Virei a madrugada lendo o livro-reportagem de Chico Felitti, "Ricardo e Vânia", recém lançado pela Todavia.
A obra é derivada da reportagem originalmente publicada no Buzzfeed, em 2017, em que Felitti investigou a história de Ricardo Correa da Silva, que ficou conhecido pelas ruas de São Paulo como "Fofão da Augusta", por causa de suas bochechas deformadas pelo uso de silicone.
O texto era um primor, não só por revelar a identidade de um personagem paulistano tão conhecido, que tomava contornos de "lenda urbana", como pela garra do autor em investigar essa história e por sua empatia pelo personagem.
Na época, comentei com alguns amigos editores que aquilo renderia um belo livro. Uma editora querida me desacreditou: "Mas agora a história já foi contada." Fiquei feliz quando soube que o texto havia encontrado uma bela casa na Todavia. Há poucos meses, quando a matéria foi premiada, comentei também com Rodrigo Teixeira que poderia render um filme. E mais uma vez fiquei feliz quando soube que ele havia comprado os direitos de adaptação.
Restava conferir como a matéria se desdobraria em livro - se seria apenas uma edição estendida da matéria, o que já seria justificável como único registro impresso; ou se havia algo mais a contar.
E o livro é uma bela, bela surpresa.
Após a publicação no Buzzfeed, Felitti passou a receber através das redes sociais constantes "avistamentos" pela cidade, de leitores que o avisavam sobre o paradeiro de Ricardo nas ruas, além de histórias sobre o passado do personagem, sua fama como cabeleireiro e seus anos de decadência.
Felitti continuou seguindo essas histórias, e chegou a Vânia, grande amor da vida de Ricardo, uma mulher transexual que se mudou há 30 anos para Paris. Ela não apenas se tornou a segunda metade/personagem do livro, como foi a chave para se desvendar o resto do passado do "Fofão", e além.
Através dessa história de amor (e silicone), tem-se um panorama maior da cena LGBTQ+ paulistana/brasileira/trans-nacional, que me lembrou o (ótimo) documentário de Dácio Pinheiro, "Meu Amigo Cláudia" (de 2013), sobre a vida da (saudosa) artista trans Claudia Wonder.
O texto é jornalismo investigativo de primeira - incisivo, por vezes invasivo (como admite o próprio autor), mas sempre respeitoso e, acima de tudo, empático. E é impressionante como Felitti consegue transmitir isso sem nunca se colocar como personagem (dele, quase nada se sabe pelo livro). Eu, que não sou jornalista, e levo tudo sempre para o pessoal (como agora), só posso invejá-lo.
Se há um ligeiro desequilíbrio, está na figura da mãe (do autor), que participa ativamente da história, não é oculta como ele, mas não é desenvolvida como todos os outros personagens, ficando num meio-termo que talvez carecesse de mais contexto; mas é sempre complicado colocar a mãe no meio...
A matéria original do Buzzfeed não chega a um terço do livro, e quando parece que o texto vai se arrastar (entrando em bastidores da publicação), ele mergulha na história de Vânia, amplia as fronteiras até Paris e amarra todas as pontas soltas.
O maior problema do livro? A capa. A capa é um horror (e há fotos bem melhores dos dois dentro do volume).
Taí uma foto bem melhor. |
Como leitura pessoal, me tocou de diversas formas. É estranhamente raro e muito prazeroso encontrar em livro esses cenários que habito, como paulistano e homossexual, e ter uma dimensão maior de uma comunidade da qual faço parte. Ser gay pode ter me fechado algumas portas, mas abriu outras tantas, me deu uma outra visão de mundo e me aproximou de gente que não faria parte do meu universo "paulistano-branco-dos-jardins".
O livro permite ainda questionamentos sobre o famigerado "lugar de fala", com um foco majoritário na transexualidade, escrito por um autor "cis" (que nem se coloca explicitamente como homossexual no texto, por se colocar tão pouco no texto). É de se questionar se a história poderia ser contada por um heterossexual (talvez um heterossexual apenas não tivesse tanta empatia para realizar um projeto desses), entretanto me parece um exemplo claro de como a escrita pode servir para dar voz ao outro. Felitti pode fazer isso não (apenas) por ser gay, mas por ser um grande jornalista.
E amigo meu, não, ele não é. Na verdade, acho que só o encontrei uma vez, exatamente no baixo-augusta, cenário tão presente no livro. Foi numa manhã em que eu e meu marido andávamos com o corpo da nossa primeira coelha morta, dentro de uma caixa de sapatos, a procura de uma clínica veterinária para cremá-la. Felitti nos interpelou pedindo uma entrevista com o Murilo (que havia acabado de sair do MasterChef); e, com nós dois em lágrimas, percebeu que não era boa hora. Lembrando agora, vejo como se encaixaria com as histórias dele. E minhas. Como fazemos parte de um mesmo universo.