27/10/2018

A MORTE SEM NOME (2004)



Capa... ok. 


Fiquei muito feliz em ver a resposta do post da semana passada, do meu primeiro livro, saber que não era só punheta, que meu registro de começo de carreira interessava a tantos leitores, jovens escritores, jornalistas e colegas, mesmo nesses tempos... Muita gente me escreveu comentando, curtindo. Obrigado mesmo, porque a gente que escreve não tem aplauso, não tem palco. A gente tem que se contentar com esses elogios que flutuam até nós. Assim sigo com a série.


Só com o sangue derramado foi que percebi o quanto o chão estava sujo. Restos de insetos boiando nos coágulos, coágulos penetrando entre os tacos, tacos encardidos de poeira. Deixaria sequelas para sempre, no meu apartamento, coitado, tão humilde e desprezado. Por anos e anos, ratos mendigos e mosquitos preguiçosos viriam se alimentar dos meus restos. Entre as frestas, se eu esfregasse com vontade, abriria um buraco negro no meio do nada, meu apartamento. Coitado, tão humilde e desprezado. Talvez pudesse pentear meus cabelos então, no chão, penetrando entre os tacos. Ou talvez fossem apenas antenas das baratas...


“A Morte Sem Nome”, meu segundo romance, ainda é dos meus favoritos. O primeiro que escrevi, aos 22-23, mas que tem tanto de mim, e tanto de mim que foi perdido.

Um suicídio por capítulo, essa é a promessa do segundo romance de Santiago Nazarian. A Morte sem Nome é um quebra-cabeças gótico, ou melhor, um dominó, onde cada frase soma-se à seguinte e coincidência e recorrências vão compondo a história de uma mulher que vive apenas para se matar. Lorena é uma suicida serial, uma mulher sem amor e sem esperança, derramada por páginas e página de delírio e poesia. Procurando os restos dela estão um adolescente, um garçom, um feirante e um estuprador. A pergunta não é quem sairá com vida, mas quem carregará a morte em seus braços e escreverá seu epitáfio
– outra orelha feita por mim mesmo, de que ainda gosto bem.


Foi uma tentativa de escrever romance, então tem uma estrutura de livro de contos... ou não tem muito estrutura. Fui só pensando nos suicídios possíveis e escrevendo capítulos de maneira aleatória – a forca, o corte dos pulsos, o pulo pela janela -, trazendo personagens no meio do processo.

O livro tem muito da minha adolescência gótica e das minhas experiências com body art - para quem não sabe, aos dezenove anos eu fiz um trabalho de auto-mutilação para o curso da história da arte na FAAP. A proposta era pegar algum movimento artístico - expressionismo, cubismo, pop art, etc - e fazer uma obra nesses moldes. Eu, querendo chocar, peguei a body art pós-moderna e fiz uma série de fotos com um amigo, me mutilando na Avenida Paulista. Não era nada muito pesado, uns cortes superficiais, só para o sangue escorrer. (Não, não deu polícia, acho que o povo não acreditou que era real)

Minha primeira foto no jornal (Folha, em 1996)

O trabalho, que seria apenas acadêmico, acabou chamando a atenção, fizeram um documentário inteiro sobre "minha obra" que rodou festivais do mundo todo, passou na TV Cultura e me deu uma primeira exposição. Depois disso, ainda dirigi um curta universitário - "Ame o Garoto que Segura a Faca" - que também tratava a body art, de maneira irônica. (Nesse, eu cortava uma amiga - que permanece viva e amiga até hoje, inclusive foi pet sitter da minha coelha dia desses - mas ela era vegana e tinha o sangue tão claro que não parecia real.)


Still do curta que escrevi, dirigi e atuei: "Ame o Garoto que Segura a Faca". (Era ruim, mas lembro com carinho)

Voltando ao livro, a narrativa em primeira pessoa feminina tem algo de prosa poética, incluindo rimas de gosto duvidoso (de que ainda gosto), escrita num fluxo de consciência que acho que hoje eu não conseguiria. Gosto também do experimentalismo, das repetições, mas acho que alonguei o texto um pouco além do necessário, talvez efeito das drogas da época, talvez apenas os excessos da juventude...


Quando me olhei no espelho, já tinha envelhecido trinta e cinco. No canto do olho, atrás de um sorriso, na frente do espelho, uma tristeza a ser escondida. Entre os dentes, as marcas das minhas mordidas. Em meus cabelos, a vida se esvaindo. Penteei fio por fio. Escovei dente por dente. Maquiei olho por olho e me olhei novamente, no espelho.

Ainda estava lá, por trás de mim, entre os azulejos, jogado no ralo, tudo o que eu não pude esconder. Mofo nas frestas, cabelos na pia, sangue no vaso, sorrindo pra mim. Continuei a esfregar, pensando em branco. E quanto mais esfregava, mais sangue se espalhava. E de gotas fiz uma poça. E da poça fiz um lago. Do lago fiz um mar, para me afogar.

Me sentei na sala para fumar. Cigarro. Entre os dedos. Entre os dentes. Manchados de nicotina. Queimando com minha insegurança. Sumindo como fumaça. Cinzas ao chão, entre as frestas. Peguei a vassoura e a ordem, a ordem continuava a fugir de mim.

Minhas pegadas me seguiam por onde quer que eu fosse. Eu não podia escapar. E minhas impressões digitais manchavam o que quer que eu tocasse. Se tornavam cinzas, pó e mofo. Minhas mãos, meus lábios, meu pescoço e meu coração. A ser esfregada, a ser varrida, a ser escovada, nenhum banho daria conta. Minhas pegadas me seguiam onde quer que eu fosse e minhas impressões digitais estavam sempre em meus dedos.

Nos pratos sujos. No garfo e na faca. Na cozinha, meu sangue fresco escorrendo pela pia. Detergente, sabão em pó. Lavei a louça e os talheres. Espalhei milhares de cacos pelo chão. Pela cozinha. Minhas impressões em cada um deles. Minhas impressões no ralo. Minhas impressões na faca. Minhas impressões cortando a linha, envolta do meu pescoço.

No lixo. Jogada em pedacinhos. Virei os olhos para longe de tudo o que eu não podia mais. Suco de laranja. Ossos de frango. Um coração palpitando. Que pelo menos não vaze pela casa. Que o saco plástico resista ao meu peso.



Foi escrito em Porto Alegre, onde morei entre 2000 e 2002. Trabalhava numa agência de publicidade e escrevia de noite e nos finais de semana. Era a primeira vez que eu morava sozinho, numa cidade onde não conhecia ninguém, então tem muito da carga de solidão, da tentativa de adaptação e do começo de vida adulta. O texto é dedicado a EVC Jaspion, um estudante de letras gaúcho meio-mestiço que eu amava horrores e que me chifrava com metade da cidade. O nome da personagem – Lorena – veio da cidade de Lorena, onde também teve um menino que me fez sofrer horroooores (eu era muito viadinho sofredor, gente). 

Mas até que eu era gatinho, vai?

Como contei aqui, “Olívio” acabou saindo antes, por causa do concurso. “A Morte Sem Nome” veio no ano seguinte, em 2004, pela Planeta. Teve uma boa repercussão – com destaque para um texto de duas páginas na revista Bravo pela Beatriz Bracher e uma bela crítica na Folha pelo Marcelo Rubens Paiva – e acabou sendo publicado também em Portugal e recentemente na Sérvia. Muita gente ainda me procura para falar desse livro. 


A bela capa da edição sérvia, lançada ano passado. 

Nunca foi vendido para outras mídias – acho que rendia uma boa peça de teatro. Uma atriz uma vez me procurou, mas quando disse que queria fazer um projeto “despretensioso” com o livro, eu vetei. Sempre fui muito protecionista com meus textos, hoje repenso que deveria soltar mais. Meu sonho ainda é que seja feito pela Denise Stoklos.

E edição portuguesa (2005)

A capa brasileira é uma gravura do meu pai – de que hoje gosto mais ou menos – e que inclusive foi dada de presente ao editor, Paulo Roberto Pires. As fotos de divulgação foram feitas pelo Daniel Luciancencov, namorado da época. O sangue, como sempre, era verdadeiro. 

Foto de orelha.


Anos atrás eu tentei republicar como folhetim no blog, um capítulo por semana, reescrevendo o texto. Mas era tanto trabalho e a resposta do blog tão limitada que desisti no meio do processo.


Também se encontra há anos fora de catálogo. Sempre aberto a propostas...

E se você quer que livros assim, ou melhores, continuem a ser publicados, VOTE 13 NESTE DOMINGO, PORRA!


(Em 2011 Lykke Li fez um clipe baseado no meu livro... Mentira, mas podia ser.)

NESTE SÁBADO!