. Restos de insetos boiando nos coágulos, coágulos penetrando entre os tacos, tacos encardidos de poeira. Deixaria sequelas para sempre, no meu apartamento, coitado, tão humilde e desprezado. Por anos e anos, ratos mendigos e mosquitos preguiçosos viriam se alimentar dos meus restos. Entre as frestas, se eu esfregasse com vontade, abriria um buraco negro no meio do nada, meu apartamento. Coitado, tão humilde e desprezado. Talvez pudesse pentear meus cabelos então, no chão, penetrando entre os tacos. Ou talvez fossem apenas antenas das baratas...


“A Morte Sem Nome”, meu segundo romance, ainda é dos meus favoritos. O primeiro que escrevi, aos 22-23, mas que tem tanto de mim, e tanto de mim que foi perdido.

Um suicídio por capítulo, essa é a promessa do segundo romance de Santiago Nazarian. A Morte sem Nome é um quebra-cabeças gótico, ou melhor, um dominó, onde cada frase soma-se à seguinte e coincidência e recorrências vão compondo a história de uma mulher que vive apenas para se matar. Lorena é uma suicida serial, uma mulher sem amor e sem esperança, derramada por páginas e página de delírio e poesia. Procurando os restos dela estão um adolescente, um garçom, um feirante e um estuprador. A pergunta não é quem sairá com vida, mas quem carregará a morte em seus braços e escreverá seu epitáfio
– outra orelha feita por mim mesmo, de que ainda gosto bem.


Foi uma tentativa de escrever romance, então tem uma estrutura de livro de contos... ou não tem muito estrutura. Fui só pensando nos suicídios possíveis e escrevendo capítulos de maneira aleatória – a forca, o corte dos pulsos, o pulo pela janela -, trazendo personagens no meio do processo.

O livro tem muito da minha adolescência gótica e das minhas experiências com body art - para quem não sabe, aos dezenove anos eu fiz um trabalho de auto-mutilação para o curso da história da arte na FAAP. A proposta era pegar algum movimento artístico - expressionismo, cubismo, pop art, etc - e fazer uma obra nesses moldes. Eu, querendo chocar, peguei a body art pós-moderna e fiz uma série de fotos com um amigo, me mutilando na Avenida Paulista. Não era nada muito pesado, uns cortes superficiais, só para o sangue escorrer. (Não, não deu polícia, acho que o povo não acreditou que era real)

Minha primeira foto no jornal (Folha, em 1996)

O trabalho, que seria apenas acadêmico, acabou chamando a atenção, fizeram um documentário inteiro sobre "minha obra" que rodou festivais do mundo todo, passou na TV Cultura e me deu uma primeira exposição. Depois disso, ainda dirigi um curta universitário - "Ame o Garoto que Segura a Faca" - que também tratava a body art, de maneira irônica. (Nesse, eu cortava uma amiga - que permanece viva e amiga até hoje, inclusive foi pet sitter da minha coelha dia desses - mas ela era vegana e tinha o sangue tão claro que não parecia real.)


Still do curta que escrevi, dirigi e atuei: "Ame o Garoto que Segura a Faca". (Era ruim, mas lembro com carinho)

Voltando ao livro, a narrativa em primeira pessoa feminina tem algo de prosa poética, incluindo rimas de gosto duvidoso (de que ainda gosto), escrita num fluxo de consciência que acho que hoje eu não conseguiria. Gosto também do experimentalismo, das repetições, mas acho que alonguei o texto um pouco além do necessário, talvez efeito das drogas da época, talvez apenas os excessos da juventude...


Quando me olhei no espelho, já tinha envelhecido trinta e cinco. No canto do olho, atrás de um sorriso, na frente do espelho, uma tristeza a ser escondida. Entre os dentes, as marcas das minhas mordidas. Em meus cabelos, a vida se esvaindo. Penteei fio por fio. Escovei dente por dente. Maquiei olho por olho e me olhei novamente, no espelho.

Ainda estava lá, por trás de mim, entre os azulejos, jogado no ralo, tudo o que eu não pude esconder. Mofo nas frestas, cabelos na pia, sangue no vaso, sorrindo pra mim. Continuei a esfregar, pensando em branco. E quanto mais esfregava, mais sangue se espalhava. E de gotas fiz uma poça. E da poça fiz um lago. Do lago fiz um mar, para me afogar.

Me sentei na sala para fumar. Cigarro. Entre os dedos. Entre os dentes. Manchados de nicotina. Queimando com minha insegurança. Sumindo como fumaça. Cinzas ao chão, entre as frestas. Peguei a vassoura e a ordem, a ordem continuava a fugir de mim.

Minhas pegadas me seguiam por onde quer que eu fosse. Eu não podia escapar. E minhas impressões digitais manchavam o que quer que eu tocasse. Se tornavam cinzas, pó e mofo. Minhas mãos, meus lábios, meu pescoço e meu coração. A ser esfregada, a ser varrida, a ser escovada, nenhum banho daria conta. Minhas pegadas me seguiam onde quer que eu fosse e minhas impressões digitais estavam sempre em meus dedos.

Nos pratos sujos. No garfo e na faca. Na cozinha, meu sangue fresco escorrendo pela pia. Detergente, sabão em pó. Lavei a louça e os talheres. Espalhei milhares de cacos pelo chão. Pela cozinha. Minhas impressões em cada um deles. Minhas impressões no ralo. Minhas impressões na faca. Minhas impressões cortando a linha, envolta do meu pescoço.

No lixo. Jogada em pedacinhos. Virei os olhos para longe de tudo o que eu não podia mais. Suco de laranja. Ossos de frango. Um coração palpitando. Que pelo menos não vaze pela casa. Que o saco plástico resista ao meu peso.



Foi escrito em Porto Alegre, onde morei entre 2000 e 2002. Trabalhava numa agência de publicidade e escrevia de noite e nos finais de semana. Era a primeira vez que eu morava sozinho, numa cidade onde não conhecia ninguém, então tem muito da carga de solidão, da tentativa de adaptação e do começo de vida adulta. O texto é dedicado a EVC Jaspion, um estudante de letras gaúcho meio-mestiço que eu amava horrores e que me chifrava com metade da cidade. O nome da personagem – Lorena – veio da cidade de Lorena, onde também teve um menino que me fez sofrer horroooores (eu era muito viadinho sofredor, gente). 

Mas até que eu era gatinho, vai?

Como contei aqui, “Olívio” acabou saindo antes, por causa do concurso. “A Morte Sem Nome” veio no ano seguinte, em 2004, pela Planeta. Teve uma boa repercussão – com destaque para um texto de duas páginas na revista Bravo pela Beatriz Bracher e uma bela crítica na Folha pelo Marcelo Rubens Paiva – e acabou sendo publicado também em Portugal e recentemente na Sérvia. Muita gente ainda me procura para falar desse livro. 


A bela capa da edição sérvia, lançada ano passado. 

Nunca foi vendido para outras mídias – acho que rendia uma boa peça de teatro. Uma atriz uma vez me procurou, mas quando disse que queria fazer um projeto “despretensioso” com o livro, eu vetei. Sempre fui muito protecionista com meus textos, hoje repenso que deveria soltar mais. Meu sonho ainda é que seja feito pela Denise Stoklos.

E edição portuguesa (2005)

A capa brasileira é uma gravura do meu pai – de que hoje gosto mais ou menos – e que inclusive foi dada de presente ao editor, Paulo Roberto Pires. As fotos de divulgação foram feitas pelo Daniel Luciancencov, namorado da época. O sangue, como sempre, era verdadeiro. 

Foto de orelha.


Anos atrás eu tentei republicar como folhetim no blog, um capítulo por semana, reescrevendo o texto. Mas era tanto trabalho e a resposta do blog tão limitada que desisti no meio do processo.


Também se encontra há anos fora de catálogo. Sempre aberto a propostas...

E se você quer que livros assim, ou melhores, continuem a ser publicados, VOTE 13 NESTE DOMINGO, PORRA!


(Em 2011 Lykke Li fez um clipe baseado no meu livro... Mentira, mas podia ser.)

20/10/2018

OLÍVIO (2003)



Puta capa feia.

Lá se foram quinze anos, nove livros, poucas conquistas, talvez, além das próprias publicações, todas por grandes editoras. Nesses tempos trevosos, ando reavaliando minha trajetória, pensando se já posso morrer feliz, ou se morrerei miserável.

Conversava esses dias com o querido escritor e professor Cristhiano Aguiar, que comentou sobre este blog: "Era muito legal para acompanhar o que era o mundo literário, a partir da tua vivência. Era meio inspirador mesmo."

Então resolvi movimentar as coisas por aqui, fazer um resgate da minha própria obra, com trechos, processos, bastidores, fotos da época, crítica e auto-crítica. Ao menos servirá como uma auto-avaliação minha, talvez seja inspirador para mais alguém. Servirá também como registro, porque tenho uma memória muito lesada, e as luzes vão se apagando a cada dia. Então comecemos cronologicamente este sábado, com "Olívio". 

                  Olívio abriu a torneira com dedos pegajosos. Viu seu próprio esperma escorrendo pelo ralo e se sentiu um pouco arrependido. Devia ter mandado para ela num envelope perfumado. “Fiz pensando em você”. Mas ele pensara com raiva. Raiva em cinco dedos fechados, em volta do pênis, sacudindo sua amada até derramar. “Rosalina, Rosalina, ainda consigo pensar em você.” - Assim começo. 


No final da adolescência comecei a escrever uns contos horríveis, de um sentimentalismo gótico, sempre com garotos andróginos sofrendo por amor - basicamente onde eu me encontrava. "A Morte Sem Nome", que escrevi em 2000, foi quando comecei a formar algo mais próximo de um romance (sem estrutura nenhuma - o que foi visto como um trunfo por críticos) e logo ao terminar já emendei com "Olívio", que foi a busca por uma narrativa mais linear e estruturada. 

É a história de um jovem adulto totalmente convencional, classe C, com a noivinha e o emprego das 9 às 18h, que aos poucos vai entrando numa espiral de sexo, drogas e violência. 


Conheceu Rosalina num churrasco de final de ano. Na firma. Ela era prima da secretária. Ele era funcionário da contabilidade. Ele bebeu um pouco demais. Ela bebeu o suficiente para corresponder. Ela sorria de longe, entre colegas que ele conhecia. Ele puxava assunto em espiral, se aproximando dela. Comentava com uma vizinha. Brincava com a colega. Ria alto o suficiente, para ela perceber. E com empurrões de amigos, logo estavam juntos. Conversando sobre a carne. Conversando sobre a caipirinha. Conversando sobre uma porção de amendoins, com os dedos salgados e os sorrisos desavergonhados. No final da noite, estavam tirando fiapos de carne dos dentes um do outro, num beijo quente.
 Fofocas no dia seguinte. Quem ficou com quem. Darcy e Irineu. Margarida e João Paulo. Olívio e Rosalina. Pra quem importava? Aos vinte e sete anos, Olívio era solteiro, Rosalina também, aos vinte e três. Trocaram beijos e telefones e, no final de semana seguinte, já estavam juntos, como um casal.
 Foi a melhor conquista de Olívio. Mulher bonita. Moça de família. Reunia tudo o que ele estava cansado de aproveitar, com aquilo que só a mãe de seus filhos poderia dar. Assim seu pai lhe diria, assim sua mãe aprovaria. Assim Olívio foi ampliando os convites, avaliando as expectativas. Fechando os botões da camisa e pensando em voz alta. “Puxa, me dei bem.”
 Não precisava de muito para fazê-la sorrir. Ela sorriria toda vez que ele tivesse a intenção. Ele sorriria de volta, satisfeito consigo mesmo. Passeavam juntos e conversavam amenidades. Conversavam amenidades porque não tinham nada mais para conversar. Quando se cansavam, se abraçavam. Quando faziam silêncio, se beijavam. Depois, ela encostava a cabeça em seu ombro e a semana de trabalho se afastava quilômetros, para o outro lado do porto, no começo da estrada, varrida pelo vento e pelo tempo que passavam juntos. Era um final de semana suave, como deveria ser. E ele achou que deveria ser sempre assim.
   Daí os finais de semana foram se somando. Os dias foram se acumulando. O compromisso foi se agravando e tomaram como noivado. Que fosse. Olívio achava uma ótima idéia. Até porque, estava apaixonado. Tanto quanto poderia estar. De sua maneira calma, às vezes até impotente. Olívio amava Rosalina. E Rosalina? Rosalina amava Olívio.
   Tanto amava que não pediu muito. Nem precisou de anel no dedo e enxoval no armário. Não precisou de pedido formal nem promessas de felicidade. Não precisou de nenhuma prova para se entregar. Não. Era amor mesmo. Daqueles que Olívio pegava com as mãos cheias. E Rosalina aproveitava. Rosalina aproveitava todas as coisas boas que Olívio poderia fazer por ela. E Olívio aproveitava. Olívio aproveitava todas as coisas boas que ela deixava ele fazer.
    Eram duas coxas generosas para apalpar. Meias de seda, calcinhas de renda. Perfume quente e doce. Cabelos lisos e compridos. Um vestido bem curtinho. Um sutiã vermelho, fazendo Olívio corar. Quando Olívio viu pela primeira, por trás das rendas, por trás do vermelho, o bico do seio de Rosalina, teve certeza de que era amor.
    Era um bico escuro, mais escuro do que a pele castanha de Rosalina. Quase tão escura quanto a pele morena de Olívio.  Morena como as castanhas, castanho, como a pele morena. Salgada, rígida. Tocou com seus próprios dedos. Provou com seus próprios lábios. Abriu sua própria braguilha e esperou não desapontar. Ah, não, não desapontou, daquela vez não. Era amor. E ela não disse nada.
   Ele pensou que seria muito bonito, assim, castanho com moreno, moreno com castanho, pêlos nos pêlos, pensou nos filhos. Pensou nos filhos que teriam, morenos, correndo pela casa. Com os olhos amendoados, como os dela. Castanhos. Com os cabelos lisos, como os dele. Indiozinhos a brincar. Olívio a derramar. Rosalina a enxugar. Sim, era amor, seria casamento e ninguém poderia evitar. Poderia?


Começa com uma broxada, e acho que a ideia inicial era que ele ia se deteriorando, perdendo movimentos, sentidos, muito inspirado pelas novelas do Noll. O que acabei fazendo foi mostrar como a vida dele era baseada em suas relações cotidianas, e que, com a mudança dessas relações, a vida mudava completamente. Olívio, o personagem, era a junção de todos os personagens que cruzavam sua vida, por isso cada capítulo ganhou o nome de um personagem. 

Foi escrito em poucos meses, do final de 2000 para 2001, em Porto Alegre, onde eu morava. Mostrei para alguns amigos e engavetei - não sabia para onde mandar e o que fazer. Descobri no final de 2002, quando vi no jornal o anúncio de um prêmio para romances inéditos - o Fundação Conrado Wessel (tradicional em fotografia, que teve poucas edições de literatura). Além de "Olívio", eu já tinha "A Morte Sem Nome" na gaveta, mas decidi mandar esse por causa da estrutura mais convencional.

O prêmio. 


Funcionou. Ganhei o prêmio e o livro saiu no início de 2003. 

Na época, com 25, eu sobrevivia trabalhando de barman em inferninhos de noite, escrevendo roteiros de disk-sexo para operadoras de celular e dando aulas de inglês. (na foto, eu - no centro - na noite de Natal de 2002, na Sogo, que era misto de boate gay com clube de sexo.)

A editora Talento não tinha tradição literária - era conhecida por anuários de publicidade -, mas foi contratada pelo prêmio para a publicação. Cometeu uns erros primários, como não colocar meu nome na lombada do livro, e fez a capa mais horrenda do mundo (assinada por Kiko Farkas, que melhorou muito desde então). Ao menos tive interferência na orelha - que foi escrita por mim, como TODOS meus livros. 

Olívio é um romance de romantismo-absurdo, como define o próprio autor. Narra a história de um jovem simples e conformado que aos poucos vai se afastando de todos os pilares que sustentam seu cotidiano. A partir de um encontro com um misterioso escritor, ele passa a questionar as verdade de sua própria vida e se vê perdido num mundo de perversões e surrealismos. 

De estética kitsch e teor erótico, em meio a uma atmosfera degradada, Olívio explora o processo de construção de um personagem baseado em experiências do autor em bordéis de Curitiba, se apropriando com habilidade de uma metalinguagem irônica. 

(Ainda gosto dessa orelha. Acho que o "romantismo-absurdo" se tornou meu "existencialismo-bizarro". Na época eu era mais sentimental mesmo, muito influenciado por Caio Fernando, muito coisa de moleque gótico - este blog começou como "Amor e Hemácias", afinal. Os bordéis de Curitiba foram de fato a inspiração pelos cenários. Na época eu achava divertidíssimo viajar para cidades do sul e passar o fim de semana conversando - basicamente só conversando... - com as putas, dormindo em moteizinhos baratos.)

Na premiação-lançamento, com Tânia Franco Carvalhal, José Mindlin e Beatriz Resende. 

O mais bacana do Prêmio foi o juri: Carlos Heitor Cony, Carlos Graieb (Veja), Daniel Piza (Estadão), Tânia Franco Carvalhal (do extinto Prêmio Nestlé) e a Beatriz Resende, que se tornou minha madrinha. Foi ela quem me indicou para um amigo de uma "grande editora espanhola que entrava no país". Era Paulo Roberto Pires, na Planeta. Uma semana depois de eu mandar o livro ele me oferecia contrato para um próximo,e três meses depois a Planeta me colocava na primeira FLIP, numa mesa com Cuenca e Chico Mattoso, os "jovens talentos" da época, lançando em conjunto o livro de contos "Parati Para Mim" (não temos culpa do título, não). 

Foto num dos jornais na época - eu estava numa fase bandana, me perdoem, mas reparem como caminho descolado de Cuenca e Matoso, talvez mostrando como era independente, talvez mostrando como estava atrás...

A Planeta acabou fazendo muito mais por "Olívio" que a própria Talento. Com o livro de contos saímos em TODOS os jornais, incluindo Jornal Nacional e Jornal Hoje. 

Achei que a vida seria sempre assim...

As fotos de divulgação foram feitas pelo meu amigo de vida toda, o muso gótico Ambooleg. A editora vetou as mais sangrentas - como essa. (o corte é real, claro). 

"Olívio" teve boas críticas, no JB, na Istoé, na Trip assinada pelo Bernardo Carvalho. Também teve uma proposta de compra para o cinema, pelo Canal Brasil, que acabei RECUSANDO pela grana - me arrependo, mas não muito, porque hoje sei bem que venda de direitos está longe de ser garantia de filme produzido. 

(Bacana ver que a crítica da Istoé ainda está online: https://istoe.com.br/13704_SPOT+LITERARIO/

Confesso que hoje é o livro de que menos gosto. Não me envergonha, mas acho pouco pessoal... parece que estou querendo emular um escritor, a trama me parece absurdamente convencional. De marca registrada, temos a estreia de "Thomas Schimidt", o escritor-alter-ego andrógino e misterioso, basicamente o que eu queria ser (e que aparece ou é citado em praticamente todos meus livros desde então). 

Escritor? A última coisa em que Olívio pensaria. Sempre achou que os escritores eram aqueles senhores velhos e cansados, com uma barriga cheia de idéias para digerir e uma boa esposa para trazer o café. Um escritor jovem, tatuado, agia como se fizesse parte de um grande plano literário. “E o que você está fazendo fora de casa, que não está escrevendo?”

“Ah, mas a poesia está por aí, não é? Nas ruas, nos prostíbulos, nas tatuagens. A gente precisa viver mais, escrever certo caminhando em linhas tortas. De onde acha que eu tiro inspiração?”  

Melhor tirar inspiração dos livros. Tirar inspiração do estudo. Mas quem era Olívio para condenar Thomas? Ele também estava num prostíbulo sem nem ao menos desculpas para escrever. 


Está há uns bons anos fora de catálogo, o que não me incomoda tanto. Os livros têm seu tempo, ou sua sazonalidade, não dá para manter tudo em livraria o tempo todo. Mas se alguém quiser reeditar (com uma BELA capa), ficarei feliz. 





ENTÂO VOCÊ SE CONSIDERA ESCRITOR?

Então você se considera escritor? (Trago questões, não trago respostas...) Eu sempre vejo com certo cinismo, quando alguém coloca: fulan...