21/04/2019

O ÚLTIMO SOBREVIVENTE

A capa brasileira.

Finalmente saiu pela editora Autonomia Literária a edição brasileira de "A Um Fio da Morte", as memórias de Hampartzoum Chitjian, armênio sobrevivente direto do genocídio (da Primeira Guerra), que viveu até o começo dos anos 2000 para contar sua história.

Em quase 600 páginas, ele narra não apenas os anos difíceis de escravidão e fuga, mas também sua infância na vilazinha de Perri (leste da Turquia atual), sua migração para o México e posteriormente para os Estados Unidos. É um documento precioso dos costumes da época, das atrocidades cometidas pelos turcos e da criação da diáspora como um todo.



No terceiro dia, eu finalmente decidi correr o risco e me juntei a Kaspar nas nossas buscas para achar meu pai. Juntos fomos ao centro da cidade. Ficamos espantados em descobrir que todos os homens estavam atrás de portas fechadas das prisões improvisadas. Havia mais de cento e cinquenta lojas, todas convertidas – cada uma cheia até o máximo da capacidade. Os homens eram incessantemente espancados com placas grossas de madeira. Seus gritos penetrantes de dor e desespero filtravam-se nas ruas. Estavam sendo espancados quase até a morte.

Quando nos aproximávamos da oficina do ferreiro, ouvi uma súplica dolorosa, inesquecível. “Por favor, pelo amor de seu Deus, por favor não me bata mais!” Com uma pontada de horror, percebi que era meu pai chorando. Nós rapidamente nos aproximamos da porta do prédio, e eu disse ao guarda de plantão: Chitjeeneen Oghlee yehm. (“Sou filho de Chitjian”). Ele entrou e trouxe meu pai à porta, mas não a abriu. Não podíamos ver um ao outro. Que terrível! Que lembrança devastadora! Após todos esses anos, lembrar desse momento é agonizante e difícil de esquecer. A pessoa que rezava Havadov Khostovaneem diariamente era meu pai. A pessoa que plantava novas vinhas para o próximo ano era meu pai. Agora a pessoa que estava gemendo na cadeia era meu pai. 

[...]


Alguns dias depois, logo após o meio dia, ouvimos a familiar batida de meu pai na porta. Quando corremos para abri-la, ele não nos deixou tocá-lo. Ficamos todos confusos. Seu casaco estava coberto de sangue seco, seu rosto magro e seus olhos consumidos de desespero. Sua postura transmitia uma completa exaustão. Ele mal era capaz de ficar de pé. Nunca vou esquecer o que foi a última impressão de meu pai. Ele projetava uma insuportável dor pela tortura que passou por mais de uma semana, assim como a angústia do que estava acontecendo com sua vida, família e terra, e o medo do que ainda estava por vir. Eu não podia suportar ou compreender o que eles haviam feito com aquele belo homem encorpado, com belo cabelo castanho e compleição suave. Ele havia perdido toda a aparência de si mesmo. Por que isso aconteceu com um cristão inocente, bom e temente a Deus? Esse era meu pai! Por quê? Por quê?
Na minha frente havia um homem magro, frágil, de aparência esfarrapada, uma imagem de meu pai que iria me assombrar pelo resto da vida. Mesmo eu mal tendo catorze anos, eu era velho o suficiente para sentir a dor do que havia acontecido e também velho o suficiente para temer o que estava por vir!

Essa dor é eterna – nunca poderá deixar minha alma. Agora tenho 102 anos e ainda revivo aquele momento toda noite em meus pesadelos. Está refletido em todos meus pensamentos durante o dia. Como alguém pode esquecer essa imagem? Você poderia?


A tradução é minha, e também assino um texto de apresentação. O prefácio é de Heitor Loureiro e Carlos Antaramian Salas. Foi dos meus trabalhos mais importantes, um mergulho na história de meus antepassados - que começou em 2015 com minha visita à Armênia atual e segue em pesquisas e leituras (até passei esse feriado de Páscoa com novos amigos da colônia, veja só..). É uma causa que não deve ser esquecida, principalmente nos novos tempos de fascismo e perseguição em que vivemos.

E tenho mais sobre esse tema saindo em breve...


Dá para comprar o livro aqui: https://autonomialiteraria.com.br/loja/historia-nao-contadas/a-um-fio-da-morte-memorias-de-um-sobrevivente-do-genocidio-armenio/

E nesta quinta, 25/04, haverá um lançamento do livro, incluindo debate comigo, Carlos e Heitor, no Al Janiah - Rui Barbosa, 269, 19h. 





ENTÂO VOCÊ SE CONSIDERA ESCRITOR?

Então você se considera escritor? (Trago questões, não trago respostas...) Eu sempre vejo com certo cinismo, quando alguém coloca: fulan...