Com Paulo e Maressa. |
Acabo de voltar de uma passagem relâmpago por Avaré, no interior de SP, onde participei do "Café Insólito", uma noite de palestras em torno da "literatura fantástica", ou de gênero, no Instituto Federal.
Foi tudo organizado por Paulo Arnaud, um jovem estudante de letras, que começa a dar os primeiros passos como escritor, e que se desdobrou para conseguir me levar. Essas horas é que a gente vê como vale a pena - como nossos livros fazem a diferença; talvez em pouca, pouquíssima gente, mas fazem profundamente. E são os leitores que podem mesmo nos levar mais longe - se arregaçam as mangas; lindo ver um novo escritor (e curador e "agitador cultural" de sua cidade) que desperta com meus livros. E lá também conheci a professora Maressa Vieira, que mediou a mesa, e também é leitora antiga - já trabalhou meu "Feriado de Mim Mesmo" em sala de aula.
Foi especialmente lindo porque ultimamente me senti como "Inimigo Número Um da Literatura Fantástica Brasileira", graças a repercussão (descabida?) do meu texto na Folha. Meu diagnóstico era apenas que a literatura fantástica passava por um bom (ou ótimo?) momento, mas que eu não considerava que isso era o suficiente para que ela se fixasse de fato na cultura nacional - e apontava algumas teorias (apenas teorias), que podiam ser refutadas. (tem tudo dois posts abaixo aqui no blog.)
Samir Machado de Machado fez um bom texto de resposta na Folha, e mais uma caralhada de gente me atacou pelo twitter, dizendo que era só a minha literatura que não decolava, que minha opinião era ultrapassada, que me faltava bagagem...
Nessas críticas, curiosamente, senti a soberba da academia (do próprio Samir, mas não só), de quem faz mestrado-doutorado em qualquer biboca de faculdade, e se considera mais autoridade do que alguém que atua há quase vinte anos na área, com dez livros publicados pelas maiores editoras do país, quase OITENTA traduções, e que discute o tema na imprensa e em mesas pelo Brasil (e mundo) desde o começo do milênio.
Eu precisava... eu merecia... eu precisava de um novo diploma.
(Curiosamente, meu post anterior a este é sobre "Os Melhores Filmes de Terror de 2019", em que destaco dois ótimos brasileiros. Nesse momento meu post foi compartilhado com louvores de "uma sumidade no gênero". Quer dizer, a gente é autoridade quando elogia, não quando critica.)
Com todas as críticas/respostas/discussões que recebi, mudei pouco minha opinião. Mas pude trazer uma visão mais otimista (para alunos de letras interessados em literatura fantástica, como os de Avaré): de que há um bom mercado, um bom mercado brasileiro para a literatura fantástica no momento.
Mas que ela segue não prestando.
Teve um punhado de livros que indicaram, como exemplo da atual pungência da atual literatura fantástica brasileira. Muitos eu conhecia. Alguns são boas exceções. Outros fui conferir...
Não prestam.
Infelizmente.
Já discuti muito sobre isso (novamente: não comecei ontem); existe um desafio básico em fazer literatura de gênero e fazer "alta" literatura (sim, ainda acredito nisso). Como respeitar as convenções do gênero sem recorrer (apenas) a clichês, como fazer "alta" literatura sem provocar apenas estranhamento, e sim respostas objetivas (no caso do terror, "provocar medo"). É um desafio que eu mesmo (como autor) acho que não consegui vencer. Mas eu prefiro criar o estranho, a dificuldade, do que recorrer a uma literatura rasa.
E muito do que eu vejo da literatura fantástica (bem sucedida) brasileira é isso: literatura rasa. Muito dos livros que me indicaram, inclusive. Eles se apoiam muito na trama, podem ser lindamente costurados, mas não oferecem nada além do que isso: história. O texto não é apenas banal (às vezes sofrível, quando se pretende literário mas carrega em adjetivações cafonas) na estrutura, mas também nas ideias. O texto não oferece reflexões mais profundas do que a narrativa imediata. Não ACRESCENTA.
Não por acaso, ofereci um desses livros que mais me indicaram (não vou dar o título, porque não convém gongar o autor aqui) para uma resenha na Folha. Recusaram - porque ainda que seja sucesso de vendas, é insignificante culturalmente; e eu concordo. É um livro que faz dinheiro hoje e é esquecido amanhã. (E me passaram outro mais relevante que estou resenhando agora.)
(Vale lembrar que já consegui emplacar na Folha um autor iniciante, por uma editora pequena, com um ÓTIMO livro de vampiros - o "A Forma da Sombra" do Fernando de Abreu Barreto [que não é amigo; até hoje nunca o encontrei pessoalmente]. Então não é como se eu estivesse trabalhando CONTRA a literatura fantástica...)
(aqui: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/04/1614998-terror-lirico-indica-que-novo-autor-do-pais-pode-acrescentar-muito-ao-genero.shtml)
Voltando a Avaré, foi sintomático que a noite de ontem começasse com a palestra de uma psicóloga sobre "sintomas de psicopatia" (dentro de um evento de literatura fantástica). Sempre é preciso recorrer ao real, ao palpável, "diagnosticável" para ser respeitável. Enquanto ela dava o perfil de um psicopata, eu pensava: "Mas o que isso tem a ver com literatura fantástica?"
Minha fala trouxe não só esses questionamentos, mas, principalmente, uma defesa desses questionamentos, da importância da discussão, da pluralidade de ideias. Num momento em que cultura é vista como supérflua (ou inimiga), a importância de um pensamento livre e de incentivos para que continuemos pensando, discutindo e, principalmente, registrando. Porque no final, o que permanece de uma sociedade é apenas a cultura.
E a literatura fantástica brasileira não permanecerá! :P