Sou um dos nomes na capa da Época desta semana. |
Perdemos. O resultado foi o pior possível. Mas
talvez a única forma de se destruir Bolsonaro seja mesmo deixando-o governar.
Vamos ver quem o chamará de “mito” daqui a um ano. O problema é que junto ele
vai destruir o país...
Fica o orgulho por tantos amigos que se
posicionaram, lutaram, compraram brigas que não eram suas. Como escritor e
homossexual, foram essas pessoas que me ampararam.
Antes desse fatídico resultado, a revista Época
convidou 22 escritores para fazer ficção sobre as eleições, com curadoria do Mateus Baldi. Fugindo da
polarização, optei por um personagem sempre presente, sempre na retaguarda: Eymael,
“o democrata cristão”.
Tem o sarcasmo e um humor que espero recuperar.
Assim encerro minhas eleições de 2018.
"O FILHO BASTARDO DE UM DEMOCRATA CRISTÃO"
Zé Maria sempre foi dos últimos da fila. Apático e
tímido, não era popular entre os colegas, nem alvo preferencial de bullying.
Nunca tirava as melhores notas, mas seu desempenho não chegava a ser sofrível. Na escolha dos times, ficava entre os
últimos, antepenúltimo, depois de um gordo, antes de um manco e de um zarolho.
Sua presença era insignificante, sua existência tão mundana, que se tornava
difícil até encontrar adjetivos para completar um parágrafo...
(Mas
afinal, não é assim a vida de tantos e tantos? De quase todos nós? É que tantos
e tantos e quase nenhum de nós daria um livro, um conto, um personagem
coadjuvante numa crônica de revista...)
Zé Maria, como muitos,
era filho único. Criado pela mãe e pela avó. O pai, não conhecia. “Ele é um
homem importante”, dizia apenas a mãe, “e tem outra família.” Zé Maria era o
que chamam de “filho bastardo”, mas nem isso o destacava. Tantos como ele
cresciam sem pai, sem mãe, com duas mães, no Jardim Peri Peri.
Com a mãe se recusando
a revelar a identidade do pai, Zé Maria havia muito desistira. Cresceu
procurando-o na televisão, nas revistas. “Um homem importante”, podia ser
artista, ator, apresentador, jogador de futebol. Zé Maria examinava a fisionomia
de Celso Portiolli, Padre Fábio de Melo, Humberto Martins. Um dia, passando pelo Datena, Zé Maria se
perguntou se seu pai não era Alexandre Nardoni, Goleiro Bruno, Marcinho VP.
O espelho também não
lhe trazia respostas, não dizia nada de volta. Sem traços marcantes, sem marcas
de nascença, tinha a pele parda da mãe, e de toda sua vizinhança. Não tinha
olhos azuis, não tinha língua presa, cabelo nem liso nem crespo; se desmaiasse
na hora do rush, nem sua alma saberia a que corpo retornar.
Assim, às vésperas das
eleições (à beira do precipício), Zé Maria estava com dezesseis anos, não tinha
partido nem havia tirado título. Não acompanhava as discussões nem assistia aos
programas políticos. Mas, enquanto esperava o Pica-pau, um jingle familiar soou
na TV da sala, e sua prima mais velha comentou:
“Sabe que esse homem
esteve uma vez aqui no bairro? Foi no dia daquele atentado, nos Estados Unidos.
Ele passava aqui de carro. Parou no bar em que sua mãe trabalhava para assistir
pela TV...”
“Que dia? Que atentado?”
Zé Maria questionou.
“O onze de setembro...
Faz tempo. Acho que em 2002. Você nem tinha nascido.”
Não. 11 de setembro de
2001. E Zé Maria havia nascido exatamente nove meses depois.
De noite, sozinho no
quarto, Zé Maria pesquisou o histórico do candidato. “Um homem importante”, que
passara pelo bairro, tivera contato com sua mãe, nem que tenha sido como
freguês do bar. O nome era mais uma coincidência, que não podia ser só coincidência.
E Zé Maria lembrava-se das primeiras palavras que ouvira, pela TV, da boca de
seu pai:
“Sinais! Fortes sinais!”
Zé Maria acordou no dia
seguinte como filho de presidenciável. Mulher de presidente é primeira dama –
filho de presidente é o quê? Primeiro em algo? Ao menos primogênito, ele
poderia, pela primeira vez? Não, seu pai já tinha filhos, netos e bisnetos. Ele
permanecia filho bastardo. Mas filho bastardo de um democrata cristão.
Na escola, tentou enfim
fazer parte dos debates políticos. Pregou o pai aos moleques de cabelos
coloridos, as meninas bonitas que o assustavam por serem feministas, até os
“minions” que defendiam o “mito”; ninguém o levava a sério. Ele vinha defender
seu pai-candidato, apenas para ser descartado, posto de lado, nem ameaça nem
aliado, apenas desprezível, como sempre havia sido.
De noite, cabisbaixo em
casa, sua mãe chegou e bagunçou seu cabelo. “Que tá chocho assim, Zé Maria?
Pisou na goiabada?” Ele respirou fundo para perguntar.
“Mãe, você precisa me
dizer, eu tenho direito de saber. Meu pai é um político? Eu fui concebido no
onze de setembro? Qual é o nome dele? De repente posso pedir um exame de
DNA...”
A mãe suspirou e se
sentou ao lado dele no sofá.
“Quem foi que te disse
que ele é político? Ai, eu jurei não contar...”
Zé Maria estendeu a
mão. “Mãe, eu tenho dezesseis anos, eu mereço saber.”
A mãe suspirou
novamente. Engoliu fundo. As lágrimas escorreram.
“Meu filho... Se quer
mesmo saber a verdade... a verdade é que não sei. Não sei o nome dele. Naquela
época eu era jovem, solteira, trabalhava num bar e estava perdida; foi uma
fraquejada... Teve sim uma comitiva com alguns políticos, que passou e parou
por aqui. Mas... Nunca mais o vi. Nunca fui ligada em política e nunca vi seu
pai em cargo nenhum... Eu queria poder dizer que ele já foi prefeito, sim, foi
vereador, mas que cargo mesmo que ele ocupou eu não sei...”
“Meu pai já foi
Deputado”, pavoneou-se Zé Maria. “Ele que aprovou a jornada de trabalho de 44
horas, o aviso prévio de 20 dias”, advogou com conhecimentos parcos via
Wikipedia.
A mãe lhe sorriu, passou-lhe
a mãe no rosto orgulhosa, como se visse diante de si o futuro da nação.
“Eu não sabia, meu
filho, eu não sabia. Sei que ele é um homem importante, mas não sei por onde
anda. Sei que era um bigodudo baixinho, que falava de um tal de aerotrem...”
(publicado na revista Época de 29/10/2018)