Matéria que publiquei ontem na Folha:
Do que vive um escritor
no Brasil? A pergunta sempre ecoou dentro do próprio meio literário, na
curiosidade em saber como cada colega consegue manter o ofício e as contas em
dia. Em 2014 entrevistei 50 autores de diferentes percursos para uma matéria da
Folha que traçava fontes de renda dos escritores no país. O saldo (ao meu ver) era
positivo: mostrava que a maioria dos autores estabelecidos conseguia viver, se
não da venda de seus livros, de atividades relacionadas à escrita – como
oficinas literárias, jornalismo, roteiros e tradução. De lá para cá, a situação
na cultura deteriorou como um todo, e agora com a pandemia a pergunta volta com
força: Do que estão vivendo nossos escritores?
O
mercado de eventos literários – festivais, bienais, debates – se fortaleceu no
início deste século, muito motivado pela Flip – Festa Literária de Parati. Muitos
pagavam cachê, e permitiam uma renda complementar aos autores, que discutiam
ideias e debatiam seus conhecimentos com o público. Isso já vinha se perdendo
nos últimos anos – os cachês, que estacionavam numa média de R$2 mil reais por
evento desde o começo do milênio, foram sendo cada vez raros, os eventos foram
perdendo patrocínio e, claro, apoio estatal; esperava-se que o escritor
estivesse presente motivado apenas em divulgar sua obra. Com a pandemia, os
eventos tiveram de migrar para o virtual – as conhecidas “lives” – e nesse
cenário os cachês são raridade absoluta.
Afonso
Borges, jornalista mineiro que há 35 anos promove eventos literários, como o
Sempre um Papo e o Fliaraxá, foi um que conseguiu manter parte de sua
programação através de recursos já captados para as atividades presenciais, migrando
para lives. “Eu nem saberia como captar patrocínio para um evento virtual. É
sempre a perspectiva da volta presencial que sustenta o patrocínio.”
O pernambucano
Marcelino Freire organiza desde 2006 a Balada Literária, que teve de se tornar
virtual. Nome forte nas oficinas literárias, está com quatro turmas online e
também tem faturado com cursos pré-gravados. “A vantagem é que tem gente de
todo o Brasil fazendo os cursos, até de fora do país. Presencialmente não seria
possível. Outra vantagem é que coordeno direto da minha casa, ao lado dos
livros. O fato de eu estar cercado de livros me faz levantar, pegar um parágrafo
na estante e citar ou ler um texto ali na hora.” Afonso Borges também vê
ocasiões em que a ausência de deslocamento é positiva. “É lógico que um escritor
de 80 anos vai se sentir mais à vontade falando de casa.” Marcelino coloca que
“a renda tem se mantido e vem de maneira mais econômica: a comida faço em casa,
não pego avião, uber, não uso hotel, não gasto sola de sapato.” Mas segundo ele
não compensa o gasto com remédio, falta de exercícios, e “excesso de tristeza.”
Outra
fonte de renda importante para os autores, que tinha ganho força na última
década, era a escrita de roteiros para TV. Com as produções paradas,
roteiristas que não têm contrato fixo estão penando. A paulistana Tati
Bernardi, colunista da Folha, sentiu o baque mesmo sendo contratada da Globo.
Conseguiu reinventar-se com os cursos online e o podcast “Calcinha Larga.” “Virei
a louca dos Podcasts”, diz. Para ela, sociofóbica confessa que não costumava
ministrar oficinas presenciais, o formato virtual foi um incentivo e está com
turmas lotadas de sua oficina de autoficção “Fale mal, mas fale de você.”
Um relatório sobre o mercado de livros feito pela GfK para a
Associação Nacional de Livrarias aponta que a venda de livros aumentou em cerca
de 4% de 2019 para 2020, mas
isso não chega a fazer diferença na renda dos autores. E o acréscimo não se refletiu na literatura
infantojuvenil, um campo onde autores conseguiam formar sua renda
principalmente por direitos autorais – não só por adoções e compras
governamentais, mas porque conseguiam publicar num ritmo muito maior do que a
ficção adulta, até pelo volume menor de texto de cada obra. Entretanto, com as
escolas fechadas, a divulgação e a adoção dos livros para jovens e crianças foi
prejudicada. “Com as famílias em
crise financeira, pedir livros de literatura, ou investimento em cultura de
forma ampla, não está contemplado no contexto emergencial da escola on-line”,
aponta Tiago de Melo Andrade, premiado autor mineiro do segmento, que costumava
viajar o ano todo divulgando seus livros com as crianças. “Nunca passei tanto
tempo sem contato com o ambiente escolar. Claro há uma ou outra mesa remota, mas
nada que se compare e o resultado não é o mesmo.”
O ofício da tradução, fonte de renda para muitos autores
(como eu), não foi especialmente impactado na pandemia. Amanda Orlando, editora
da Globo Livros, aponta que num primeiro momento as editoras congelaram, mas
com a percepção do aumento de vendas, as traduções voltaram a ser requisitadas:
“em um fluxo ainda maior do que em anos como
2019 e 2018”, aponta ela. “Sem dúvida, as pessoas aproveitaram o lockdown e o
maior tempo disponível em casa para ler. Essa boa notícia deu um novo gás ao
negócio do livro e hoje vemos um aumento nas aquisições, embora a alta do dólar
ainda seja um entrave considerável.” Porém Antônio Xerxenesky, autor gaúcho
que também atua na tradução, faz uma ressalva importante: "A inflação brasileira não se
refletiu em um aumento do valor da lauda de tradução", que permanece a
mesma há meia dúzia de anos.
A impressão que fica é que os autores, como todos os brasileiros,
estão se virando e se reinventando. Mas quem sempre perde é a literatura em si
que, mesmo quando ganha em vendas, perde em relevância e incentivo para se
fortalecer e refletir nossos tempos. Deve fazer parte do plano desse governo. Se
é que há algum plano.
Santiago Nazarian é escritor e tradutor, autor de Fé
no Inferno (Companhia das Letras, 2020), entre outros.